Ideias para Debate

Friday, April 29, 2005

Enquanto...

Enquanto os debates vão continuando, também continuo a publicar os artigos do Elisio Macamo sobre como eles devem decorrer. Assim os leitores do blog têm a teoria e a prática lado a lado. Ou, dito em termos de marketing, dois pelo preço de um.
Aqui vai o texto segtuinte:

Erros na argumentação (8)

Sem exemplos concretos as coisas que veem sendo escritas aqui podem parecer demasiado abstractas.
Li, recentemente, uma entrevista a um político que, indagado se os grandes projectos podiam desempenhar um papel significativo na redução da pobreza absoluta, respondeu que sim porque havia uma medida, o rendimento per capita, cujo aumento pressupõe o aumento dos níveis de produção e de produtividade. Segundo ele, os grandes projectos contribuem para esse efeito. Instado a pronunciar-se sobre a utilidade do rendimento per capita como medida uma vez que, na opinião do jornalista, esses projectos deixam muito pouco dos seus lucros em Moçambique, deu uma resposta com duas vertentes. Primeiro, o político lamentou o facto de, por um lado, se querer atrair investimento e, por outro, dizer, uma vez chegado o investimento, que não é o que queríamos. Segundo, ele disse que não estava a dizer que os grandes projectos iriam resolver toda a situação de pobreza do país.
Vamos analisar o argumento como forma de demonstrar o tipo de erros possíveis na argumentação. Para esse efeito, precisamos de resumir o argumento de forma mais clara. Isso significa que temos que identificar a conclusão bem como as razões sobre as quais ela assenta.
O argumento é um pouco complicado, mas é fácil identificar a conclusão: os grandes projectos podem desempenhar um papel significativo na redução da pobreza absoluta. É também fácil identificar as razões, ou melhor a razão porque é mesmo duma só que se trata: os grandes projectos aumentam o rendimento per capita. Esta razão baseia-se noutro conjunto de premissas que podemos, para melhor discussão ainda, indicar: o aumento do rendimento per capita significa que houve aumento de produção e produtividade no país. Subentende-se aqui que o aumento de produção e produtividade tem impacto no nível de vida das populações. Isto é, quando o rendimento per capita aumenta, aumenta também o bem estar das pessoas.
Temos, pois, um argumento impecável. Estamos em presença duma conclusão que se apoia em razões fortes. Podemos formular uma espécie de lei para mostrar a validade do argumento: (a) tudo o que aumenta o rendimento per capita ajuda a combater a pobreza absoluta; (b) os grandes projectos aumentam o rendimento per capita, (c) logo, os grandes projectos ajudam a combater a pobreza. É assim que Sherlock Holmes teria argumentado. Ser válido, contudo, não significa ter razão ou estar correcto. Significa apenas que do ponto de vista lógico o argumento é sólido. Se não concordamos com a ideia de que os grandes projectos ajudam a reduzir a pobreza absoluta não podemos refutar a ideia dizendo apenas que é mentira, os grandes projectos não ajudam nada a reduzir pobreza que for.
Temos que dirigir a nossa atenção às razões porque elas é que explicam a conclusão. Será mesmo verdade que o aumento do rendimento per capita tem esse impacto no nível de vida das pessoas? Será essa medida exacta?
O jornalista, muito atento, colocou exactamente esta pergunta ao político: não será o rendimento per capita uma medida artificial, perguntou ele. Aqui o político deitou por terra os ganhos feitos na sua argumentação anterior. Ele preferiu dar uma resposta completamente irrelevante para o assunto em questão. Lamentou que as pessoas quisessem atrair investimento para depois, com o investimento já no país, reclamar que não é o que queriam; em segundo lugar, limitou o alcance da sua afirmação anterior.
Vamos por partes. A segunda parte da resposta é perfeitamente legítima. É sempre melhor limitar o alcance das nossas conclusões porque nunca podemos realmente dispor de toda a informação que é necessária para ter a certeza sobre o que dizemos. É justamente por causa disso que os ingleses pelo menos muito raramente fazem afirmações categóricas. Eles começam todas as frases com “parece que...”, “isto sugere que...”, “pela aparência...”, etc. São cuidadosos. Portanto, responder ao jornalista dizendo que os grandes projectos não vão resolver toda a situação de pobreza é prudente e devia, até, ter sido feito logo no início. Mas isso ainda não responde à pergunta feita, nomeadamente se o rendimento per capita é uma boa medida ou não. A primeira parte da resposta é problemática porque irrelevante. O facto de as pessoas não saberem o que querem não diz nada sobre a utilidade do rendimento per capita como medida. É, portanto, despropositado.
Para ser coerente o político devia voltar às razões que deu tornando algumas pressuposições implícitas mais explícitas. Por exemplo, ele diz na entrevista, antes da interpelação, que a medida “é aceite” como conveniente. Ele podia dizer quem são as pessoas que a aceitam como conveniente. Economistas? Organismos das Nações Unidas? O Banco Central? A partir da autoridade dos que a aceitam como conveniente ele podia contrariar a ideia de que a medida seja artificial. Ele podia dizer que essas instituições não podem estar enganadas. Se quisesse ser ainda mais preciso podia elaborar um pouco mais a ideia de que o rendimento per capita conduz ao aumento do nível de vida. De que maneira? Como se pode medir isso? Etc.
Portanto, os erros na argumentação resultam essencialmente da recusa em confrontar as razões que fundamentam conclusões. Não importa aqui enumerar as formas de recusa. Interessa, talvez, dizer que os erros na argumentação ocorrem quando as razões não fundamentam a conclusão. Em lógica diz-se que as premissas, o nome técnico das razões, são falaciosas.

Resposta ao desafio

O Patricio Langa resolveu responder ao desafio da Lurdes de que há mais ideias do que debate. E respondeu entrando no debate iniciado pelo texto de Roberto Tibana sobre a fasquia alta. Para quem não o tenha lido é logo o segundo texto deste blog. Mais recentemente o Elisio Macamo e eu próprio temos trocado ideias sobre o mesmo tema. Vejamos agora o que tem o Patricio Langa para nos dizer:


A espera do desenvolvimento: Acções concertadas e tréplicas


Com muito desassossego entro para o debate sobre a réplica da "A fasquia alta" do Economista Roberto Tibana por duas razões: Primeiro, para aceder, ainda que seja parcialmente, a tese segundo a qual expõe-se mais ideias do que se debate; e dar mais azo ao elo mais "fraco" do blog. Segundo, porque o tema está a tornar-se um tira-teimas entre o Machado e o Elísio.
Pretendo alargar, se assim o conseguir, a perspectiva de análise a que os dois intervenientes conduziram o debate. Pretendo, por um lado,introduzir a ideia segundo a qual faz-se necessário um senso crítico,prefiro assim designar, mais acurado para resistir as teorias de conspiração, por outro lado, sugerir que o argumento da fragilidade das instituições e/ou do Estado carece aprofundamento, soube pena de se tornar circular. E, portanto, fraco.
Já me explico.
Limitar a explicação dos diferentes 'factos' (problemas) apresentados, detalhadamente, peloMachado à tese da fraqueza das instituições parece insatisfatório.Capitularíamos numa situação em que a fraqueza do Estado tornar-se-ia uma espécie de "grande teoria", aquela que explica tudo, associada à teoria do subdesenvolvimento, então, ai é que o argumento se torna circular: O sub-desenvolvimento explicaria a fraqueza do Estado e esta aquele.Teríamos que ficar à espera pelo bem-vindo dia do nosso desenvolvimento para validar ou falsificar as teorias de conspiração. Mas nenhum dos que estão a participar neste debate, não é o que desejo, estará lá para viver essa experiência.
Reli a "Fasquia Alta" e penso que não vale a pena repetir os argumentos de Tibana, nem a troca de réplicas entre os primeiros dois intervenientes no debate. Prefiro aderir ao debate no estágio alcançado pela intervenção do Machado.Esse estado é de desacordo entre os intervenientes. Vamos acordar em discordar?
Penso que não, por enquanto, há ainda muito pano para mangas.Aquando do assassinato do Jornalista Carlos Cardoso, recordo-me de ter debatido com o filosofo Moçambicano Severino Ngoenha e mais tarde com oElísio Macamo sobre as prováveis causas da morte e seus implicados.Nessa altura, dada a reacção de ambos às minhas posições, por sinal muito próximas às do Machado, passei a prestar mais atenção a ideia de conspiração. É que nessa altura consideraram os meus argumentos típicos duma teoria de conspiração. Estas são próximas às acusações de feitiçaria de que já se escreveu há tempos nos nossos espaços de debate de ideias. Aquelas não se contentam com a falta, momentânea, de explicação para os problemas. A ausência de explicação cria um mundo problemático, um certo desconcerto na sociedade. É necessário encontrar algum tipo de explicação para o problema se tornar domesticado. Recentemente, usei do exemplo da coincidência de mortes instantâneas de dois jogadores de alta competição na Europa para ilustrar como se procederia a implicação causal se o ocorrido fosse num país como o nosso. Empreguei também o caso das mortes de dois presidentes de município de Xai-Xai em menos de um ano como evidência do tipo de teorias a que fazemos apelo para explicar os fenómenos sociais que ocorrem na nossa sociedade. A questão que se coloca não é como se explica este estado de coisas?
Mas, quem provoca este estado de coisas? Perde-se a perspectiva dos processos e fixa-se atenção aos casos particulares e começa-se a juntar os pedaços e está aí: uma boa teoria de conspiração!Se já partimos do pressuposto de que tem que existir alguém a criar determinado problema o que resta é saber: quem é?
Mas as teorias da conspiração são reconfortantes. Há lógica e racionalidade nelas! Há associação de 'factos'! E consolam o espírito que não suporta a angústia de esperar pela resposta... enquanto se busca explicação mais plausível.Não é por acaso que os romancistas que usam este estilo viram facilmente'bestsellers' (sucesso de venda), os cineastas não perdem o barco amealham Óscares. Lembram-se de Michel Moore do Fahrenheit 9/11 e as teorias sobre os ataques de 11 de Setembro e a "invasão" ao Iraque?Todas são teorias fascinantes, mas de conspiração.O romancista Alemão Thomas Mann, vencedor do Nobel da literatura em1929, principalmente pela sua novela, Buddenbrooks, que se tornou um dos clássicos contenpoâneos da literatura era bom em criar enredos de conspiração. Gosto dos filmes de Mel Gibson pela mesma razão. Em"Conspirancy theory", lançado em 1997, são trinta e tal minutos de autêntico supense, para além do apreciar a beleza da Julia Roberts.
Revisitei algumas teorias sobre a conspirada morte de Kennedy. O romancista James Ellroy em, 6 mil espécie, conta a história de um polícia de Las Vegas que chega a Dallas com a missão de matar um cafetão negro, mas acaba envolvido na conspiração que tramou a morte deJFK. Apercebi-me, então, que o mundo afinal anda cheio de teorias de conspiração. Afinal elas nem são recentes. Já a morte de Jesus de Nazaré, crucificado, é fonte de imaginações arrepiantes. A que mas achei interessante é a de que quem foi levado à cruz foi outra pessoa em seu lugar!
Um pouco pelo nosso continente também encontramos algumas histórias de teorias de conspiração, mais também conspirações de facto. As circunstâncias da morte de Patrice Lumumba não deixam mais dúvidas sobre a conspiração que foi. Existe aliás um filme interessante sobre a morte de Lumumba: "A morte de um profeta", do realizador haitiano Raoul Peck,e que vale a pena ver.
O Futebol é outro terreno fértil para o surgimento de teorias de
conspiração. Esta é de mais: a França conquistou a copa do mundo em 1998 vencendo o Brasil porque subornou alguns jogadores, entre os quais Ronaldo que teve problemas no joelho justamente na final, o treinador brasileiro, que estava cheio de dívidas, em pouco tempo viu-as saldadas; o árbitro, que era outro endividado, meses após o mundial comprava casa em Miami. E não é tudo. Há garantias de que a próxima copa será do Brasil,e para tal quatro anos antes pensou-se no adversário do Brasil na final:A Alemanha, que deveria perder, pois será compensada em 2006, por isso a derrota da Africa do Sul em Zurique, depois de grande campanha para trazer o mundial pela primeira vez para África.
Uffff...quanta imaginação!
Em Maputo, anda uma agora de que a morte do boss da segurança foi queima de arquivo. O título do artigo que li sobre o assunto é caracteristico do que tenho vindo a descrever como teorias de conspiração ou acusações de feitiçaria: Quem matou Zumbire? Reparem no quem. Não se precisa ler o resto do artigo, por que já se pode deduzir a priori que haverá um acusado. Tem que haver um acusado. Num ensaio de neutralidade o autor ainda enfatiza: "Para terminar aproveitar o ensejo para rogar aos leitores para que não me acusem de ter acusado a alguém!Apenas juntei os pedaços que os fofoqueiros da praça distribuíram gratuitamente, e dei-me ao deleite de fazer algumas conjecturas..."As teorias de conspiração são mesmo conspiradoras, vemos mesmo académicos conceituados a reproduzi-las com um nível de elaboração teórica impressionante. Um exemplo que me ocorre, agora, é do livro de dois africanistas: Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz, cujo título traduzido para português dá em algo como 'Instrumentalização da desordem'. Publicado em fins da década 90. O argumento central do livro é em torno das elites políticas africanas. Estas segundo os autores criam desordem em seus países, enfraquecendo o Estado, para se aproveitarem desse estado de caos a seu favor. Olhando efectivamente para a situação de muitos estados africanos e de suas lideranças só muito dificilmente se pode fazer vista grossa a esta ideia. No ocidente ela foi bastante aplaudida. Afinal tinha sido encontrada a explicação para varias tentativas fracassadas de tirar o continente da situação miserável em que se encontra. Mais uma vez o Ocidente jogava a culpa da sorte dos africanos à sua própria responsabilidade por se permitir lideres como os Mabutu e companhia.
Ainda hoje, custa aceitar que não passa de uma teoria de conspiração,pelo menos, segundo alguns de seus críticos, entre eles, o próprioElísio Macamo.
Coerência de propósitos? Está mais do que claro que a colectânea de factos que o Machado traz no seu argumento, não vai mudar a cabeça do Elísio.
Está, também, clara a relação que Machado estabelece entre os factos (mortes como a de Cardoso e Siba-Siba, por exemplo) e a acção concertada de " deixar andar", ou melhor de impedir que as instituições funcionem como deveria ser normal.E aqui algumas questões se colocam ao argumento do Elísio.Aparelho do Estado funciona mal: culpa de todos?Um dos argumentos fortes do Elísio sustenta que é no mau funcionamento das nossas instituições que reside o problema. E a culpa do mau funcionamento, para além do nosso subdesenvolvimento, é de todos nós. "Nisto não são só os detentores do poder político e económico que estão implicados, somos todos nós, mesmo aqueles que dizem combater acorrupção. Cada um de nós procura tirar o proveito que pode dum País que está a funcionar mal".(EM)O argumento parece-me forte, como já referi antes, mas com limitantes,quanto a mim, nos seguintes aspectos: Primeiro, democratiza a distribuição das responsabilidades pela fraqueza das nossas instituições. Afirmar que todos procuramos tirar o proveito que podemos dum país que está a funcionar mal, perece-me um exagêro. Há uns que são mais vitímas do que aproveitadores. Segundo, não especifica que caminhos trilhar para alcançar o desenvolvimento institucional, se não a ideia de persistência. Ressalta a ideia de que os problemas graves que vivemos agora só se resolverão quanto tivermos desenvolvido instituições fortes.
Mas esse desiderato só se realiza a longo termo.Quanto ao primeiro aspecto, basta referir que não me parece prudente achar que a responsabilidade dessa situação seja repartida de igual modo por todos. Esta distribuição democrática da responsabilidade incomoda.Não consigo imaginar um pobre pensionista do INSS, um pacato cidadão comum com um processo judiciário arquivado ou alguem que procura os serviços sanitários, com o mesmo grau de responsabilidade, pelo mau funcionamentodo sistema de segurança social, sistema judiciário, de saúde etc, que aqueles que se comprometem publicamente a colocar esses sistemas a funcionar aceitando cargos, mas que depois são os primeiros a fazer uso das fraquezas que se comprometeram a resolver.
Que poder tem um 'cidadão comum', para além do voto, sem poder real, de cinco em cinco anos? Poderias pensar, analogamente, que a responsabilidade da irresponsabilidade da administração Bush é de todos nós, ou de todos os américanos, por estarmos de alguma forma implicados. Passou o tempo das revoluções e das acções colectivas que realmente representavam uma ameaça aos poderes. O mundo levantou-se contra a invasão de Bush aoIraque. Adiantou? Em cada conferência do G8 erguem-se barreiras,fazem-se distúrbios contestando os efeitos perversos da globalização.Adianta?
A moral da História é que há uns que devem ser mais responsabilizados que outros. É em nome dessa responsabilidade que justificam as regalias de que usufruem. Mais como diz a cantora, RosáliaMboa, parece que só abusam das regalias, não têm responsabilidade.
Uma boa parte da responsabilidade do que acontece no país advém da"elite no poder", por acção ou omissão, inacção. A elite do Poder (expressão do Sociólogo C. Wright Mills) tem uma grande fasquia de responsabilidade nesse estado de coisas. Até porque a natureza do indivíduo ordinário, vulgo "cidadão comum" não lhe permite efectuar grandes mudanças em curto espaço de tempo, ou pelo menos com a urgência que se tem do desenvolvimento.
A acção da elite no poder é diferente. Basta uma simples ordem para alterar o institucinalmente estabelicido. Isso é sintomático da fraqueza das nossas instituições, imprevisibilidade, mas não retira a maior responsabilidade daquele que ordena em relação àquele que cumpre. Bastou um simples pronunciamento do novo presidente da República: "acabar com o deixa andar" para que muita coisa comece a alvitrar querer funcionar bem.
Acompanhei neste mesmo espaço de debate que a situação dos hospitais anda melhor, apesar de algumas críticas que se apontam ao método pouco cordial e de choque usado pelo titular da pasta de Saúde.Isto está a ser aplaudido aos quatro ventos mas reflecte essa mesma fraqueza institucional. As instituições se confundem com pessoas.O poder do homem ordinário está circunscrito pelo mundo do dia-a-dia em que vive, entre a sua ida e volta ao serviço e a casa, entre os amigos do bar, eles apenas se apercebem guiados por forças de que são incapazes de compreender as grandes formulações.
É só entrar para um dos bares da cidade de Maputo para ouvir o tipo de comentários que se faz sobre a vida politica do país. Estes homens e mulheres apenas vivem as mudanças que são efectuadas nas instituições sem poder suficiente para as modificar.
Ao contrário do homem ordinário, os homens dos meios de comunicação e do poder são diferentes. Alguns, só de abrir a boca e tomar uma decisão, é suficiente para mudar o rumo da vida de um país afectando a vida do homem ordinário. A partir do seu trabalho podem criar ou destruir trabalhos de milhares de pessoas; não estão confinados simplesmente a responsabilidades familiares; podem até escapar delas. Podem viver de hotel em hotel, de conferência em conferência. Não vivem do cumprimento das exigências do dia e das horas de serviço; em varias ocasiões eles criaram até essas exigências. Tornaram-se privilegiados! Branco (de ascendência ocidental) - Homem - heterossexual - poder económico é a característica dos historicamente privilegiados na RAS.
Não me esqueci da classe média negra, mais esta é emergente, do ANC. EmMoçambique, os historicamente privilegiados já não são só e necessariamente, os Brancos. Negro - homem - heterossexual - político do partido no poder são os novos privilegiados.
Estes são capazes de tudo para defender seus interesses. Ah disso são..! E o seu interesse à primeira vista é a perpetuação de sua condição de elite no poder.
Como a moda agora é a economia de mercado, a todo custo, se está a fazer a acumulação primitiva de capital.
Custe o que custar, até vidas.
Isso distingue, por exemplo, o crime do 'colarinho branco' do 'colarinho azul'. Pode ser que para o nosso caso esta comparação seja um exagero, mas é uma das possíveis. O mau funcionamento das instituições traz mais vantagens a este grupo de interesse do que a qualquer outro no nosso país. Isso pode explicar consideravelmente a 'inacção' nesta fase de acumulação primitiva.
Basta ler os textos de Hanlon e Marcelo Mosse, sobre os desfalques bancários, concessões de créditos sem garantias e mal parados para se chegar a tal conclusão. A radicalização do discurso anti-corrupção, contra o 'deixa andarismo' pode ser o vaticínio de uma outra fase do nosso capitalismo.
Mas não deixa de ser desleal, uma vez que se anuncia a procura de si, mas com olhos e dedos virados e apontando para o outro. Lembra-me a história do avô que dá tareia ao neto acusando-o de ter perdido o cachimbo, que está, justamente, na sua boca.
Daí o discurso populista de que Moçambique não é corrupto. Existem são alguns corruptos no seio dos Moçambicanos.Quem não aproveitou na época do 'deixa andar' vai ter que se contentar com o que conseguiu até aqui.
Esperemos que assim seja! Esta é a fase da consolidação económica da elite no poder e da alteração dos mecanismosde acumulação. Hoje, temos um ex-chefe de estado com acções e investimentos em minerais na RSA.
A segunda questão que pretendo colocar está relacionada ao que acabo de apresentar. Lógica situacional: Vale tudo, salve-se quem poder?As pessoas - independentemente da sua orientação política, do seu estracto cultural ou racial - têm a tendência de procurar tirar proveito individual de determinadas situações que se prestam a isso."(E.M).Neste aspecto posso até concordar com o Elísio. Talvez por isso mesmo aÉtica Moçambique, num de seus estudos sobre corrupção, distingue a Grande da Pequena corrupção. A Grande corrupção está, invariavelmente, ligada ao crime do colarinho branco, logo à elite no poder.
O cabrito come onde está ( ao invés de: trabalha onde está) amarrado, como seria no País imaginado por Mia, refere-se mais à pequena corrupção.
É interessante notar a 'cara de pau' que um dos membros da Ética Moçambique tem em querer passar por moralizador da sociedade, após ter reconhecido que usou ilicitamente dinheiro do Estado para construir residência própria. A justificação que deu ao 'Zé povinho' foi de que devolveu o dinheiro. Não roubara, levara sem pedir, como se de banco se tratasse, e devolveu sem juros.
Como moralizar a sociedade com pessoas deste tipo como referência de moral? Mas estas pessoas que fazem isto são da elite no poder. São elas que criam e recriam instituições, no sentido de organização, de que esperamos serem a solução dos nossos problemas, como é o caso da ÉTICA. Essas instituições já nascem condenadas ao fracasso porque nascem fracas. A sua fraqueza reside no fraco cometimento desses indivíduos em mudar uma situação e o estado de coisas que os beneficia.
Aceito que se deva fazer resistência às teorias de conspiração. Se não existe acção concertada no sentido de determinados indivíduos encontrarem-se para planificar, acertar as agulhas sobre como levar a bom termo todos aqueles casos apresentados pelo Machado, aceite-se a ideia de um consenso tácito. Não verbalizado, não escrito, não consta dos estatutos do partido, por isso mesmo tácito. Mas a ideia de que a pertença àquilo que Tibana chama de "geração da revolução" dá uma espécie de imunidade, isso gera. Basta conversar com qualquer membro com influência para perceber, pela sua arrogância. Como se dissesse: "você sabe quem eu sou? Ou de quem sou filho, primo, sobrinho etc?"
Este consenso tácito reproduz-se com a ineficiência das instituições, porque produz essa ineficácia. Mas a ineficiência não explica o consenso tácito. O que explica é a inacção não-concertada da elite no poder. Não concertada no sentido de que não necessita ser arquitectada, está lá...!
Os objectivos das classes no poder não precisam ser concertados, estão claros: perpetuar a sua condição privilegiada custe o que custar.
E, se a lógica situacional favorece, ela se perpetua.
Quem nos salva deste beco que parece sem saída?Homens Perfeitos: Individuos ou instituições?O argumento do EM segundo o qual a melhor forma de atacarmos os problemas do nosso País não é achar que podemos ter indivíduos perfeitos é aliciante, mas desilude para quem tem pressa.
O país vive um clima que não permite que se espere pelo desenvolvimento para que se exija pleno funcionamento das instituições. Talvez por isso mesmo a queda pelas teorias de conspiração.
Que alternativas se podem criar para se evitar acusações de feitiçaria,mas também evitar o desespero que se cria ao se anunciar a solução dos problemas pelo pleno funcionamento das instituições?
Parece que a natureza humana de tirar proveito das situações que se oferecem, desde que se perceba alguma vantagem nisso, tende a predominar.
Se somente instituições fortes podem controlar socialmente esse instinto, então, a espera é longa! É a espera do desenvolvimento.
A questão que se coloca é: quantos vão sucumbir à espera que se fortifiquem as instituições? O tempo necessário até que nos desenvolvamos e tenhamos instituições fortes é de desesperar..! Este é o segundo aspecto a que me referia atrás.As instituições esperam que os indivíduos as tornem fortes e os indivíduos que aquelas as disciplinem para que produzam instituições fortes. Este parece ser o dilema sociológico que reflecte a nossa condição, hoje!

Patricio Langa
Cape Town
27/04/05

Tuesday, April 26, 2005

Como debater

Continuo hoje a publicar os textos teóricos de Elisio Macamo sobre a forma de debater ideias:


Papo, paleio, testemunho (7)

Os três artigos anteriores mostraram, espero, o que fazemos quando debatemos. Fazemos essencialmente uma de três coisas: descrevemos o mundo, defendemos opiniões e motivamos os outros. O mais simples, como deve ser evidente, é descrever o mundo. É mais difícil defender opiniões e muito mais difícil ainda motivar outras pessoas. Facilita a vida interiorizar algumas regras simples que nos ajudem a alcançar os nossos objectivos. Na verdade, não só facilita a vida como também melhora a qualidade do debate público.
É simples descrever o mundo porque, em princípio, partilhamo-lo da mesma maneira. Se eu disser que está a chover, está a fazer frio ou está calor muitos vão concordar comigo. Podemos não estar de acordo sobre o que é muita chuva, muito frio e muito calor. Alguns até podem dizer que chuvisco não é chuva, que 15 graus não é frio e que 35 graus não é calor. Podem. Mas temos a mesma referência e, em princípio, a probabilidade de estarmos de acordo sobre isso é muito forte.
Quando descrevemos o mundo servimo-nos das bases desse acordo. Referimo-nos ao senso comum para fundamentar as nossas observações. Como vimos em ocasiões anteriores podemos, até, recorrer à autoridade de certas pessoas ou instituições para confirmar a validade das nossas observações. Uma boa descrição é uma descrição que apresenta claramente os seus critérios de validade. Se quero descrever a situação de pobreza no país tenho que fazer referência aos dois terços de moçambicanos em situação de pobreza absoluta, tenho que falar das coisas de que estão privadas, tenho que falar das condições vulneráveis em que vivem. Recorro a relatórios e estatísticas oficiais, à opinião de peritos na matéria e, talvez, ao próprio testemunho dos “pobres”.
O mais difícil é, conforme já dito, tentar convencer. Convencer significa levar as outras pessoas a abandonarem as suas próprias crenças ou, no caso de não terem nenhuma, a adoptar as nossas. Impomos, portanto, a nossa opinião aos outros. Isso não é fácil, sobretudo numa democracia. Como todos nós sabemos nos outros períodos da nossa história a coerção sempre conseguiu fazer isso. Acreditando ou não, muitos de nós exaltaram os valores do socialismo. Há, é claro, certas democracias que convencem também coercivamente. Nos EUA, por exemplo, um dos efeitos nefastos da guerra contra o terrorismo é a limitação da liberdade de expressão que se manifesta numa profunda hostilidade aos espíritos críticos. Nessas circunstâncias só mesmo os corajosos é que ousam criticar.
O acto de convencer envolve, em lógica, dois passos. O primeiro é normal e já conhecido: é preciso proporcionar as razões que fundamentam uma conclusão. Por exemplo, porque é que a pobreza é um problema sério? O segundo passo é que produz as dificuldades. A maioria das pessoas relaciona-se com o mundo e com as outras pessoas usando valores como intermediários. Pessoas com convicções religiosas, por exemplo, veem o mundo como algo feito por Deus. Isso influencia a maneira como eles o apreendem. Outros acham que o mundo foi feito para beneficiar os homens. Isso tem um efeito na forma como eles usam os recursos naturais. Há pessoas que têm opiniões assentes sobre a relação que as pessoas devem manter entre si: o amor ao próximo, o fim da exploração do homem pelo homem, o benefício individual, etc. Quando queremos convencer temos que apelar a estes valores que as pessoas têm. Temos que demonstrar às pessoas que com base nos seus próprios valores é incoerente não aceitar as conclusões que tiramos.
Por exemplo, se os nossos interlocutores são um grupo de tribalistas que acham que só um machangana é que pode ser governador de Gaza e nós queremos convencer essas pessoas a aceitarem a ideia de que um macua possa também ser um bom governador de Gaza podemos recorrer a esta estratégia. Podemos começar por identificar os valores dos tribalistas. Suponho que eles dêm muita importância à preservação da identidade cultural, ao uso da língua local, bem como ao trabalho em prol das populações locais. Se eu puder demonstrar que um governador macua é muito bem capaz de satisfazer estes critérios, se calhar até melhor do que um governador machangana, será difícil aos tribalistas não se deixarem convencer. Podem continuar a fazê-lo, mas essa atitude já não terá nada a ver com debate racional.
O que é mais difícil ainda é motivar as pessoas, “bater política” como se dizia no exército. Aqui a dificuldade reside essencialmente no facto de que não só é preciso fundamentar conclusões com base em factos e valores, como também mover as pessoas a fazerem determinadas coisas. A publicidade faz isto muito bem. É um dos melhores argumentos motivadores. Ela consegue fazer isso porque satisfaz uma boa parte dos critérios que esse tipo de argumentos deve reunir. É sólido no sentido de fornecer razões válidas e pertinentes; é moralmente correcto porque apela directamente aos valores dos seus interlocutores; finalmente, e mais importante neste tipo de argumentos, penhora a própria idoneidade. Ninguém se deixa convencer pela publicidade duma empresa com má imagem.
Quando queremos motivar, portanto, temos que satisfazer estes critérios. Um exemplo oportuno é convencer o eleitorado a votar em eleições locais. Para conseguir isto não basta demonstrar a importância do voto, nem convencer o eleitorado que não votar é contra os seus próprios valores. A mensagem tem maiores probabilidades de ser aceite se o eleitorado reconhece idoneidade na pessoa que faz o apelo. Um político que não se distinguiu pelo trabalho em prol dos seus próprios eleitores dificilmente conseguirá motivá-los.
Quem sabe, se calhar os altos níveis de abstenção têm mesmo a ver com a idoneidade dos que conduzem os orgãos locais.

Monday, April 25, 2005

Maria de Lurdes responde a Manuel Tivane

Manuel Tivane tinha deixado um longo comentário no final do último texto de Maria de Lurdes Torcato. Ela responde-lhe aqui:

É ou não é “show”?

Vi o comentário de M Tivane e cheguei à conclusão que, sobre o assunto em questão – a maneira de tratar os outros seja em que circunstância for - estamos cem por cento de acordo. Aliás partilhamos princípios gerais o que, à partida, não nos põe em campos opostos, mas não exclui que discordemos em casos particulares. Sendo assim este debate está encerrado até que o autor levante outro ponto sobre o qual eu discorde.

No entanto há um pontinho que eu quero comentar: se é ou não “show” o que temos visto da parte de alguns membros deste novo governo. Eu penso que tem muito de “show”, consciente ou inconsciente. No caso do ministro da Saúde, deixei isso mesmo implícito quando escrevi a propósito da sua postura perante os doentes e acompanhantes nas salas de espera, que “ele não o faz por acaso”. Se o ministro faz uma certa encenação das suas visitas, e para atingir um público o mais vasto possível chama a imprensa, eu não estou contra. Não é o teatro, quando feito nessa perspectiva, uma forma de educação e de mobilização?

Recordo uma visita que Samora fez a uma unidade de produção onde, diante do que viu, teria perguntado aos trabalhadores: Vocês precisam é de capataz (à maneira colonial), é ou não é? A resposta dos interpelados – dizem, eu não estava lá – teria sido um convicto “sim”. Passado algum tempo, foi aprovada na Assembleia Popular a “ Lei do Chicote” que me deixou arrepiada. Foi mais tarde abolida, diz-se também, por imposição da chamada “comunidade internacional” – o eufemismo para doadores, brancos, estrangeiros, etc.

Mas sei que o que M Tivane quer dizer, é que receia que seja apenas “show”, que está eivado de populismo, que talvez seja mais um logro e que nada resulte em termos de benefícios para melhorar a vida do povo. Aguardemos os resultados, estejamos atentos, continuemos críticos e façamos o julgamento depois. Eu continuo a ter em mente que vivemos numa realidade sócio-cultural muito complexa e sobre a qual fazer juizos de valor é muito arriscado.

Maria de Lourdes Torcato

Sunday, April 24, 2005

Continua a série

Aqui vai mais um texto do Elisio Macamo sobre as regras do debate:


A Renamo tem que ser apoiada (6)

Já vimos conclusões factuais e normativas. Falta mais um tipo de conclusão para fechar o capítulo sobre conclusões. A este tipo dou o nome de “recomendação” por não me ocorrer melhor rótulo. Este tipo de conclusão costuma ser uma exortação. Nela recomendamos um certo tipo de acção. É a espinha dorsal do debate político: vamos pedir ajuda; vamos reformar o aparelho do Estado; vamos criar uma unidade anti-corrupção; vamos rever a constituição, etc. No nosso país parece haver mais debate normativo – e mal – do que debate político no sentido de avaliação de cursos de acção.
Apesar da grande fanfarra que acompanha a Reforma do Sector Público há pouco debate sobre as medidas preconizadas. Debate-se, antes pelo contrário, a questão de saber se os funcionários são corruptos. Apesar do alarido que se faz à volta do alívio à pobreza não se fala das medidas em si, mas sim dos que estão a comer sozinhos. Apesar das grandes expectativas depositadas na NEPAD não se debatem os seus pressupostos; fala-se, quando se fala, de integração regional. Em suma, o nosso debate político é pobre na sua substância. É refém de opiniões. Mal fundamentadas.
O que é então uma conclusão de tipo “recomendação”? É uma conclusão que tem como premissa a ideia de que algo está mal e é necessário corrigi-lo. Esta é a forma mais simples de definir esse tipo de conclusão. A conclusão diz o que deve ser feito, mas mais importante ainda é o diagnóstico sobre o qual assenta. Esse diagnóstico é que devia informar o debate. Se a conclusão é que devemos reformar o aparelho do Estado o debate não se deve reduzir a dizer “esses não vão conseguir nada, são ladrões e corruptos”; o debate tem que ser sobre as razões que levam os decisores políticos a quererem fazer a reforma. Que leitura fizeram eles da situação? É pertinente? Convincente? Justificada?
Podemos ilustrar isto melhor com a conclusão “a Renamo tem que ser apoiada”. Temos aqui uma conclusão do tipo “recomendação”. Não é infrequente no nosso país, sobretudo da parte daqueles que acham que o país é desmesuradamente dominado por um único partido. Que diagnóstico antecede uma conclusão desta natureza? Podíamos pegar nos receios há pouco formulados e dizer, por exemplo, que a democracia moçambicana é demasiado parcial, que para se consolidar precisa não só dum governo forte como também duma oposição forte, que a oposição não é forte porque lhe faltam meios, etc. Partindo deste diagnóstico podemos, talvez, inferir que apoiando a Renamo poderíamos compensar algumas das insuficiências apontadas pelo diagnóstico.
Aí teríamos então o argumento que fundamenta a recomendação de concessão de apoio à Renamo. O debate já pode acontecer. Temos algo que está mal e uma ideia de como corrigi-la. Podíamos perguntar se de facto a nossa democracia é parcial; podíamos interpelar a premissa segundo a qual a consolidação da democracia carece duma oposição forte: será mesmo assim? Que exemplos temos? Podíamos, ainda, perguntar se a fraqueza da nossa oposição se deve à falta de meios; o que são esses meios? Finalmente, podíamos indagar se o apoio à Renamo é a melhor solução a esse problema: porque não à FUMO, MONAMO, PIMO, etc.? E o que significa “apoiar”? Dar dinheiro? Dar formação num seminário na Ilha de Inhaca financiado pela Fundação Ford? Integrar quadros da Frelimo nas fileiras da oposição?
O leitor atento vai reparar que a fundamentação duma conclusão deste tipo se apoia em conclusões factuais e normativas. Isso é legítimo. É perfeitamente legítimo justificar a necessidade de apoio à oposição com base no argumento segundo o qual já é altura de acabar com a arrogância da Frelimo ou com base no argumento segundo o qual a oposição seria fraca. Em ambos os casos não me subtraio ao dever de fundamentar as minhas conclusões. No primeiro caso tenho que proporcionar as razões que me levam a supor que a Frelimo seja arrogante assim como a pensar que isso seja um problema; no segundo caso tenho que demonstrar a fraqueza da oposição.
No fundo, debater é formar-se. Só pode debater quem está preparado para se informar. Para se informar é preciso aprender, avaliar factos, decidir se uma instituição é credível ou não. Esse processo educa. Forma. É como fazer sociologia: como é que são as coisas? Porque são como são? O que vai acontecer se forem alteradas? Vão-se alterar ou continuar na mesma? E o que significa “alterar-se” e “continuar na mesma”? Quando alguma coisa se altera, altera-se? E quando não se altera, não se altera? Debater é investigar, investigar é fazer sociologia, fazer sociologia é ser um cidadão responsável. Isso não significa, como é óbvio, que todos os moçambicanos devem fazer sociologia. Significa apenas que todos devemos desenvolver aquilo que Carlos Serra, o nosso sociólogo, chama de “mentalidade sociológica”. É a melhor forma de patriotismo que conheço.

Saturday, April 23, 2005

Acções concertadas

Fiquei um tempo à espera a ver se o Roberto Tibana respondia ao Elisio Macamo (post: Regresso de Elisio Macamo) mas como ele deve andar demasiado ocupado, lá pelo Gana, resolvi entrar eu nesta questão. A crítica da Lurdes de que há falta de debate no blog também serviu de incentivo.

Creio que a parte mais importante do texto de E. Macamo é a que transcrevo a seguir:

Não nego os roubos, as irregularidades eleitorais e todos os outros males que cada um de nós pode facilmente apontar no nosso país. Nego, isso sim, que a constatação da existência desses males seja também a confirmação da existência de uma acção concertada. Para isso ainda não vi nenhum argumento plausivel.

Ora há uma coisa que une esses males todos em Moçambique: a impunidade. E creio que é por aí que temos que encontrar os tais argumentos plausíveis que o Elisio Macamo reclama.
Comecemos pelas irregularidades eleitorais:
Nas eleições autárquicas ficou célebre o caso do sr. Albuquerque que, na Beira, foi apanhado com a boca na botija a falsificar editais a favor da Frelimo. Pois, apesar do flagrante delito, não lhe aconteceu absolutamente nada. Talvez porque ele afirmava, à boca cheia, que se o prendessem ele diria quem lhe deu as ordens para actuar como actuou.
Tivemos agora as eleições parlamentares e presidenciais e, por todo o lado, as irregularidades choveram, a favor da Frelimo. Alguém foi detido, acusado e condenado? Não, ninguém. Ouvi há dias que há uns fulanos da Renamo que estão detidos e vão ser julgados por irregularidades eleitorais. Da Frelimo, nada.
Vai o Macamo dizer que isto não tem nenhum significado? Que não é uma (in)acção concertada?
No caso do assalto ao dinheiro da banca, tão bem explicado pelo Joe Hanlon, quantos casos foram levados a tribunal? Nenhum. É por acaso ou porque os criminosos e os agentes da Justiça fazem todos parte da mesma "panelinha"?
Os jornais fazem, diariamente, denúncias de roubos escandalosos. Só a título de exemplo, o Savana denunciou, com pormenores, graves irregularidades do PCA da Electricidade de Moçambique. Foi ao menos aberto algum inquérito para saber se as acusações eram verdadeiras? Não, que eu saiba.
Há anos e anos que existem provas de que Moçambique é uma parte importante dos trajectos do tráfico de drogas. Já foi preso e levado a tribunal algum grande traficante? Não. Nenhum.
No famoso caso das 40 toneladas de haxixe foram apreendidos dois camiões carregados, com dois condutores e uma pessoa que acompanhava o transbordo. Pois não é espantoso que, até hoje, não se saiba onde os camiões foram carregar os contentores e onde os iam descarregar?
O Bairro Militar é conhecido e reconhecido como importante zona de venda de drogas pesadas. Já foi feita alguma coisa para reprimir, a sério, esse tráfico? Não. Chegou-se mesmo ao ponto de organizar uma ida de alguns dos principais dirigentes da área de segurança do país, fardados a rigor, pedir por favor aos traficantes que parem com o negócio.
Tem havido prisões de jovens moçambicanas que chegam do Brasil com cocaína. Há tempos houve uma que denunciou a pessoa que a tinha mandado ao Brasil. Essa pessoa confirmou mas só bastante mais tarde foi detida para, logo a seguir, ser posta em liberdade. Mas a jovem, muito provavelmente, ainda hoje está detida. Além disso os jornais foram rápidos a publicar o nome da jovem mas nunca o da mandante. É por acaso isto tudo, Elísio Macamo?
Das trapalhadas à volta dos casos Cardoso e Siba-Siba nem é bom falar. Os órgãos do Estado ligados à justiça parecem fazer todos os esforços para atrapalhar as investigações e impedir a Justiça, ao contrário do que seria a sua vocação. Ninguém lhes deu ordens para isso?
Quando o Anibalzinho foi libertado a primeira vez a B.O. estava guardada por três distintas forças, todas elas sob o comando do ministro Manhenge. Mas ele saiu quando era conveniente que saísse para não pôr em risco o filho de quem nomeou o ministro Manhenge. Não é concertado isto?
O Procurador Geral da República, nomeado pela mesma pessoa que nomeou o ministro, é famoso pela sua inacção em relação a crimes do poder. Porque é que ninguém o substitui por outro mais activo?
Ele costuma dizer que "em Moçambique ninguém está acima da lei" mas eu, baseado na nossa realidade, continuo a frase dizendo: excepto os dirigentes, militantes e simpatizantes do Partido Frelimo e seus familiares. Porque nem um só desses foi acusado e julgado, apesar de ser visível que é nessa camada que se desenvolvem os piores casos criminais.
Não é isto tudo uma inacção concertada, Elisio Macamo? Se não é, por favor explique-me por que razão o anterior Presidente da República não demitiu os dirigentes que não actuaram contra os criminosos.
Diz o povo que, quem cala, consente. Ora em todos estes aspectos o anterior Presidente manteve-se absolutamente calado.
E, já que estamos nos provérbios, amigo Macamo, recordo-lhe o outro que diz que o pior cego é aquele que não quer ver.
Percebo que seja dificil olhar para pessoas que nos habituámos a respeitar, que são nossos amigos ou mesmo familiares e pensar que se tornaram criminosos protegidos por uma poderosa rede de influências politico-económicas.
Mas negar que essa rede existe é (outra frase da sabedoria popular) tapar o sol com uma peneira.

Desacordo

A Maria de Lurdes Torcato está em desacordo com o Manuel Tivane. E diz-nos aqui porquê:


“Há sinceridade nisso?”

Um contribuinte neste blog - Manuel Tivane – tem uma curiosa forma de se apresentar a debate e foi essa forma que me provocou a vontade irresistivel de lhe responder. Começa por fazer elogios a dois colunistas “da nossa mídia”, um deles o Machado, do qual diz “que não se acomoda perante injustiças e graves contradições, sobretudo por parte dos poderes políticos”. Estou absolutamente de acordo, se Tivane inclui como eu, as críticas ao desleixo e à corrupção, aos privilégios e benefícios ilícitos e imorais, ainda mais tendo em conta a pobreza do estado moçambicano.
Depois faz um elogio mesclado de crítica ao Mia Couto, com uma implícita censura “aquele seu jeito de deixar sempre um mandamento, uma lição”. Não tem mal nenhum nós gostarmos de umas coisas e não gostarmos de outras, na mesma pessoa. Só que exactamente aquilo que Tivana não aprecia no Mia, foi uma “lição” que veio a aplicar na sua própria vida pessoal. Será que está a ser sincero, ou o intróito é apenas um justificativo para a severidade com que discorda do ministro da Saúde, discordância que alarga a outros incluindo a vice-ministra da Agricultura? Afinal, as coisas não estavam tão mal assim antes destes ministros, e o Machado não estava certo nas suas críticas “aos poderes políticos”?

M Tivana não é o único que nos últimos tempos, para grande surpresa minha, aparece a escrever contra estes e outros ministros que se empenham em endireitar aquilo que pensam que pode e deve ser endireitado, nos postos para onde foram nomeados. Digo com surpresa minha, porque estava convencida que neste país se havia um consenso quase unânime, era na condenação da corrupção, da falta de escrúpulos morais, quase todos associados aos cargos do estado. Afinal, a luta contra isso está a cair mal em alguns quadrantes. Tivana procura levar-nos a crer que não está contra as intenções, mas contra os métodos. Mas demora-se muito mais a dizer, por exemplo, que o Dr Ivo tem mau feitio, é carrancudo, não cumprimenta as pessoas, é mal humorado...do que a falar nos “hospitais que andam visivelmente melhor”. Vai mesmo avisando contra “os ressentimentos” que o ministro está a causar, em vez de chamar a atenção dos malavisados que alimentam ressentimentos. Diz que a má-criação do Dr. Ivo já foi vista na TV. Eu não a vi nas várias reportagens das visitas a hospitais em funcionamento, e a “paredes de blocos” levantadas há vários anos para virem a ser a futuros hospitais...mas por lá ficaram esquecidas.
O Dr Ivo Garrido é em primeiro lugar um médico e o autor não baseia certamente as suas críticas em opiniões de doentes que foram vistos ou tratados por ele. Aliás eu já tinha ouvido uma pessoa da minha família censurar o Dr. Ivo, muito antes de ele ser ministro, com uma frase mais ou menos assim: “É um chato com o pessoal. Só os doentes é que gostam dele”. É porque ele tem um alto sentido profissional, em termos científicos e em termos deontológicos, que muitos na profissão de atender doentes o detestam. Porque ele próprio detesta os que abandalham a sua profissão, quer o enfermeiro que recebe dinheiro por baixo da mesa de um pai desesperado com uma filha doente nos braços, quer o director de enfermaria que convive indiferente com a sujidade, sabendo que a falta de assépsia pode matar um doente internado (ou mesmo vários...). A sua farda imaculadamente branca, é só por si uma lição de medicina. E a sua postura de aproximação física ao doente é outra lição, e ele não a exibe por acaso.

Igualmente não consegui aperceber-me da falta de urbanidade e polidez da Vice-Ministra da Agricultura, mas admito que M Tivane sabe porque o diz. Eu vi a sua exaltação emocional, explicando a um repórter o porquê do seu despacho cortando as contas de telemóvel pagas pelo orçamento do estado, e o parque ostensivo de 4x4 no ministério quando fazem tanta falta no campo. Expôs-se tanto como o colunista Machado, ou até mais, nas críticas aos privilégios que chocam a consciência moral. Eu devo confessar que aprecio a INDIGNAÇÃO contra os males deste mundo como a injustiça, a corrupção, a ostentação da riqueza ao lado da miséria, a violência e o abuso contra os mais fracos e indefesos. O episódio do evangelho que mais me impressionou nos anos da minha educação católica, e que ainda hoje aprecio quando já me esqueci de tantos, é o de Jesus expulsando à vergastada os vendilhões do templo. Não sei concretamente o que faziam os “vendilhões” no templo, mas eles são o símbolo de todos os que desrespeitam e abandalham aquilo que para muitos outros é sagrado. Por isso não compreendo nem partilho as opiniões do contribuinte para o Blog, Manuel Tivane.

PS – Antes que se levantem suspeitas por causa dos meus elogios aos dois ministros – nunca fui “puxa-saco de estruturas” - quero esclarecer as minhas relações com eles. A Sra vice-ministra, vi-a pela primeira vez na TV. Quanto ao Dr Ivo, fiz-lhe uma entrevista em 1971, de que ele provavelmente nem se lembra, quando ele era estudante universitário e dirigente associativo, já muito mal visto pelas autoridades e pelas chamadas “cabeças bem pensantes” da época. Quando o voltei a ver, há meia dúzia de anos, passei a ser sua doente, até o Presidente lhe ter dado mais altas funções. Perdi por isso o médico, mas consola-me a ideia de que milhões de pessoas que precisam de hospitais, de médicos e de enfermeiros, podem beneficiar das suas “intenções”, mesmo que os “métodos” inspirem ressentimentos.

Por último, penso que o Blog tem sido rico em ideias mas pobre debate. Os dados já foram lançados, as regras do jogo também, mas o debate, a discussão, aquele pôr e contrapôr de argumentos que resulta em consensos tácitos que, mesmo pequeninos, são passos para conquistar mais uns metros de caminho, esse debate parece-me que ainda não arrancou a sério.

Friday, April 22, 2005

Como debater

Prossegue aqui a série de textos de Elisio Macamo sobre as formas de debater:



A Renamo não presta (5)

Para uns a Renamo não presta, para outros presta. É uma questão de preferência. Preferências estão profundamente ligadas a gostos. E gostos, como sabemos, não se discutem.
Na verdade, não é bem assim. Os gostos podem muito bem se discutir. Só que a sua discussão é duma natureza diferente. Quando alguém tira uma conclusão factual podemos perguntar se as razões que apresenta são adequadas, se se apoia em alguma autoridade, etc. Gostos são conclusões normativas. Obedecem a uma lógica completamente diferente.
Faz sentido na vida partir sempre do pressuposto segundo o qual as pessoas são capazes de justificar as suas preferências. Isto é, que as pessoas têm sempre razões para fundamentar os seus gostos. Estas razões são obviamente de natureza subjectiva. Mas existem, ou melhor têm que existir. Conclusões normativas exprimem, na maior parte das vezes, uma opinião em relação a acções, crenças ou coisas. Essa opinião constitui uma apreciação. Noutros termos, quando tiramos uma conclusão normativa dizemos que uma acção, por exemplo, é boa ou má, que uma coisa é feia ou bonita ou que é desejável ou não.
Isso pressupõe, pelo menos teoricamente, que temos critérios que nos permitem chegar a essa conclusão. Ou por outra, decidimos que uma coisa é má com base num padrão que temos em mente. Esse padrão ou esses critérios são de natureza geral. Aplicamo-los ao objecto, acção ou crença que nos interessa e decidimos se eles satisfazem esses critérios. A discussão que se seguirá concentrar-se-á nesses critérios bem como na decisão sobre se eles foram satisfeitos ou não.
Vamos exemplificar a coisa com recurso à conclusão “a Renamo não presta”. Esta é uma opinião muito forte. Não é rara no debate político nacional, sobretudo na rua. Muitas vezes ninguém a desafia porque se parte do princípio de que se trata da afirmação duma verdade. Para o bem da saúde do próprio debate, porém, era bom que esta opinião fosse desafiada. Podemos partir do princípio segundo o qual quem emite esta opinião tem em mente certos critérios gerais que a Renamo não satisfaz. Por exemplo, se calhar a pessoa acha que um partido político da estatura da Renamo devia abordar as questões nacionais de forma construtiva, ter militantes capazes e não atribuir as suas derrotas à fraude. Esses podiam ser os critérios gerais. É natural que cada um deles deveria, por sua vez, também ser justificado. Por exemplo, porque um partido político deve abordar questões nacionais? E o que significa abordá-los de forma construtiva? O que são militantes capazes? Em que circunstâncias não se devem atribuir derrotas à fraude?
Respondidas estas questões seria ainda necessário verificar, por exemplo, se estes critérios são satisfeitos por outros partidos políticos. Se não o são, porquê? Não será esperar demasiado dos nossos partidos políticos duma forma geral?
Mas mais importante ainda deveria ser a análise da própria Renamo. Satisfaz ou não os critérios enumerados? Só nessa base está justificada a conclusão segundo a qual a Renamo não presta. Naturalmente, algumas pessoas não vão concordar com os critérios gerais. Elas podem sugerir que eles são vagos e não descrevem de forma adequada o que deve ser o perfil dum partido. Podem até dizer que os critérios são parciais em relação a um outro partido que, na circunstância, os satisfaria a brincar.
O que importa aqui notar é que a partir do momento em que a discussão é à volta dos critérios ela assume um outro carácter. Já não é a discussão tipicamente circular de Moçambique em que uma pessoa diz que a Renamo não presta porque não presta. É uma discussão que interpela os critérios que fundamentam uma opinião. Esse tipo de discussão é extremamente útil à democracia. Através dele forma-se uma comunidade de debate que detém, até, o potencial de produção de valores consensualmente partilhados. Que melhor coisa poderia acontecer à nossa democracia senão um consenso à volta do que faz um bom partido? Não residem precisamente aí as enormes dificuldades que temos de dialogar, de trocar ideias sobre o passado, presente e futuro do país? Não será justamente a falta de consenso sobre estes critérios que impede o debate sobre questões mais fundamentais? Não será por causa disto que procuramos refúgio em acusações de feitiçaria, isto é afirmações que ganham plausibilidade por serem bizarras? Quando falamos de corrupção, de ladrões no governo, de políticos incompetentes, etc. quais são os critérios que temos em mente? São partilhados por todos, pela maioria ou são profundamente arbitrários e subjectivos?
O debate sobre gostos não precisa de terminar com um vencedor e um vencido. É possível e perfeitamente normal que não se chegue a acordo sobre os critérios. Gostos e preferências não são factos. A questão de saber se está a chover ou não é diferente da questão de saber se a chuva é boa coisa ou não. Uma é factual, a outra é normativa. A questão de saber se a Renamo presta ou não tem dois desfechos possíveis. Podemos, com base nos critérios gerais, concordar se a Renamo os satisfaz ou não. Podemos também não concordar em relação aos critérios. O único que é profundamente insatisfatório é insistir sempre no argumento circular de que a Renamo não presta porque não presta.

Fins e meios

Recebi do Manuel Tivane a carta que se segue:

O Machado da Graça e o Fernando Lima são colunistas de minha leitura prioritária na nossa mídia, quer pela limpeza e escorreição da sua escrita (coisa rara, muito rara nos jornalistas do dia), quer pela contundência dos argumentos.
O Mia Couto já nem tanto (não pela falta de qualidade da sua escrita) , pois, não sei porquê mas incomoda-me aquele seu jeito de deixar sempre um mandamento, uma lição e, normalmente, sempre dentro do politicamente correcto. Que saudades das suas "imaginadâncias". Para mim foi do melhor que o Mia fez. Mas quem sou eu para questionar o gosto de tantos admiradores por todo o mundo. Tenho que me render à força dos argumentos... e das provas dadas.

Mas, voltando ao M. da Graça e ao Lima, e parafraseando Eduardo Águalusa, deAngola, (e fazendo a transposição para Moçambique), diria que os intlectuais moçambicanos estão a libertar-se da sua própria história, da qual têm estado prisioneiros e amordaçados (muitas vezes por auto censura ou até por mero instinto de sobrevivência). Antes tarde que nunca.

Eu vergo-me à intervenção honesta e corajosa especialmente de M. da Graça, que não se acomoda perante injustiças e graves contradições, sobretudo por parte dos poderes políticos. Ninguém mais legítimo para criar um blog destes. Bem haja!

Venho a terreiro, tentar colocar em debate a questão da postura, da correcção e do respeito mínimo dos dirigentes e líderes para com os dirigidos. Já vi ou ouvi algures que a força dos grandes se vê pela forma como tratam os pequeninos.

Lembro-me a este propósito de um artido de M. Couto em que se lamentava de ter ido a casa de um amigo moçambicano, e de ficar arrepiado pelos modos com que tratava o empregado doméstico. Reví-me um pouco naquela crítica, envergonhando-me, e tentei também, ao meu nível, melhorar neste aspecto. Continuo a fazê-lo, para combater, quiçá, antigas e tristes influências e resquícios de um natural mau feitio.

É que, como tem havido ultimamente vários casos de sucesso/competência em que os protagonistas primam pela incordialidade, para não dizer má criação e mesmo casmurrice (v.g. Filipe Scolari, Mourinho e Semedo) pode ficar a ideia de que para se ser competente é preciso ser-se rude e grosseiro e que a justeza dos fins até justifica a falta de consideração e respeito pelas pessoas.

Tanto quanto me apercebo, em ambientes civilizados, quer lá fora quer entre nós, o estilo de dirigismo do tipo capataz é cada vez menos aceitável, pois causa dos danos colaterais que acarreta, e por deixar ressentimentos, mesmo que alcance objectivos e metas. Os ressentimentos geram vinganças, que muitas vezes apenas são adiadas. É a natureza humana.

Hoje, mais que a mera prosperidade na execução de uma tarefa, cargo ou função, promove-se a "Prosperidade Pacífica", que seja competente, que alcance objectivos, que atinja metas, mas que seja pacífica, que seja harmoniosa, que seja "ambiental".

Hoje já não se quer, nem é aceitável, um chefe que ande aos berros, que seja resmungão, que não respeite nem demonstre consideração pelos subordinados e colaboradores.

Esse tipo de chefe, que impera pelo terror, mesmo que cumpra muitas das metas, fá-lo duma forma que causa infelicidade, angústia e aflição a muita gente, pelo que o mérito do cumprimento dos objectivos é apagado.

Hoje quer-se um líder, assim como um pai, ou um marido, que não precise de andar aos gritos e sempre amuado para que os filhos cresçam educados e sejam bons estudantes e cidadãos.

Um verdadeiro líder pode ser rigoroso e exigente, mas é cordial e camarada. Respeita os outros e, como é também competente, alcança os objectivos de forma harmoniosa ("sustentável", é como se usa dizer, não?).

O verdadeiro líder desenvolve a habilidade para empolgar os colaboradores e obtém o seu engajamento e concurso nas causas que promove.

Basicamente, o nosso ministro da saúde é uma pessoa carrancuda e muito mal humorada. Isto é muito mais que sabido. Por norma, não cumprimenta as pessoas comuns do povo, por exemplo se as encontra no elevador. Enfim, e tem muito mau feitio. É o mínimo que se pode dizer...

Triste é que, por ser pessoa inteligente, culta e competente, alcança objectivos, ou pelo menos parte deles, podendo levar à ideia de que para pôr as coisas a funcionar nas organizações é preciso ser-se assim, grosseiro e até malcriado, como aliás já deu demonstrações disso em directo para as televisões.

O povo aplaude o animado folklore, vendo algumas regalias das elites intermédias a desaparecer, mas sobretudo porque algo está a resultar e os hospitais estão a funcionar visivelmente melhor. Mas será que isso não pode ser conseguido com boa educação e fineza, ou seja, com respeito pelas pessoas, ainda que usando de rigor e firmeza? Eu preferia que fosse pelo outro método, o da prosperidade pacífica. Enfim, o Ivo que se cuide com os ressentimentos desnecessários que está a criar...

Vamos suster os excessos, o despezismo, a inércia e malandragem nas instituições públicas, mas faça-mo-lo com correcção e humanismo.

Dêmos bons exemplos aos cidadãos, pois, como disse o poeta “Não basta que seja pura e justa a nossa causa, mas é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós”

P.S. O apelo é extensivo à Vice-Ministra da Agricultura pois, por mais legítima que sejam as suas razões e intenções, não deve deixar de ter presente os mínimos de urbanidade e polidez exigíveis a um cargo público. O combate ao deixa-andar não tem de ser feito com brutalidade.

Subscrevo o programa destes ministros. Abomino a forma como estão a tentar consegui-lo executar.

Macamo responde a Teixeira

Caro Zé Teixeira

Muito obrigado por este maravilhoso texto de discordância profunda. Concordo plenamente consigo que o debate, para ser debate, tem que ser livre. O seu texto revela um profundo conhecimento das regras do debate e é por isso mesmo que é agradável de ler, apesar de discordar; é por isso mesmo que é útil para este debate, apesar de discordar.
Os textos sobre a "competência no debate" foram escritos a pensar em pessoas que gostariam de participar no debate público, mas têm dificuldades em articular o seu pensamento e, sobretudo, por não dominarem as técnicas de expressão são vulneráveis aos que usam o domínio que têm das regras de argumentação e da língua para fazer passar maus argumentos. Eu próprio faço também recurso à retórica, mas sempre depois de ter formulado claramente - pelo menos para mim próprio - o meu argumento.
Mais uma vez, portanto, obrigado por esta chamada de atenção e obrigado, sobretudo, por mostrar com o seu texto discordante que as regras do debate não nos regimentam a um pensamento único. Comprometem-nos apenas com a utilidade da discussão.

Elísio Macamo

Thursday, April 21, 2005

Debate

Apesar de o meu amigo Teixeira ter receio de que estes textos do Elísio Macamo se transformem em regras obrigatórias do blog, vou continuar a publicá-los porque me parecem extraordinariamente pedagógicos.
A propósito, lembro o que alguém uma vez me disse sobre o Picasso. Segundo essa pessoa o grande pintor espanhol, na sua juventude, estudou a fundo a pintura dita clássica e só quando dominou as suas tecnicas se sentiu abalisado para as começar a subverter.
Para muitos de nós é ainda útil que nos ensinem as tecnicas clássicas do debate.
Aqui vai mais um texto:

A Renamo é um partido político (4)

Veja se nota a diferença entre estas três afirmações: (i) a Renamo é um partido político; (ii) a Renamo não presta; (iii) a Renamo tem que ser apoiada.
Quando pedi a uma das minhas filhas para me dizer se notava alguma diferença entre estas três afirmações ela disse-me, enigmaticamente, que só uma é que era correcta. Não me disse qual delas.
A verdade, contudo, é que cada uma destas afirmações é uma conclusão. Trata-se, todavia, de conclusões de natureza completamente diferente. Essa diferença tem implicações para a forma como as avaliamos. A primeira conclusão é factual, a segunda normativa e a terceira é uma recomendação. Portanto, temos factos no primeiro caso, valores no segundo e recomendações no terceiro.
É natural que haja diferenças na avaliação de cada uma destas conclusões. Todos nós sabemos que contra factos não há argumentos, que gostos não se discutem e que o que deve ser feito deve ser feito. A questão que se coloca, portanto, é de saber se os factos são sólidos, como se justifica o juízo de valor sobre uma determinada coisa e porque se deve fazer o que deve ser feito.
Vamos por pequenos passos.
Neste artigo vamos avaliar as conclusões factuais. Nos dois seguintes apreciaremos as conclusões normativas e as que fazem recomendações, respectivamente.
A Renamo é um partido político. Porque é que esta conclusão é factual? Simples, ela é factual porque estabelece um facto, isto é afirma o que existiu, existe ou existirá e, sobretudo, apoia-se em informação factual que pode ser verificada. A verificação pode ser por meio de estatísticas ou do testemunho duma autoridade. A expressão “contra factos não há argumentos” quer dizer mesmo isso. É fácil chegar a acordo sobre constatações como “isto é uma árvore”, “está a chover”, “ontem houve inundações no Save”, “a província de Nampula é a mais populosa de Moçambique”, etc.
Mesmo uma afirmação como “neste país a maior parte dos governantes é do sul” é factual – se for verdade – e, por isso, válida como descrição dum estado factual de coisas. A interpretação é um outro assunto, mas isso vai-nos ocupar no último artigo da série.
Quando tiramos conclusões factuais apoiamo-nos em vários alicerces. Esses alicerces devem responder a três perguntas, nomeadamente: (a) se dispomos de dados suficientes e apropriados, se (b) nos apoiamos em autoridades dignas de crédito e, finalmente, se (c) distinguimos claramente entre factos e inferências.
Podemos ver isto no caso da conclusão sobre a Renamo ser um partido político.
Que dados são necessários para fundamentar uma afirmação dessa natureza? Parece evidente que um dado muito importante é se a Renamo goza do estatuto jurídico de partido político. Para o efeito, terá que estar registada. Para se registar precisa de satisfazer certos critérios que são aceites, no nosso país, como os atributos que tornam um grupo de pessoas num partido político. Independentemente do que sentimos em relação à Renamo o facto de ela satisfazer esses critérios é suficiente para merecer a designação de partido político. O registo constitui um dado apropriado para determinar isso.
Podíamos também nos apoiar na opinião duma autoridade. Essa autoridade tem que ter competência para esse efeito. O Ministério da Justiça ou a Comissão Nacional de Eleições têm essa autoridade. A Liga Muçulmana não; o Banco Mundial não; o Parlamento Britânico não. Essas instituições podem emitir uma opinião sobre o estatuto da Renamo, mas não podem confirmar ou infirmar a facticidade desse estatuto. Já agora, nem mesmo o presidente da República, no sistema democrático que temos, tem autoridade suficiente para confirmar essa facticidade.
Por último, podíamos, com base em palpites fundamentados e claramente expostos, inferir a conclusão. Isso é legítimo. Podíamos a partir da sua apresentação pública, do seu perfil, das suas actividades e dos seus pronunciamentos considerar que se trate dum partido político. Esta inferência pressupõe, naturalmente, que tenhamos em mente critérios partilhados amplamente na sociedade. Esses critérios não podem ser subjectivos. Não podemos, por exemplo, dizer “para mim um partido político é aquele que tem uma perdiz na sua bandeira”. Bom, podemos, mas nesse caso não estaremos a tirar uma conclusão factual, mas sim a formular um juízo de valor.
O que estes critérios querem dizer deve estar claro: as únicas razões que podem fundamentar uma conclusão factual são as que acabamos de ver aqui. Não precisam de ser formuladas de cada vez que dizemos “ a Renamo é um partido político”; mas se formos chamados a defender a conclusão devem ser activadas. Só em pleno conhecimento dessas razões é que podemos tirar esse tipo de conclusões.

Será censura?

Recebi do Zé Teixeira o seguinte texto em que contesta algumas opiniões aqui colocadas sobre o post Uma Voz Divergente:

Caro Machado

Decidi mesmo escrever, se quiseres coloca, se não quiseres claro que compreendo.

DO MÉTODO DE CONVERSAR

Escrevo-te, a medo, e pelo texto seguinte compreenderás o receio que este vulgar mortal adquiriu em participar no teu blog. Faço-o por causa da reacção ao "Uma Voz Divergente", esse texto discordante do tom do Ideias Para Debate, o qual culmina num: "O mundo está super-prenha de palavras de pseudo-intelectuais e intelectuais! Acção amigos...acção!".Não concordo com as ideias que ali são expressas. E apreciei, no global, os argumentos sociológicos na resposta do Patrício Langa.
Tal como estou a apreciar, e na expectativa, os textos de Elísio Macamo, que me eram desconhecidos e cuja apresentação aqui PL então provocou. Portanto não é ao nível da concordância ou discordância com a essência dos argumentos que aqui venho.O que me surpreende é a reacção, o seu conteúdo. Sérgio Cruz, a voz discordante, opinou, provocou. A reacção não foi negar-lhe as ideias e a argumentação. Foi, acima de tudo, declará-lo incompetente para o debate. E logo de seguida apresenta-se, e sustentado no peso simbólico de um grande académico, o modo correcto de debater (talvez até transformado em princípios editoriais do blog), esse modo do qual o discordante opinador surge deficitário, é claro.
Assim sendo, e pelo que PL escreveu e pelo que vou lendo de EM, e me atrevo a prever, há um modo correcto de argumentar - o qual se espera vir a ser o modo de fazer (repara que sem latim) este blog: é o de res-pei-to-sa-men-te-a-pre-sen-tar-a-cor-rec-ta-ar-gu-men-ta-ção. E, subentende-se, numa linguagem dita neutral, aparentemente clara, reclamada como sem múltiplos significados.
(Auto)Censória esta linguagem? Permite-me o quase-parêntesis para me fazer entender: é-me permitido dizer "manipular conceitos", "olhar a realidade", "amar a verdade", "articular perspectivas", "fazer recuar oponentes", "escrito a correr", "falar sem pensar", etc. Tudo metáforas fisiológicas reclamando ou negando objectividade e eficiência na análise. Mas Langa censura "ejacular", outra metáfora fisiológica, prenhe de significados (rapidez, inutilidade, auto-complacência, etc). Sei, por experiência, que o português de Moçambique é mais casto do que o meu. Mas com "ejacular" nem sequer estamos no domínio do vernáculo (e sobre a minha defesa da utilização não-profissional do vernáculo já terás lido). Estamos sim na delimitação das metáforas aceitáveis, estamos no domínio do disciplinar o uso da língua, do simbólico, dos sentidos aceitáveis no diálogo interpretativo.
Para quem está no senso comum (a norma da "boa-educação" desligada da sua conjuntura classista, temporal, local) tudo bem, para quem está no registo sociológico (ainda que in-blog) isto é a mera reprodução de uma disciplina que se espera não lhe ser invisível.(Auto)Censório aquele método? Permite-me o não parêntesis. Tenho assistido a inúmeros debates e em muitos e diferentes contextos, geográficos, sociais, linguísticos, profissionais. Em todos , em todos há formas compósitas de argumentação: silêncios, provocações, expressões faciais e corporais, onamatopeias (e até apupos), demonstrações colectivas, quantas vezes insultos, humor, amuos, complicações e hesitações, ironia, eu sei lá.
E, sem reclamações "culturais", lembro alguns diálogos platónicos ditos fundadores onde a argumentação não explanativa é dita irónica mas só o respeito escolástico não a afirma sarcástica (mero ex. Protágoras) . Ou seja, o tipo-ideal do processo argumentativo não é esse, mas a(s) realidade(s) torna(m-se) essa(s). E é com isso que devemos (ou temos que) coabitar, em quadros mais ou menos fluídos de interpretação.
Não quero negar a pertinência e a excelência da pedagogia da argumentação que aqui Langa encetou e Macamo desenvolve(u). Nem a sua utilidade. Também não estou aqui para ser do contra. Mas arrepio-me com alguns dos seus efeitos. Neste caso o do enquadrar, disciplinar (mais uma palavra nada neutral) do Ideias Para Debate. O qual, se me permites, não lhe potenciará a capacidade de debate (como algum senso comum aceitará diante do "capital simbólico" dos académicos), a capacidade analítica.
Em meu entender provoca mesmo o efeito da ininterpretação.Foi proclamada a incompetência do texto "Uma Voz Divergente", "deitou-se para o lixo" (será metáfora aceitável?). Mas nele está tudo o que é necessário. Uma hierarquia de valores e de objectivos. A qual surge indiscutida porque indiscutível, portanto naturalizada. Está ainda uma desvalorização de actividade intelectual (a qual surge, quase explicitamente, como a ligada ao que antes se chamava "humanidades"), e desse modo postulada uma hierarquia de saberes. Está um método político, um primado da acção. De forma grosseira posso até sintetizar.
Num pequeno e nada cuidado texto Sérgio Cruz apresentou uma "filosofia", ali disponível para ser interpretada, criticada e, até, rebatida. Quantas páginas (e num blog, ainda para mais, terra de textos curtos) precisariam tantos (de nós) para condensar tanta argumentação? Interpretável.Incompetência? Como? se estão lá todos os argumentos para um debate. Preconceituoso? Claro, mas em quê e com efeitos?
Pois, meu caro Machado, o que é realmente fundamental, o que me arrepia, é que aquilo que Sérgio Cruz sintetizou, aquilo que "foi para o lixo", chama-se tecnocracia. Ali "deselegante", noutros tantos sítios "Projecto/Programa". E esta tecnocracia é não incompetente mas sim o pensamento dominante. Reduzir esta amostra que te entra blog dentro a incompetência e preconceito porque não segue as regras certas da conversação (e da etiqueta?) é um assustador sinal.
De quê, meu caro? Em meu entender, sinal de mera tecnocracia. Ininterpretativa.
Abraço para ti e para os participantes deste Debate tão bem-vindo.

Wednesday, April 20, 2005

Argumentos

No texto de hoje Elísio Macamo fala-nos do que é argumentar, coisa que muitos de nós ignoramos, como se pode ver em alguns textos de polémicas nos nossos jornais:




Argumentar (3)

Argumentar é tirar conclusões. Uma conclusão é uma afirmação para a qual temos razões. Conclusão: Está a chover. Razões: está a jorrar água de cima; não posso ir à praia hoje; a esteira no quintal está a ficar molhada.
Conclusão: A Frelimo ganhou as autárquicas. Razões: os resultados eleitorais mostram que ela teve mais votos que a oposição; a comissão nacional de eleições declarou-a vencedora. Conclusão: Alguém me enfeitiçou. Razões: não sou promovido no serviço; os médicos não conseguem descobrir a doença que tenho.
Conclusão: o ministro fulano de tal é corrupto. Razões: leva um estilo de vida incompatível com o seu salário de ministro; a cooperação sueca decidiu cortar o seu apoio a projectos do seu ministério. Etc.
No fundo, qualquer pessoa pode tirar conclusões. Mesmo os que argumentam mal. Por isso não basta dizer que argumentar é tirar conclusões. Deve-se acrescentar a isso a capacidade de fundamentar as suas conclusões. Como é sabido há conclusões fundadas e conclusões infundadas. A diferença entre um bom argumento e um mau argumento é exactamente a diferença entre uma conclusão fundada e uma conclusão infundada. É a diferença entre apoiar a conclusão em razões fortes ou não.
Muitas vezes tiramos conclusões sem precisarmos de tornar explícitas as razões. Isso é normal. De resto, partilhamos o mesmo mundo e, em princípio, existe entre nós um certo consenso sobre o material de que esse mundo é feito. Seria extremamente estranho se, por exemplo, sempre que dissesse a alguém que ontem tinha chovido tivesse que acrescentar que sei isso porque os serviços metereológicos o disseram, porque certas coisas ficaram molhadas, etc. Depois de algumas intervenções desse género as pessoas fartavam-se e passavam-me um atestado informal de desequilíbrio mental.
As pessoas fariam isso porque há coisas que são evidentes.
Há muitas outras que não são evidentes. Sobretudo no campo político. Mas justamente no campo político deparamos constantemente com conclusões problemáticas que ninguém julga necessário fundamentar porque, aparentemente, são “evidentes”. As acusações de corrupção fazem parte dessas conclusões não fundamentadas. Qual é, por exemplo, a base da acusação segundo a qual um determinado ministro é corrupto? O facto de viver acima do seu salário como ministro? O facto de “toda a gente saber” que ele é corrupto? Que tal se a base do seu estilo de vida for uma lotaria que ganhou numa viagem fora do país? Que tal se “toda a gente” for apenas um grupo de pessoas que tem um interesse especial em manchar a imagem desse ministro ou do governo?
Atenção. Estas interrogações não querem pôr em causa a realidade da corrupção no nosso país. É bem possível que ela seja mesmo tão séria quanto se diz ser. O que se pretende dizer aqui é simplesmente que quem tira uma conclusão tem a obrigação de verificar se as razões que tem para a sustentar são suficientemente fortes.
Em lógica as razões têm o nome de “premissas”. Há essencialmente dois tipos de argumentos. Os argumentos dedutivos em que as conclusões são válidas por força da solidez das premissas. Ou por outra, se as premissas são fortes a conclusão não pode estar errada. Os argumentos indutivos em que as conclusões são plausíveis. As premissas só precisam de substanciar uma especulação. Nos dois últimos artigos desta série analisaremos esses tipos de argumento mais de perto.
A arte de argumentar reside essencialmente na capacidade de proporcionar razões para sustentar conclusões. Isso implica também que a análise dum argumento não consiste na rejeição duma conclusão, mas sim, tecnicamente falando, na rejeição de premissas, isto é razões. Se alguém diz que foi enfeitiçado a minha preocupação como arguente não é de dizer “não, tu não foste enfeitiçado”. É sim de perguntar que razões lhe levam a dizer isso. Se ele me disser que é porque não é promovido no serviço ou os médicos não descobrem a doença que tem, então analiso essas razões. Se calhar a falta de promoção tem a ver com o facto de ele ser mau trabalhador, não ter as qualificações necessárias, etc. Da mesma maneira, a incapacidade dos médicos em diagnosticar a sua doença pode estar ligada à própria incapacidade dos médicos, aos nossos meios exíguos e, também, à sua incapacidade de comunicar claramente o que lhe dói.
Este exemplo não é dos melhores. Casos de feitiçaria são difíceis porque pressupõem tipos de realidade difíceis de captar. Têm também uma estrutura argumentativa diferente. Pela negativa. São circulares. Para qualquer das interpelações feitas no parágrafo anterior a pessoa podia sempre dizer (i) “sou mau trabalhador porque alguém me enfeitiçou”, (ii) “não tenho qualificações porque alguém me enfeitiçou”, (iii) “os médicos são incapazes porque alguém me enfeitiçou”. Com gente que argumenta assim o debate não é possível. Há um mínimo de consenso necessário.
Se não queremos enveredar pelos caminhos sinuosos da feitiçaria temos que aprender a defender melhor as nossas conclusões. Um filósofo britânico, Stephen E. Toulmin, publicou um livro bastante famoso – “The Uses of Argument”, 1964 – em que identificava três passos importantes numa argumentação. Ele identificou primeiro as conclusões, que já expusemos aqui. Identificou também aquilo que chamou de “provas” e “implicações”. As provas são idênticas às premissas de que também já falámos. A parte mais interessante do seu modelo são as implicações. Elas estabelecem a ponte entre conclusões e provas.
Por exemplo, numa entrevista recente um político nacional respondeu a uma pergunta dum jornalista sobre se o seu partido tinha filosofia política ou não dizendo que mais de 60 por cento do eleitorado tinha votado nele. A implicação que sustenta este raciocínio é a ideia de que as pessoas só votam em alguém se estão convencidas de que ele tem filosofia política. Não é um bom argumento, como se poderia facilmente demonstrar, mas ilustra a ideia por detrás da noção de implicação. Seria, por exemplo, necessário provar que as pessoas só votam por uma filosofia política, que esses 60 por cento fizeram-no mesmo por isso, etc. Seria também necessário explicar a noção de “filosofia política” e se o eleitorado consegue reconhecer uma filosofia política quando a vê.

Tuesday, April 19, 2005

Publico hoje o segundo texto da nova série de Elisio Macamo, sobre as regras do debate de ideias. Aproveito para chamar a atenção para uma nova série que Macamo iniciou no Notícias de ontem. O título é "Presentes Envenenados" e vem, como os anteriores, na penúltima página.
Aqui vai o texto:

Definições ou o poder das palavras (2)

Quem tem crianças sabe o que palavras verdadeiramente significam. Uma criança pode estar a brincar com uma panela. Nessa brincadeira ela chama carro à panela. E faz os ruídos correspondentes. Lembro-me dum vizinho no Xai-Xai que pensava que era motorista de longo curso. Sempre que chegasse a hora de se cozinhar tinham que o procurar por todo o bairro. A criança chama carro à panela, portanto, mas no momento em que um adulto aceita essa designação a criança pode, repentinamente, dizer que a panela é uma panela. Nessas situações ficamos, no mínimo, confusos. Sentimo-nos também ridicularizados.
Mas estas situações são interessantes por duas razões contraditórias. Primeiro, elas revelam a nossa crença na ideia de que as palavras designam objectos claros. Panela é panela. Carro é carro. Quando alguém viola essa regra, deixa-nos confusos. Segundo, a confusão não dura muito tempo, pois sabemos que podemos usar a língua de forma figurativa. Confirmamos, através da linguagem figurativa, que a palavra é um sinal arbitrário. Não há nada na natureza das próprias coisas que nos obrigue a chamar uma panela panela e um carro carro. Podíamos muito bem chamar à panela lanepa e ao carro rorca.
A contradição entre as duas razões é evidente. Não obstante, é também evidente que as duas razões têm algo em comum. Em ambos os casos as palavras que empregamos procuram transmitir um sentido. Isso é o que justifica o emprego de palavras. Com elas queremos descrever o mundo, estados emocionais e muitas outras coisas. A nossa expectativa é que o que queremos dizer seja entendido pelos outros. O que os outros entendem serve de base para a nossa comunicação. Noutros termos, a comunicação é mais fácil se as pessoas envolvidas partilham o mesmo sentido. Sem esta condição satisfeita é difícil imaginar como é que as pessoas podem discutir assuntos seriamente. Se eu digo “panela” e uma outra pessoa insiste em perceber “carro” é evidente que a comunicação não será possível. É inútil.
Para tornar isto claro podemos pegar numa noção aparentemente inofensiva do nosso vocabulário político: unidade nacional. Toda a gente parte do princípio de que sabe o que isto significa. Não só, muitos estão convencidos de que estão a falar da mesma coisa quando falam de unidade nacional. Na realidade, é uma noção que tanto pode ser usada para criticar ou louvar as mesmíssimas coisas. Nos anos imediatamente a seguir à independência a unidade nacional – escrita até em letras maíusculas – serviu, nos extremos ideológicos do seu uso, para eliminar a diferença e arrancar a conformidade das pessoas com a orientação política dominante. Unidade nacional significava então estar de acordo com várias coisas: o papel de vanguarda da Frelimo, a irrelevância de tradições étnicas ou linhageiras, o objectivo final duma sociedade socialista, etc.
Durante a guerra civil da Renamo – e mesmo agora na sua continuação parlamentar – a noção de unidade nacional – sem letras maíusculas – serviu – e serve – para indiciar o projecto político da Frelimo: como artimanha política, como subterfúgio de elites desenraizadas, como conspiração dos do sul, etc. Ou por outra, a mesma noção produziu em sectores diferentes significações e sentidos diferentes. Para complicar as coisas ainda mais faço referência a uma ideia uma vez exposta pelo ex-ministro da cultura, José M. Katupa, durante uma palestra sobre o panorama linguístico nacional.
Nessa palestra ele demonstrou, com base em dados estatísticos do recenseamento demográfico de 1980, que as línguas africanas eram mais faladas no campo e na cidade mais do que a língua portuguesa. Concluiu, a partir daí e com muita razão, que, nessas circunstâncias dificilmente se poderia considerar a língua portuguesa de língua da unidade nacional. Note-se de passagem que ele entendia a unidade nacional como algo já consumado, não como um projecto.
Nenhuma destas interpretações está errada. Antes pelo contrário, todas elas são legítimas. O que elas trazem à superfície é uma característica importante do debate. Para que ele seja possível é necessário que haja acordo sobre o significado das palavras que empregamos. Sem esse acordo não pode haver debate ou, na pior das hipóteses, não há nenhuma maneira de nos entendermos. As palavras que usamos podem ser ambíguas ou vagas. Unidade nacional como noção é ambígua porque tanto pode significar conformismo quanto patriotismo. É vaga porque é difícil perceber em que sentido deve ser entendida: não criticar a ideia dum estado centralizado? Nunca levantar a questão duma federação?
Um momento particularmente interessante desta ambiguidade foi a discussão sobre a repescagem de estudantes do norte no processo de admissão à universidade Eduardo Mondlane. A repescagem foi vista como um contributo para a unidade nacional pelos seus defensores e como um atentado à essa ideia pelos seus críticos. Para além de que no processo se levantaram outras questões como, por exemplo, se ser do norte significa fazer o ensino pré-universitário no norte, nascer lá, de pais de lá, etc., a discussão toda tornou claro que estávamos envolvidos numa discussão sobre coisas completamente diferentes.
Uma condição essencial do debate, portanto, é a definição das palavras centrais que usamos. O que queremos dizer com “unidade nacional”, “pobreza”, “norte, sul, centro”, “oposição”, “participação”, “democracia”, “desenvolvimento”, “corrupção”, etc.? O significado não é evidente e sem o esclarecimento desses preliminares podemos até discutir coisas sobre as quais concordamos.
Mas o pior não é não partilhar o mesmo sentido. O pior é quando alguém muda de sentido ao sabor da discussão. Alguém que diga “homens e mulheres são diferentes por isso a nossa lei não devia andar a falar de igualdade entre os sexos” não está a ser honesto. Está a usar o que os lógicos chamam de equivocidade: usar uma palavra com vários sentidos. A palavra “diferente” tem dois sentidos nesta afirmação. Primeiro, diferença biológica, segundo diferença perante a lei. São coisas completamente diferentes! O facto de haver diferenças biológicas não implica que homens e mulheres não tenham os mesmos direitos e obrigações perante a lei. Pode-se, naturalmente, defender a ideia de que as diferenças biológicas devem ser determinantes para a atribuição de direitos e obrigações, mas se esse é o caso, a conclusão deve ser exposta claramente.

Monday, April 18, 2005

Regras para o debate

O Patricio Langa referiu, num dos seus últimos textos, uma série de artigos de Elisio Macamo sobre a forma como devem decorrer os debates.
O autor dos artigos, simpaticamente, mandou-me os textos e aqui começo hoje a publicá-los:


Uma introdução em 10 partes (1)

Os gregos tinham um lugar chamado “Agora”. Nele discutiam os problemas públicos. Davam tanta importância à discussão que se preocuparam em desenvolver a arte da retórica. Para os gregos saber discutir era um atributo importante da cidadania. No Ocidente quando se diz que a democracia tem as suas raízes na Grécia quer-se, em parte, salientar o aspecto retórico. É evidente, porém, que saber discutir não é um atributo reservado aos gregos. Viver em sociedade implica, em minha opinião, aprender a confrontar ideias. Saber discutir é uma condição necessária à participação cívica. Logo, qualquer sociedade possui a faculdade retórica.
As nossas tradições culturais contêem provas disso. No sul de Moçambique, por exemplo, existia uma instituição chamada “B’andhla”. Penso que se pode traduzir por “Agora”. Era também um lugar onde a comunidade discutia problemas públicos. A ideia central por detrás do “B’andhla” não era de impor o ponto de vista do chefe. Era, sim, de apurar o melhor argumento. O bom membro da comunidade revelava-se pela sua capacidade de participar condignamente no debate público.
Actualmente, essas tradições não têm uma presença forte no nosso quotidiano. Isso não se deve, porém, ao que alguns iriam imediatamente supor, nomeadamente que a sociedade, duma forma geral, se distanciou das suas tradições. Deve-se, quer-me parecer, a um declínio constante da nossa capacidade de discutir. Isso não admira. No nosso passado mais recente preferimos a violência física à confrontação honesta e aberta de ideias. Essa violência gerou um clima generalizado de desconfiança que dificulta, suponho, o surgimento dum espaço de debate.
Há duas tendências que me parecem dificultar o debate. Uma já mencionada é o nosso passado recente. É difícil apreciar a plausibilidade dos argumentos dos outros quando somos motivados por valores. Pessoalmente, ainda preciso de tempo para aprender a apreciar um argumento de alguém da Renamo. A ideia que tenho deste partido impede-me, ainda, de ter a abertura de espírito necessária para apreciar as boas coisas que dela possam sair. A segunda tendência é a falta de informação para avaliar um argumento. Não é fácil participar num debate sem informação. Informação, neste sentido, quer dizer conhecimento de causa. Embora esta tendência tenha a ver com a formação académica, não se reduz apenas a isso. Mesmo analfabetos devíamos, em princípio, ser capazes de avaliar razões que se dão para sustentar uma conclusão.
Conta-se que um beduíno marroquino contestou a ideia de que alguém tivesse posto os pés na lua com o argumento segundo o qual ele teria visto a pessoa com os próprios olhos, pois todos os dias vê luz lá em cima. Não é irracional o beduíno. Provavelmente, com mais informação ele seria capaz de apreciar a insuficiência das razões que ele proporciona para não aceitar a ideia que lhe foi proposta. Isto é importante. Não podemos saber tudo. Todo o conhecimento é falível, isto é susceptível de ser falsificado um dia. Não é por isso que devemos deixar de ter opiniões à espera do conhecimento infalível. Usamos a pouca informação que temos para tirarmos conclusões.
Aquando da introdução da democracia houve uma grande preocupação em proporcionar educação cívica aos eleitores. Essa educação cívica concentrou-se, por razões que me parecem plausíveis, na iniciação das pessoas às instituições democráticas. A principal característica duma democracia, nomeadamente o debate honesto e aberto, não mereceu o destaque que devia ter merecido.
Não obstante, é importante notar que sem debate a democracia não é possível. Não é apenas votando e conhecendo as leis do país que se vai consolidar a democracia. Para que a democracia seja viva é necessário que tenha conteúdo. Esse conteúdo é a troca de ideias. É a discussão de valores, factos e propostas de políticas para resolver problemas.
Nos artigos que se vão seguir a este gostaria de introduzir o leitor a algumas ideias centrais do debate. O objectivo não é de ensinar lógica nem argumentação. É sim de chamar a atenção do leitor para alguns aspectos que, observados, tornam a convivência social possível. Tal como outras sociedades a moçambicana tem os seus debates. Muitos deles são emocionais, controversos e acesos. Bem ou mal, eles dão contornos aos vários interesses constitutivos da nossa sociedade.
Os artigos vão-se debruçar sobre questões como o sentido das palavras, estrutura de argumentos, tipos de conclusões e formas de argumentação. Sempre que possível, e oportuno, estes temas serão ilustrados com referência a alguns debates quentes da nossa sociedade. No fim destes 10 artigos o leitor não vai ser nenhum Sherlock Holmes, mas se for muito atento vai se dar conta de que muitas das deduções de Holmes são bastante problemáticas.

Sunday, April 17, 2005

Perspectiva económica

Entra agora no debate o Nelson Maximiano, que nos tras a sua perspectiva. Estuda também no Cabo. Economia. Vejamos o que tem para nos dizer:


Caro Machado da Graça

Permita-me em primeiro lugar dar-lhe os meus parabéns pela ideia e materialização da construção de um espaço onde nos possamos encontar para discutir "ideas para debate".Vários textos foram chegando até mim através de amigos, todos em volta de assuntos profundamente ligados ao seu canal de debate. Amigos estes jovens, mas jovens não porque não tenha amigos menos jovens (em idade),mas sim porque se "irradia" no seu blog a chama de ideias que nos fazem(aos jovens) queimar mais pestanas do que o normal. Em segundo, apresentar-me dizendo que sou jovem, tb da geração"samorista" (vinte e poucos anos) e me tenho juntado àqueles que pensam e fazem do seu pensar uma mais valia para a resolução dos problemas que agudizam meu pais. Ok! Lá vai, sou um estudioso do social, no seu sentido mais quantitativo, Economia.

O CHULÉ DO SAPATO OU CHEIRO DO CHULÉ?

"Muitas das razões para se acreditar numa natureza humana clara e coerente, estão em dúvida e sob fogo." (Youg: 1995)

Partilho de muitas das posições tomadas pelos meus amigos Langa e Paulo, acresce porém que as sinto incompletas sob ponto de não totalizarem as ideias que tenho para este debate. Pela extensão que o mesmo tomou,corro o risco de ter perdido o comboio, deixem-me no entanto correr ao seu encontro!
Do fruto se julga a árvore, foi a primeira ideia que me veio à mente como resposta aos argumentos que vi apresentados. Mas o processo pensante obrigou-me porém a abordar o assunto com um pouco mais de profundidade. Segundo Rorty, Richard (1980) a verdade é feita mas nunca encontrada, já Douglas, Mary (1975) defende que a sujidade é uma questão sem lugar definido. O que quererá isto dizer? Que não há culpados? Pelo contrário, quer isto apenas dizer que mais fundo do que à primeira vemos se encontra a solução ou causa para o que identificamos como problema. Mas nestas coisas de jovens e adultos numa coisa concordo com o Mia Couto: poucos há que falam com os jovens! É que se calhar tivesse o Mia discutido o assunto com um grupo de jovens e quiçá o seu discurso seria virado para Os sapatos do setimo chulé e não para o chulé do setimo sapato! É que no meu ponto de vista o problema não é o chulé do sapato mas sim o cheiro do chulé. É que porventura não terão todas a sociedades e civilizações tido chulé nos seus sapatos? Mesmo que estes fossem novos e fabricados à medida não haveria sempre um rastilho de chulé? O problema não é chulé em si, mas sim o cheiro do chulé. Neste caso não será o sapato apenas um objecto "vítima" da sujidade que se albergou sobre si? Se descalçarmos os sapatos e comprarmos (ou será que já temos capacidade criada para os fazermos?) sapatos novos e à medida, não ficará algum chulé no pé? E será que temos dinheiro (ou capacidade instalada) para comprar (ou fazer) sapatos novos? E será que temos conhecimento (da verdade) o suficiente para sabermos qual a exacta medida do sapato que precisamos? Ou vamos fazer como temos feito estes anos todos e experimentar sapatos "doados" ou "emprestados" para depois dizermos que eles têm chulé? Não será em alguns casos este chulé defeito de proviniência (e não de fábrica)? É que a "sujidade" está em todos os objectos usados pelo país Moçambique. Há sempre alguma sujidade á espreita! Então, será que se tentarmos ver com olhos de ver o visível e o menos visível: não será a sujidade o principal problema? Ou não é verdade que é a sujidade que provoca o cheiro do chulé? Difícil se revela encontrar a "verdade feita".Desta forma nos temos de apoiar em modelos da realidade que possamos usar como seu espelho, mas também os modelos são falíveis se os tentarmos tornar mais complexos ou demasiado simples (ou mesmo por outras razoes técnicas que não importa aqui detalhar!!). O meu ponto é que o modelo usado pelo meu caro Mia Couto para análise se me revela demasiado simples para a realidade em questão, a verdade está mais ao fundo! E é esse fundo que tentam e conseguem os meus caros Langa e Rigger percorrer em seus textos. Mas ATENÇÃO: mesmo com defeitos um modelo eh sempre uma aproximação da realidade, um espelho da verdade, que por ser espelho é também verdade se lhe reconhecidas as limitações, procuro no discurso de todos os "agentes de debate" as limitações e não as encontro! Talvez por não as ter sabido identificar ou talvez.... por omissão dos autores.Para mim, o problema eh o cheiro do chulé e não o ter ou não ter chulé no sapato, que a meu ver terá sempre alguma sujidade. Então problema mais problema que o cheiro é a sujidade, e esta não está apenas nos sapatos! Está em todo o lado! Mesmo assim porque sou jovem, e minha jovem inocência me permite sonhar (como dizia um de meus amigos menos jovem!) continuo acreditando ser possivel limpar não só os sapatos mas também...
Procuro agora a ligação entre o que acima escrevi e o texto do Quitério Langa, e a encontro na seguinte questão:Não seremos todos inescapavelmente agentes sociais darwinistas? Ou será que o bendito princípio da "mão invisível" é sempre válido? E mesmo que seja não estará esta mão sempre mais virada para o lado que pratica a acção (seja esta entendida nas diversas formas)?O sujeito "eu" foi, é e será sempre acompanhado por vontades pessoais, a história mostra-nos que por detrás das grandes revoluções esteve sempre o somatório das vontades pessoais dos membros dos tais "grupos revolucionários", e nem sempre a vontade do líder foi a vontade das somas! E se calhar encontramos aqui a resposta (verdade) para muitas das questões que nos colocamos a cerca da nossa história.Mas o argumento das vontades pessoais é por si só bastante relativo. E algumas vezes argumentos como "liberdade", "revolução", "resistência","independência" e até "democracia" são apenas uma justificativa para o desenvolver de acções que mudam o percurso da história. Perdem-se líderes, perdem-se vidas, destroiem-se comunidades, tudo a troco da"soma das vontades". E à volta de tudo isto está um objecto relacionado com cada um dos personagens envolvidos, o qual não tem necessariamente que ser tangível, nem de ter forma exacta. Esse objecto pode ser a felicidade, a promessa de uma vida melhor, de um maior bem-estar e satisfação, etc. Agora este argumento começa a fazer sentido! O objecto formado no inconsciente (que pode a dada altura passar para o consciente) se transforma no guia da condução.É aqui que entra em jogo o poder! Ou será a fome de poder? Porque se o dinheiro para o rico significa poder, o poder para o pobre significa dinheiro! É na busca deste que a "soma das vontades" do grupo revolucionário exerce a sua influência, exercita com saber a exploração das regras existentes ou criadas para sustentar os seus objectivos, para saciar a sua fome. A moral, as leis, a religião, tudo isto são regras que nas mãos de determinados agentes servem de laços de ligação entre oque o sujeito social deve (ou será pode?) fazer e o que não deve. Mas tudo percorre uma trilha em volta dos mesmos objectivos. Ou seja,cria-se um conjunto de regras para garantir que o sujeito social desenvolva a sua acção sem colocar em causa o interesse das somas. E aqui concordo com a abordagem do Langa (o mano mais velho) de questionar a quem emana estes valores! Não serão estes elementos (os homens da vanguarda) que "somam as suas vontades" e geram um conjunto de ligações que os permite "ditar as regras do jogo" ao seu favor? Façam o que eu digo (ou será dito?) e não o que eu faço! Ou se quisermos fiz! O ponto não é que somos todos os sujos, ou que todos os homens de vanguarda o são, mas não será a soma dos seus interesses uma autêntica sujidade? E não estará aqui presente um papel para o organismo social?Limpar a sujidade? E não será que.a moral democrática continua nas mãos dos homens de vanguarda? Ou será que a sujidade das somas agora é menor?
Este texto é apenas uma contribuição ao debate que julgo dever ser mais profundo do que o aqui foi apresentado, é um esboço de um modelo, ou talvez espelho que por estar inclinado para uma certa direcção traz à baila elementos suceptíveis de (auto) correção e melhoria, mas que mesmo assim acredito virem ainda a tempo de apanhar o comboio do ideias paradebate.
Por um chulé menos nauseabundo! Eh eh eh!

Nelson Maximiano
Cape Town, 17/04/2005

Bibliografia:

Milne, Hugh (1986) Bhagwan: The God that Failed. CalibanSmith, Adam (1976) The Wealth of Nations. Random House, Inc. Douglas, Mary (1966) Purity and Danger: An Analysis of the Concepts ofPollution and Taboo; reprinted Penguin, 1970Popper, Karl (1957) The Poverty of Historicism. Routledge; 2nd. ed.,with corrections, 1961.Berry, Christopher J. (1986) Human Nature. Macmillan.Young, Robert M. (1990) 'The Culture of British Psychoanalysis', paperpresented to the Philadelphia Association (and frequently revised andupdated). ______ (1993) 'Introduction: The Profession of Psychotherapy inBritain', Free Assns. (no. 29) 4:79-84. ______ (1994) 'Character and Morality', Paper presented to jointTavistock Clinic and University of London MA in Psychoanalytic Studies(and much revised and updated).