Ideias para Debate

Wednesday, June 21, 2006

Lei Eleitoral

Do Carlos Shenga recebi o seguinte texto:

O que é que a Posição das Duas Bancadas Parlamentares da Assembleia da República Dizem-nos Relativamente à Lei Eleitoral?

Essa comunicação é baseada nas posições tomadas pelas duas maiores forças políticas de Moçambique desde 1994 e também apresentadas para a Revisão da actual Lei Eleitoral. E surge no âmbito do seminário relativo à “Reflexão sobre o Processo Eleitoral” do EISA/Moçambique a ser realizado na semana 19-23 de Junho de 2006, anunciado no jornal Notícias de 19 de Junho de 2006.

Resumo:

A despeito das posições da Frelimo e da Renamo-UE divergirem quanto à futura lei eleitoral quanto à composição da CNE; todas elas optam por alternativas não democráticas – i.e. partidarizadas. Apesar de certas alas da sociedade civil defenderem a ideia do Presidente da CNE ser da sociedade civil, a CNE continuará ainda partidarizada (ou seja uma instituição não democrática). Considerando a vontade expressa pelos cidadãos moçambicanos captada a partir do inquérito de opinião pública, a despartidarização das instituições eleitorais não deve ser gradual, mas efectiva. Estamos perante uma sociedade em que mais da metade dos seus cidadãos prefere democracia que qualquer outra forma de governação. Porquê não adoptar instituições democráticas?

Para sabermos se as eleições foram livres, transparentes e justas é necessário analisar o processo eleitoral. E, uma das formas de analisar o processo eleitoral é a partir da legislação eleitoral existente, das propostas ou posições sobre a revisão em torno da lei eleitoral e as instituições eleitorais.

Em 1994, Moçambique teve as eleições fundadoras da democracia geridas por legislação e instituições eleitorais não democráticas — i.e. partidarizadas (de acordo com a regra da representatividade parlamentar). Em 1998, 1999, 2003 e 2004, o mesmo se repete. As duas bancadas parlamentares, nomeadamente a Frelimo e a Renamo-UE degladiaram-se com vista à partidarização da CNE, do STAE e até passamos a ter um judiciário também partidarizado, especificamente o Conselho Constitucional. Graças a estas duas grandes forças políticas (e a indiferença de cidadãos, da sociedade civil e do público em geral) o país vem se tornando menos democrático desde 1994. Consultas públicas e até aos partidos políticos sem representação parlamentar sobre a legislação eleitoral quase que nunca foram realizadas pela extinta Comissão Ad hoc para a Revisão da Legislação Eleitoral, composta por membros da Frelimo e Renamo UE. Contudo, o processo eleitoral não diz respeito apenas à Frelimo e Renamo-UE, mas sim a toda sociedade Moçambicana que também precisa ser envolvida no mesmo.

Contrariamente ao esperado, é uma entidade da sociedade civil – EISA que hoje promove uma reflexão e debate em torno do processo eleitoral de uma forma inclusiva e não a Assembleia da República. Este último limita-se a debruçar-se deste assunto entre os dois partidos políticos aí existentes. As posições partidarizadas das forças políticas representadas na AR quanto à composição da CNE podem ser vistas na página 3 do jornal Notícias de 19 de Junho de 2006.

O perigo da democracia hoje em Moçambique vem da posição tomada por essas duas maiores forças políticas representadas no parlamento que monopolizam a elaboração legislativa e as instituições eleitorais e por conseguinte o processo eleitoral em si. Apesar de existirem alas da sociedade civil que defendem a ideia de que o Presidente da CNE ser da sociedade civil, tornando-a menos partidarizada, a ideia não é essa. A ideia é dispartidarizar por completo a CNE, o STAE e o Conselho Constitucional. Este último é um (tribunal) órgão com competências de administração da justiça, em matérias jurídico-constitucionais, verificação da constitucionalidade; julgar as acções de impugnação de eleições e de deliberações dos órgãos dos partidos políticos; entre outras.

Considerando o Inquérito de Opinião Pública do Afrobarometer que reporta que mais da metade dos cidadãos Moçambicanos “preferem democracia que qualquer outra forma de governo” (54% em 2002 e 56% em 2005), a AR deve aprovar uma lei eleitoral democrática. Por outras palavras, uma lei na qual as instituições eleitorais como a CNE, STAE e Conselho Constitucional são efectivamente despartidarizadas e assim realizem suas actividades com imparcialidade. Não se trata aqui de uma opinião individual, mas de uma vontade expressa pelos Moçambicanos captada a partir de Inquérito de Opinião Pública (do Afrobarometer), com base numa amostra representativa à escala nacional. Caso a despartidarização não ocorra, mais uma vez, esta será uma evidência clara de “uso das instituições do Estado para tirar proveito próprio” - i.e. corrupção, ou seja acto de corrupção legalmente institucionalizado (desde 1994). E ainda, será uma negação evidente da satisfação do interesse público.

Para finalizar, com legislação e instituições eleitorais partidarizadas é impensável procurar saber se as eleições foram livres, transparentes e justas. Pois falasse de eleições livres e justas se estivermos diante de instituições democráticas. É uma pena que os observadores da União Europeia, nacionais e da SADC, e a Carter Center terem afirmado que as eleições em Moçambique tenham sido livres e justas. As instituições eleitorais não devem por si mesmas mostrar evidências de que irão favorecer este e/ou aquele. Caso contrário os representantes que advirão dessas eleições estarão pouco cometidos com Estado de Direito – i.e. governo pelas leis; participação política; competição política; accountability (prestação de contas/informação); liberdades civis e políticas; e igualdade social e política; e satisfação das necessidades colectivas dos cidadãos. Há muitas evidências de que os representantes moçambicanos não estão cometidos com esses indicadores de qualidade da democracia. Contudo, não é meu objectivo trazer essas evidências nesta comunicação.

Por Carlos Shenga, cshenga@gmail.com

21 de Junho de 2006

Tuesday, June 20, 2006

Mais uma contribuição

Em mais um texto o Daniel Doku volta a pôr em causa algumas ideias de Elósio Macamo:


Amor à Liberdade: Mais Reflexões

No seu artigo intitulado “Amor à liberdade” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 7 de Março de 2006) Elísio Macamo reflecte sobre o que significa a vida em sociedade e lembra-nos da importância, na verdade, da necessidade de coexistência pacífica em sociedade. Contudo, reclama ainda que a religião não se coaduna bem nem com a liberdade de pensar por si próprio, nem com o dever moral de se assumir responsabilidade pelos seus próprios actos. Parece que a sua reclamação se baseia na forte influência que alguns clérigos exercem sobre os crentes. Influência essa que Elísio considera ascender à interferência na liberdade individual dos crentes. Cito-o: “esta interferência na liberdade individual constitui, para mim, um perigo muito grande à possibilidade de convivência sã numa sociedade plural como a nossa.” No que se segue, aventarei que a reclamação de Elísio é exagerada e que não está adequadamente fundamentada. O meu objectivo é abrir ainda o debate.

Diz-nos ele: “A religião não pode proporcionar uma base moral à sociedade porque ela, na sua forma institucional, é inimiga da maior liberdade a que o homem tem direito: a liberdade de pensar por si próprio e assumir responsabilidade pelos seus actos. O exemplo mais claro deste efeito insidioso da religião é o dístico içado em Maputo a instar os crentes a confundir a sua vida pessoal com a ideia que alguns clérigos gostariam de transmitir do Profeta Maomé.”

Antes de mais, gostaria de fazer uma breve referência a um desequilibro na análise de Elísio quanto ao que se vê a seguir à religião. Concordo com Manuel Mangue quando ele nos aponta que do texto de Elísio não só fica a impressão mas torna-se evidente que, para ele, o problema moral é exclusivamente um problema religioso. Assim, ignora os excessos das outras formas de organização humana e a sua contribuição para o problema em questão. Ainda Elísio, com razão, nos aponta opressão, servidão e superstição na história da religião, mas deixa de lado, por exemplo, os esforços (heróicos em alguns casos) de líderes religiosos na mediação de conflitos sérios, incluindo guerras em diferentes partes do mundo, e até em Moçambique, num passado recente.

Não há dúvida (tal como diz Elísio) que se encontra opressão, servidão e até superstição na história da religião. Mas tudo isto não implica necessariamente qualquer incongruência entre a religião e a referida “maior liberdade a que o homem tem direito”. Assim digo pois parece pouco plausível que todos os líderes religiosos, incluindo moçambicanos, nem pensem por si próprios nem assumam responsabilidade pelos seus actos. O mesmo se pode dizer dos outros crentes religiosos. Mas talvez Elísio se refira a alguns dos crentes religiosos. Quer dizer, aqueles que se diz serem manipulados por alguns clérigos. Mas, se aceitarmos esta qualificação, verificaremos que se deve diferenciar a religião como tal dos fins para que alguns clérigos a empregam. Portanto, mesmo que alguns crentes estivessem “privados”, por assim dizer, da sua liberdade de pensar, etc., falar-se-ia de charlatanismo e não necessariamente de religião. Quer dizer, a questão é o abuso de outrem para auferir algum benefício e não a religião como tal. Acrescenta-se ainda que o charlatanismo não se limita à religião, mas propaga-se por outras áreas da nossa vida.

Mesmo assim, quais são os fundamentos que Elísio nos apresenta para a sua reclamação? Encontro três. Primeiro, ele chama a nossa atenção para um dístico que traz os seguintes dizeres: “AMAMOS MAIS O NOSSO PROFETA MUHAMMAD S.A.W. DO QUE A NOSSA PRÓPRIA VIDA.” (Chamemo-lo dístico D1). Era um dos dísticos exibidos nas ruas de Maputo por alguns muçulmanos numa manifestação contra o jornal Savana porque este publicara as controversas caricaturas do Profeta. Segundo, apoia-se também em algumas ideias do iluminismo, especificamente nas ideias do filósofo escocês David Hume e do filósofo alemão Immanuel Kant. (O Iluminismo foi um movimento secular e filosófico que emergiu na Europa nos séculos XVII e XVIII e que, em geral, dava ênfase ao papel da razão relativamente à questão do conhecimento do mundo). Terceiro, Elísio assenta ainda os seus argumentos no que considera serem problemas particulares da religião. Tomemos nessa ordem os seus fundamentos.

Em primeiro lugar, parece-me que não é prudente basear-se na interpretação de um dístico numa manifestação para se pronunciar de modo tão forte contra a religião em geral. Pois tais dizeres não são, normalmente, uma fonte segura para uma análise crítica. Por um lado, um dístico pode ser susceptível a diferentes interpretações e, por outro, diferentes dísticos podem apresentar aspectos diferentes e até contrários de uma questão.

Por exemplo, Elísio lê “neste dístico [D1] uma renúncia preocupante ao dever de raciocinar e um convite à submissão.” Mas, poder-se-ia argumentar que este dístico não representa nem nenhuma renúncia, nem nenhum convite a ninguém. Pelo contrário, dir-se-ia que representa uma afirmação sublinhando a força da dedicação dos muçulmanos ao Profeta. Note-se que ter uma causa pela qual se esteja pronto a dar a vida pode ser nobre, dependendo da causa. No caso presente, havia um outro dístico (chamemos a este dístico D2) com os dizeres seguintes: “PROFETA MUHAMMAD S.A.W. SIMBOLO DA LIBERDADE E HONRA” (Veja Manifestação, por Machado da Graça, http://ideiasdebate.blogspot.com, 25 de Fevereiro de 2006). Portanto, considerando os dois dísticos juntos, pode-se concluir que os muçulmanos têm um compromisso forte para com a liberdade e a honra. Devo salientar desde já que não defendo nem os muçulmanos nem a religião, mas pretendo, sim, dizer apenas que as conclusões de Elísio com base no dístico D1 não estão adequadamente fundamentadas.

Em segundo lugar, não está bem claro em que sentido é que Elísio afirma que se apoia em alguns dos filósofos mais sólidos que o mundo conheceu, referindo-se a David Hume e a Immanuel Kant. Elísio invoca o iluminismo e escreve: “Existe um momento na história da humanidade que é tido por muitos estudiosos como o momento da emancipação do Homem do obscurantismo religioso. (...) Na verdade, o iluminismo significou a vitória da razão sobre a irracionalidade.” Note-se que nem uma nem a outra destas afirmações são incontroversas. Lembremo-nos de que no fundo do debate entre o iluminismo e a religião está a questão do que constitui conhecimento do mundo. Assim, enquanto o iluminismo enfatiza o papel da razão em tudo o que se considera conhecimento verdadeiro do mundo, os fideístas, incluindo os religiosos, defendem a fé relativamente às questões da religião revelada. (Encontra-se o fideísmo, desde os tempos antigos, no Judaísmo, no Cristianismo e no Islão. Esta doutrina filosófica atribui, relativamente ao conhecimento de algumas verdades, maior importância à fé do que à razão). Os religiosos, portanto, não rejeitam a razão como tal, mas sim, limitam o papel dela e, em particular, insistem em que não se pode avaliar a fé e a religião revelada em termos de razão. Talvez esta peculiaridade da fé torne a religião a área mais fértil da nossa vida para os charlatães. Mas isto já é um outro assunto.

Tendo esta diferença em mente, poder-se-ia dizer que a expressão “obscurantismo religioso” não representa nada mais do que uma polémica pretendendo menosprezar a reclamação dos religiosos. O mesmo se poderia dizer da expressão “irracionalidade”. É claro que antepor a fé ou o sentimento à razão é ser não racional, sim, mas isso não equivale necessariamente a ser ou obscurantista ou irracional. Não esqueçamos também o facto de o iluminismo não ser homogéneo, ou seja, ter diferentes tendências de óptica filosófica. Na verdade, quer-me parecer que as afirmações de Elísio representam a posição de uma tendência forte dentro do iluminismo que insiste na primazia da razão com vista ao conhecimento do mundo. Estes são os filósofos racionalistas, onde não se encontram nem Hume nem Kant, pois ambos põem limites firmes ao papel da razão no que diz respeito ao conhecimento do mundo.

Hume é céptico quanto aos racionalistas. Na verdade, ele subordina a razão ao sentimento e argumenta que não se pode justificar as nossas crenças com base na razão. Ele argumenta ainda que mesmo a moralidade é mais uma questão de sentimento do que de razão. É verdade que Hume rejeita as reclamações religiosas. Contudo, isto não é nem por estas estarem contra a razão nem por não estarem baseadas nela, mas sim, porque as reclamações religiosas não são justificadas com base no sentimento.

Por sua vez, Kant também rejeita as reclamações religiosas (tal como diz Elísio). Mas, uma vez mais, isto não é nem por estas estarem contra a razão nem por não estarem baseadas nela. Segundo ele, não se pode fazer reclamações substantivas de conhecimento do mundo independentemente de experiência. Quer dizer, nem tudo pode depender exclusivamente da razão. Para Kant, as formas da nossa compreensão são prescritas pela nossa própria natureza como seres humanos. Isto faz com que haja três coisas de que não podemos ter conhecimento nenhum para além do que é possível através do espaço e do tempo. Mesmo assim, especular sobre elas é inevitável. Kant chama-lhes “Ideias transcendentais” e são Deus, a Imortalidade e a Liberdade. Portanto, pode-se concluir que ele rejeita as reclamações religiosas porque tal conhecimento é simplesmente impossível. Contudo, segundo Kant, as “Ideias transcendentais” só podem dar corpo a uma espécie de fé racional.

Em terceiro lugar, Elísio levanta ainda duas questões. Mas, embora estas questões sejam importantes, a meu ver não ajudam muito a sua tese principal. Diz-nos ele: “O problema de qualquer religião baseada na revelação é a fidelidade da escritura.” Este é, sem dúvida, um problema real. Mas não nos podemos pronunciar definitivamente sobre a fidelidade da escritura pois simplesmente não sabemos da sua fidelidade ou não. Portanto, não é necessariamente o caso de a escritura não ser verdadeira. O máximo que podemos dizer é que tal escritura é susceptível a alterações não autorizadas. Na verdade, podemos até dizer que a religião não é imune ao charlatanismo. Mas tudo isto nada nos diz sobre qualquer comportamento pontual dos crentes no tocante a agir de acordo com a escritura em vez de agirem de acordo com o que certas pessoas dizem ser o espírito da escritura. E isso é assim apesar do facto de tais pessoas serem intérpretes da escritura ou da doutrina. Quer dizer, para se afirmar que os crentes põem em prática ideias erradas ou ideias idiossincráticas de alguns clérigos, precisa-se de mais informações do que as relativas a fidelidade ou não da escritura.

Relativamente à segunda questão, Elísio escreve o seguinte: “O problema que se coloca para estas religiões é de saber qual é o verdadeiro objecto de fé por parte do crente. É o que a sua consciência lhe diz ou o que o sacerdote ou imam dizem?” e assim apresentar uma dicotomia falsa. Se não estou enganado, parece que Elísio entende mal a relação entre fé, consciência e o que o sacerdote diz, pois essa relação não é uma questão de escolha, mas contextual. Por exemplo, o verdadeiro objecto de fé por parte do crente pode ser a esperança de salvação, ou seja, a vida eterna (pelo menos no caso do Cristianismo). Enquanto a consciência, entendida como a faculdade com a qual se fazem escolhas morais, e as palavras do sacerdote são meios pelos quais se espera atingir o objecto da fé.

Para quem acredita em Deus mas não pertence a nenhuma religião organizada, a consciência é o seu principal guia, talvez o seu único guia, para atingir o objecto da sua fé. Mesmo no caso dos crentes, aponte-se que não é necessariamente uma escolha entre o que a consciência lhes diz e o que o sacerdote diz, pois estes imperativos podem coincidir. Mas, mesmo que estes imperativos fossem divergentes e o crente “escolhesse” o que o sacerdote ou a doutrina lhe diz, isso não seria necessariamente uma prova de que o crente nem pensa por si próprio nem assume responsabilidades pelos seus actos, pois poderia ser simplesmente uma escolha por conveniência. (Note-se que nada disto quer dizer que a doutrina não pode influenciar a consciência dos crentes.) Portanto, a afirmação de Elísio de que “em princípio é a consciência que devia orientar o muçulmano, na realidade, contudo, é a obediência à interpretação que certas pessoas fazem do Alcorão” não está também adequadamente fundamentada.

Ademais, gostaria de fazer uma outra breve referência, desta vez ao que me parecer uma ligeira contradição interna no texto de Elísio. Por um lado, diz-nos ele “respeito o direito que cada pessoa tem de acreditar em seja o que for que lhe permitir dar sentido à sua existência.” E concordo com ele uma vez que isso reflecte o verdadeiro espírito de tolerância religiosa. Por outro lado, ele afirma que “a liberdade religiosa só faz sentido (...) se ela é exercida por gente consciente e capaz de assumir responsabilidades pelos seus actos.” Neste caso, contudo, discordo dele pois parece que argumenta a favor de se limitar a liberdade religiosa de uma forma inaceitável. Quer dizer excluir as pessoas inconscientes e incapazes de assumir responsabilidades pelos seus actos. É verdade que a liberdade religiosa não é absoluta. Contudo, os limites de liberdade religiosa deveriam ser negociados apropriadamente em termos de acções das pessoas e não se basearem em personalidades, ou seja, em quem pode ou não pode usufruir de liberdade religiosa. Realce-se que a liberdade religiosa é um direito humano básico e, portanto faz sempre sentido independentemente de quem o exerça. Não obstante o facto de se ter de a exercer dentro da lei e com a devida consideração pelos outros direitos humanos.

Aponte-se que, na área política, o iluminismo que Elísio cita com aprovação argumenta muito fortemente a favor dos direitos humanos básicos, incluindo a tolerância religiosa. Portanto, a tendência de Elísio para restringir a liberdade religiosa não só trai uma tendência contrária ao espírito do “Amor à liberdade” como também é contra os ideais do iluminismo.

Em conclusão, aventei que a reclamação de Elísio de que a religião, na sua forma institucional, é inimiga da liberdade de pensar por si próprio, de assumir responsabilidade pelos seus actos e até ascender à interferência em liberdade individual é exagerada. E assim é pois, primeiro, ele atribui o comportamento indesejável de alguns crentes só à religião em geral e, segundo, a sua observação é mais relacionada com o charlatanismo do que com a religião como tal. Argumentei ainda que os seus fundamentos para a sua reclamação são fracos. Ou seja, que dizeres num dístico numa manifestação não são, em geral, uma fonte segura para uma análise crítica; que as ideias do David Hume e do Immanuel Kant não o servem para justificar, de qualquer modo significativo, a sua reclamação; e que nem a verdade ou não da escritura nem a relação entre a fé, a consciência e o que o sacerdote diz o ajudam a justificar a sua reclamação. Nada disto quer dizer que as questões levantadas por Elísio não sejam importantes, mas apenas que são tão importantes que se precisa de argumentos muito mais sólidos para as fundamentar. Caso contrário, poderão ser rejeitadas como mero preconceito.

Daniel Doku

Maputo

12/06/06

Saturday, June 10, 2006

Liberdades



Liberdades Perigosas e Soberania: Mais Reflexões

Gostaria de me juntar aos comentadores que receberam com agrado o artigo de Elísio Macamo intitulado “Liberdades Perigosas e Soberania” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 24 de Fevereiro de 2006). É um texto abrangente que toca em aspectos importantes da nossa vida, pelo que subscrevo a opinião de Machado da Graça de que vale a pena lê-lo. Nele sobressai a perspicácia de Elísio, para quem a liberdade de expressão não é absoluta (por outras palavras, quem fala da liberdade de expressão como se esta se fosse absoluta não é fiel ao conceito); não se deve confundir o liberalismo com o capitalismo; e é importante pensar-se nos problemas de cada um como problemas de todos. No entanto, queria fazer três reparos ao texto no que diz respeito a intelectuais/académicos e jornalistas e imparcialidade, violência e soberania e à atitude intelectual dos moçambicanos relativamente ao uso da violência em Moçambique.

Elísio rejeita o apelo para os intelectuais/académicos e jornalistas serem imparciais na sua orientação política. Diz-nos ele: “não há nenhuma razão, aos meus olhos, para que os intelectuais sejam imparciais na sua orientação política. (...) O mesmo se pode dizer do jornalismo. A exigência de que um jornalista seja imparcial parece-me, neste sentido, infundada” (destaque meu). Diria que talvez esta afirmação represente um exagero e ignore a distinção entre o objectivo e o subjectivo. Assim digo porque a questão que se coloca é: o que significa ‘orientação política’? Não se pode discordar de Elísio quando ele diz que “é possível ser intelectual/académico e ser simpatizante da Frelimo ou da Renamo” e que “um jornalista é pessoa como todos nós, [portanto] tem preferências políticas.” Na verdade, parece-me que pôr tais restrições nos intelectuais/académicos e jornalistas representa uma imposição inaceitável numa sociedade livre como Moçambique, sendo até um absurdo. Por isso mesmo, duvido que seja isto o que pretendem os que exigem imparcialidade.

É, talvez, mais plausível supor que os nossos interlocutores simplesmente queiram enfatizar que tais profissionais não são isentos de opiniões subjectivas. Na realidade, essas opiniões podem ser contrárias a uma análise objectiva, ou seja, imparcial. O apelo é, então, no sentido de estes profissionais distinguirem as suas opiniões subjectivas das suas análises objectivas, quer dizer, serem desapaixonados. É verdade, como Elísio afirma ainda, que a condição de tal profissional “não lhe dá a liberdade de mentir, dá-lhe a responsabilidade de apresentar as notícias [e as suas análises, posso acrescentar] com honestidade e de forma crítica. O seu compromisso é com a verdade.” Mas, apesar destes princípios, Elísio nota que “é difícil abrir um jornal moçambicano e não ficar deprimido com a qualidade argumentativa do que nos é proposto como análise.” Nestas circunstâncias, o apelo à imparcialidade é relevante, penso eu, para (tal como diz Elísio) a liberdade de expressão não se tornar numa arma poderosa em mãos perigosas.

Quanto à questão violência e soberania, acho a análise de Elísio incompleta e ligeiramente confusa. Por um lado, e comentando à violência a que manifestantes muçulmanos sujeitaram o jornal Savana porque este reproduziu as caricaturas controversas, Elísio afirma o seguinte: “O Estado moderno e civilizado define-se pelo monopólio do uso dos meios de violência. É a ele que compete usar a violência para coagir o cidadão a obedecer à ordem política, social e económica. Mais ninguém tem esse direito, por mais ultrajado que se sinta.”. Por outro lado, Elísio defende, sem nenhuma qualificação, que a violência “é um argumento mau e inválido”, assim introduzindo uma inconsistência interna no seu texto. Quer-me parecer que não é a violência em si que é um argumento mau e inválido, mas sim a violência gratuita e/ou indiscriminada. Devo salientar desde já que não advogo o uso da violência, e muito menos como solução de conflitos e divergências. E acho mesmo lamentável a referida violência contra o jornal Savana.

Ademais, é verdade que o Estado tem o monopólio do uso dos meios de violência, mas isso não significa que mais ninguém tenha o direito ao uso da violência, por mais ultrajado que se sinta. Pois, embora reconheçamos o direito do Estado no uso legítimo da violência não devemos esquecer que os outros, incluindo os cidadãos, têm este direito também. Tenho em mente o uso da violência em legítima defesa. Na verdade, mesmo provocação extrema poderia ser um factor atenuante e até justificar o uso da violência se as circunstâncias forem apropriadas. O ponto-chave aqui é que o uso de violência quer pelo Estado quer por qualquer outro deveria não só ser proporcional ao mal que se pretende eliminar mas também ser empregue como último recurso.

Se aceitarmos as circunstâncias alternativas sob as quais se pode usar de violência legítima, verificaremos que poderá existir uma outra explicação da atitude do actual governo naquela altura. Quer dizer, dadas as circunstâncias internacionais então existentes, o governo poderia ter considerado a publicação “insensata” das caricaturas pelo jornal Savana como uma provocação extrema, poderia ter julgado a reacção violenta dos manifestantes como proporcional e empregado violência como último recurso. Não se pode verificar se, na verdade, este era o pensamento do governo. E podemos mesmo debater a sensatez desta atitude do governo. Mas o meu ponto é que, sem eliminar antes esta possibilidade, não se pode concluir à pressa que os manifestantes recusaram ao Estado qualquer monopólio do uso dos meios de violência, nem que o governo “passou vista grossa ao atentado flagrante (...) à soberania do Estado”. É claro que uma manifestação violenta tem impacto sobre a ordem pública, mas diria que o caso em questão não tem nada a ver com a soberania do Estado.

Pelas mesmas razões deveríamos rejeitar não só a descrição da violência contra o jornal Savana como vandalismo, pois vandalismo insinua uso de violência gratuita e/ou indiscriminada (o que fica ainda por determinar no caso presente), como a sugestão de que o governo meramente admoestou o jornal Savana por causa de “uma aliança profana entre certos meios políticos e certos meios económicos”. Na realidade, se houvesse alianças obscuras entre o actual governo ou qualquer governo e determinados meios políticos ou económicos isso representaria um assunto preocupante sim, e exigiria a atenção de todos nós. Contudo, acho a ligação entre a acção do governo, no caso presente, e tais alianças profanas forçada e demasiada ténue.

No seu artigo, Elísio identifica um equívoco central da esfera pública moçambicana e escreve: “Sendo uma nação saída da chamada ‘violência revolucionária’ nunca tivemos problemas com o uso da violência com o fim de alcançar objectivos julgados nobres. Embora plausível, esta atitude tem, desde então, criado certos problemas à nossa capacidade intelectual de pensar a nossa história. A Renamo matou indiscriminadamente em nome de bom uso da violência. A Frelimo executou publicamente em nome de bom uso da violência. E hoje, extremistas religiosos vandalizam o jornal Savana em nome de bom uso da violência.”

Partilho da sua dúvida de que haja uma ligação necessária entre a experiência revolucionária e o uso da violência a partir da independência. Em todo o caso, precisa-se de um argumento específico de quem faça essa asserção para fundamentá-lo, pois não está claro que haja uma ligação intrínseca entre os dois fenómenos quer em Moçambique quer em qualquer outro sítio. E mesmo que se pudesse estabelecer tal ligação, dever-se-ia analisar, cuidadosamente, cada instância de uso de violência e julgá-la por si própria, caso contrário, tudo acabaria numa apologia inglória da violência.

Além disso, os seus três exemplos servem para ilustrar as dificuldades inerentes. Duvida-se, por exemplo, que a violência contra o jornal Savana pertença a esta categoria, pois havia manifestações semelhantes em outros países com histórias diferentes. Acrescentar-se-ia ainda que, ao juntar os três exemplos, se ignora pelo menos a diferença qualitativa entre casos que envolvem mortos e casos de que não resultam mortos. Isto não significa nem a desculpa nem a apologia da violência contra o jornal Savana. O que pretendo é enfatizar apenas que, quando se fala de violência, dever-se-á ter em conta o contexto, o nível de violência empregue e até mesmo o dano resultante, ao invés de nos fixarmos na violência em si.

Em conclusão, argumentei que apelos aos intelectuais/académicos e aos jornalistas no sentido de serem imparciais são meramente exigências para objectividade nas apresentações, em vez de se fazerem análises subjectivas e se apresentarem-nas como se fossem objectivas. Argumentei ainda que as manifestações violentas como a que sofreu o jornal Savana são questões de ordem pública, mas não representam necessariamente uma usurpação do papel do Estado relativamente ao uso da violência. Aventei que não há uma ligação necessária entre a experiência revolucionária e o uso subsequente e repetido de violência e que quem afirma tal ligação há-de a fundamentar. Aventei também que, quando se fala de violência, deve-se ter em conta o contexto, o nível de violência empregue e o dano resultante ao invés de exclusivamente a violência em si.

Daniel Doku

Maputo

23/05/06