Ideias para Debate

Monday, November 20, 2006

Mais um texto

Aqui fica mais um texto da série que me mandou o Afonso dos Santos:

Cabelo

Este é capaz de ser um dos tópicos mais atíp!cos. E porquê? Porque é escassa a bibliografia sobre este tema. A não ser nas revistas de modas e nos manuais de cabeleireiro, claro! Mas aí não tratam da semiologia do cabelo. No entanto, o cabelo tem uma significação tão forte que até há certas concepções do mundo que obrigam as mulheres a ocultá-lo. Mas não se pretende, aqui, debater essa proibição de as mulheres usarem o cabelo destapado ou a nu. (Ai!, que isto já está a tornar-se demasiado erótico.)

É preciso, porém, não confundir entre a interdição de mostrar o cabelo, e, por outro lado, o uso de lenço na cabeça, como peça de adorno, ou por ser um hábito antigo, especificamente nas zonas rurais, em qualquer parte do mundo.

E se este tema começa com uma referência às mulheres, isso resulta do facto de que elas são, no fim de contas, o núcleo em função do qual uma sociedade se define. Na verdade, o lugar da mulher na sociedade é o indicador mais importante do nível de civilização, isto é, de democracia e de liberdade. Quanto mais as mulheres estão marginalizadas do poder, menor é o grau de democracia. Quanto mais as mulheres são discriminadas, menor é o grau de liberdade. E o caso mais degradante é a redução da mulher à condição de bichinho de estimação para efeito decorativo, que é o que acontece nos videoclips da chamada “música” hip hop.

Afinal este texto é para falar da mulher ou é para falar do cabelo? Acontece que os dois temas não estão desligados, uma vez que o cabelo foi, ao longo dos tempos, um sinal de diferenciação sexual.

Ao abordar este aspecto, é preciso ter em conta que o cabelo é uma parte do sistema piloso. Ora, os pelos são uma das componentes que fazem parte dos “caracteres sexuais secundários”. Esta noção foi criada por Charles Darwin e designa as particularidades físicas do ser vivo, macho ou fêmea, que não estão ao serviço imediato das relações sexuais e da procriação. E o psicólogo Havelock Ellis, no seu livro “Psicologia do Sexo”, diz, sobre o cabelo, que “ele é sexualmente a parte mais notada do corpo feminino, depois dos olhos”.

Acontece que a ocultação do cabelo não deixa de provocar um certo efeito sensual. É que o erotismo tem muito mais a ver com o que se oculta do que com o que se mostra. Porque o que está oculto faz a imaginação abrir as asas. E é principalmente por isto que o erotismo se diferencia da pornografia.

Por outro lado, a supremacia do efeito sensual dos olhos pode tornar-se maior quando, além do cabelo, também a parte inferior do rosto está coberta por um véu.

Mas este texto nem sequer era para falar destas coisas. Acontece que, por vezes, o texto toma o freio nos dentes, e põe-se a galopar por inesperados relvados.

Regressando ao cabelo: no seu livro “Psicologia da Actualidade”, Emílio Servadio afirma que, nos nossos tempos, os cabelos são “valorizados como um ornamento do qual se pode ter orgulho”.

Ao observar o cabelo como ornamento, é preciso ter em conta a diferença entre homens e mulheres. E também a diferença entre cabelos lisos e cabelos crespos ou anelados. O facto mais admirável, no que diz respeito a estes aspectos, é que parece haver uma tendência de troca de papéis. Os homens passaram a usar penteados que, antes, eram tipicamente femininos. Os homens de cabelo crespo usam o cabelo trançado em penteados muito bem desenhados; os de cabelo liso passaram a usar rabo-de-cavalo.

As mulheres de cabelo crespo querem, a todo o custo, usá-lo liso e desfrisam-no; as mulheres de cabelo liso optam por penteados do estilo dito “afro”.

Até parece que cada qual não deseja ser ele próprio, só anseia ser o outro.

É claro que nem toda a gente segue estas tendências. Aliás, no plano individual, o modo como cada pessoa usa esse ornamento é altamente eloquente quanto ao perfil psicológico, social e cultural dessa pessoa.

Pode fazer-se a leitura, por exemplo, dos diferentes penteados das mulheres: cabelo trançado; desfrisado; penteado em ondulações (chamava-se “permanente”); envolvido num lenço; oculto por um véu; rapado.

O caso do uso de mechas merece menção especial. Não serão também estas um meio de ocultar o cabelo natural? Mas o mais saliente é o seguinte: a atracção suscitada pelo cabelo está associada ao sentido da visão, mas também do tacto e do olfacto. Sendo assim, que espécie de sensualidade pode ser atiçada pelas mechas?

No caso dos homens, que leitura se pode fazer da moda masculina do cabelo rapado? E da moda rastafári?

O cabelo é também um sinal do tempo, porque segue a moda e esta muda. Mas também é sinal do tempo de vida, quando a cor do cabelo começa a mudar, ou quando ele começa a cair.

Para além de tudo isto, o cabelo pode ser ainda outra coisa: um bom tema para uma tese de licenciatura na área da Psicologia Social. Título da tese: “A função do cabelo na preservação da identidade cultural, na era da globalização”. Mas, atenção!, lá porque o cabelo faz parte dos “caracteres sexuais secundários”, não é preciso confundir “preservação”, com “preservativo”.

_____________________________________________

FIM DO TEXTO

Saturday, November 11, 2006

Académicos e Talentos

Aqui vai mais um dos textos que o Afonso dos Santos me mandou:

Banalização

Parece que há palavras que estão a perder o seu significado original, para passarem a designar qualquer caso banal. Este é o caso das palavras “académico” e “talento”.

Uma academia pode designar duas coisas. Pode ser simplesmente um local de ensino. Mas também designa uma agremiação constituída por um grupo de cientistas. E, neste caso, académico é equivalente a investigador científico.

Mas actualmente são designados como académicos pessoas das quais não se conhece qualquer tipo de trabalho científico. Tanto quanto se sabe, são simplesmente “doutores”, ou seja, completaram um curso superior. Daqui se pode inferir que a palavra “académico” se tornou uma pomposa e fraudulenta substituição da palavra “licenciado”. Mas se um académico é qualquer um que tenha completado o grau de escolaridade da licenciatura, então torna-se necessário substituir esta designação (licenciatura) por “academiatura”. Assim já se entenderá que quem conclui uma “academiatura” é um académico.

E se a palavra “académico” pretende designar simplesmente aquele que exerce actividade docente, então todos os professores primários também são académicos. E, já agora, também todos os alunos do ensino primário, pois todos eles frequentam uma academia. E, deste modo, Moçambique torna-se um país do século XXII, porque todo o país passa a ser uma academia. Resultado: assim se amplia ainda mais o significado da palavra “académico”, porque cada cidadão passa a ser um académico.

Geralmente, aqueles a quem chamam académicos são, na realidade, professores universitários e (outros) quadros superiores, e isso não é nenhum desprestígio.

Quanto ao talento, parece que, actualmente, cada principiante que se apresenta num palco ou frente às câmaras de televisão, ou que escreve umas linhas de texto banal, é logo designado como sendo um talento. Se em qualquer actividade profissional existe gente competente e gente incompetente, como é que é possível que isso não aconteça na área artística? Do mesmo modo que existe um estudante talentoso, enquanto o seu colega ao lado é um estudante medíocre, também há artistas talentosos, enquanto outros são banais, e outros são simplesmente artistas falhados.

E, porque existem diferenças individuais, resulta daí que nem sempre uma pessoa tem a aptidão para aquilo que mais gostaria de ser. Alguém pode desejar muito ser escritor e não ter a mínima imaginação, sensibilidade e domínio da técnica para sê-lo; entretanto, talvez tenha alguma aptidão especial para o desenho. Alguém pode desejar muito ser um cantor, e não ter o mínimo talento para isso, mesmo que grave quantos discos quiser, e, entretanto, talvez tenha aptidões para ser um escultor. Mas, como o escultor não actua num palco nem na televisão, então ele só quer ser cantor. Enquanto talvez pudesse ser um excelente mecânico, um talentoso chefe de cozinha ou um desportista excepcional.

Mas porque é que acontece esta banalização do sentido destas (e doutras) palavras? Isto acontece sempre que a classe social detentora do poder político e económico é uma classe dominante inculta, que adquiriu esse poder não como resultado da sua capacidade de produção de bens materiais e culturais, mas sim por via do tráfico de influências e da utilização do Estado para o seu enriquecimento pessoal. Como ela é uma classe inculta, então, para exibir a sua obtusa vaidade, precisa de criar artificialmente uma casta de falsos académicos e falsos talentos que são tão incultos como essa classe que os inventa artificiosamente. Com esse objectivo, essa classe social usa o seu poder financeiro para organizar seminários, galas, concursos, votações e prémios.

E é por causa disso que os ditos “académicos” se esforçam tanto para serem bons serviçais do poder político e económico, e procuram distorcer o saber científico, para tentarem fazer deste um instrumento de propaganda política do seu respectivo partido.

Quando se fala de talento, este significa uma habilidade especial, fora do vulgar, ou seja, fora do banal, e está associado à ideia de perícia, competência invulgar, mestria. Ora, isso só se obtém através de muita aprendizagem e muita prática.

A propósito, Robert Solso, no seu livro Cognitive Psychology, conta a pequena história que se segue. “Há alguns anos atrás, o falecido Bill Chase [investigador na área da Psicologia do Conhecimento] deu uma palestra para peritos, na qual prometeu dizer à audiência o que seria necessário para ser um grande mestre de xadrez. A resposta dele: ‘Prática’. Depois da palestra, eu perguntei a Chase quanta prática. ‘Eu esqueci-me de dizer quanta?’, perguntou ele zombeteiramente. ‘Dez mil horas’.”

Qualquer um pode fazer as contas sobre quantos anos são necessários para se tornar um perito ou um talento em alguma arte ou ciência. No caso de se dedicar à prática duma arte ou à pesquisa numa área científica durante somente três horas por dia, sem falhar nenhum dia, incluindo sábados, domingos e feriados, precisará de cerca de nove anos. E, se descansar nos fins-de-semana, então são necessários doze anos.

Assim, cada candidato a “talento” ou a “académico”, se fizer a contagem de quantas horas por dia dedica ao estudo e à prática pessoal da sua arte ou área de pesquisa científica, poderá calcular quantos anos ainda lhe faltam para poder lá chegar.

A partir daí talvez se possa ter uma ideia de quantos anos ainda faltam para se conseguir criar “um Moçambique evoluído, próspero e democrático” (Programa da Frente de Libertação de Moçambique, 1968). Mas com falsos académicos e talentos nunca lá se chegará.

_____________________________________________

FIM DO TEXTO

Monday, November 06, 2006

Afonso dos Santos

O Afonso dos Santos é uma pessoa cujas crónicas no Savana leio normalmente com muito agrado.
Pedi-lhe algumas para colocar aqui no blog e ele fez-me o favor de me enviar uma mão cheia.
Começo hoje a publicá-las. E, para começar, um tema quente como o inferno:

Diabo

Muito provavelmente há poucas entidades que tenham tantos nomes como o Mafarrico (e cá está um desses nomes). Eis alguns dos nomes dele: Demónio, Demo, Satanás, Satã, Lúcifer, Belzebu, espírito maligno, espírito das trevas, bruxo do inferno. E também há quem lhe chame o chifrudo.

Mas, por vezes, parecem querer designá-lo de formas mais criativas do que estas. Por exemplo: “mão externa”. Mas como a criatividade humana não tem limites, há quem tente dar-lhe ainda outras designações tais como “socialismo” e “marxismo”.

Nos tempos que correm, aparecem cada vez mais indivíduos intitulados pastores, bispos, apóstolos e outras coisas mais, os quais, embora falando em nome de Deus, na realidade mais parece terem um verdadeiro pacto com o Diabo, porque passam mais tempo a ameaçar em nome deste, do que a pregarem a palavra do Senhor que dizem representar. Aliás, a proliferação de tantos porta-vozes até dá quase a ideia de que Deus anda muito indeciso ou bastante hesitante e já não sabe a quem deve designar como seu representante. Ou será isso obra do Diabo? Se assim for, então já se pode compreender melhor porque é que esses flibusteiros passam a vida a falar no Satanás.

De facto, é quando eles aparecem que algumas pessoas começam a ter o Diabo no corpo e se transformam em espíritos malignos, sendo depois libertadas desse malefício por esses trapaceiros que se dizem milagreiros. Ora, não é difícil qualquer janota realizar o malabarismo de libertar alguém do mal que lhe inculcou.

Quanto ao uso da expressão “mão externa” como se ela fosse a mão do Diabo, isso surge no contexto em que governos antidemocráticos se vêem confrontados com acções de luta das massas populares. Esses governos pretendem fazer crer que o povo está a ser manipulado por uma entidade estranha e maligna. Assim agia o governo colonial perante a luta de libertação nacional. Mas parece que alguns, nos dias de hoje, querem seguir os mesmos passos.

Como se vê, a existência do Diabo tem uma grande utilidade. Quando a tua causa não é justa, e, por isso, não é convincente, e, portanto, não podes defendê-la pela positiva, ficas limitado a defendê-la pela negativa, ou seja, tens que inventar um demónio, tens que fazer de alguém ou de alguma coisa um diabo. Em suma, tens que fabricar um inimigo.

Mas acontece que, da mesma maneira que ter saúde não é apenas não estar doente; da mesma maneira que a existência de paz numa sociedade ou num país não é apenas a inexistência de guerra; da mesma maneira que fazer oposição política não é apenas passar a vida a bramar contra quem está no poder; também o Bem não pode definir-se como sendo uma luta contra o Mal. O Bem define-se por valores que lhe são intrínsecos e que geram a felicidade do ser humano. E essa felicidade não consiste em ter um carro para cada membro da família, uma casa com piscina e duas ou três lojas ou empresas. Isso é apenas negócio, mas a felicidade não é um negócio, e muito menos um negócio com o Diabo.

A grande mão do Diabo chama-se Ignorância, e esta é a mãe de todos os medos. No romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, podem encontrar-se algumas interessantes reflexões sobre a natureza do Diabo e sobre o modo de lidar com o gajo. Uma das personagens do romance afirma: “O riso liberta o vilão do medo do diabo, porque na festa dos tolos o próprio diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sapiência.”

Mais adiante, outra personagem afirma: “...o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. O diabo é sombrio porque sabe para onde vai, e, andando, vai sempre para o lugar de onde veio.”

A palavra “vilão”, no contexto em que surge ali em cima, designa o camponês que, na Idade Média, trabalhava a terra do senhor feudal. Também significa, simplesmente, aquele que vive numa vila.

Acontece que, com o andar dos tempos, a palavra “vilão” passou a ter o significado de uma pessoa vil, grosseira, desprezível. E é aqui que aparece esse outro tipo de designações tais como “socialismo” e “marxismo”, que alguns pretendem fazer crer que são outros nomes do Diabo. É que, como se sabe, o socialismo e o marxismo estão associados à ideia de uma sociedade em que as classes trabalhadoras têm uma influência preponderante ou de uma sociedade sem classes sociais com interesses antagónicos. Ora, esse tipo de sociedade só pode ser encarada como um verdadeiro inferno, quer dizer, um reino do Diabo, para aqueles que usufruem de vantagens que são obtidas e garantidas à custa da subjugação e da miséria dos operários e camponeses, os quais, quando lutam por igualdade e justiça social, são logo considerados precisamente como sendo pessoas vis, grosseiras e desprezíveis. Numa única palavra: diabólicos! Tal como o socialismo e o marxismo.

Enfim, uma prova de que o Diabo existe – e que não é um, são muitos, e andam por aí à solta – uma prova disso é o facto de que escrever este texto deu uma trabalheira dos diabos!

_____________________________________________

FIM DO TEXTO