Ideias para Debate

Sunday, January 30, 2005

Diminuir os ministérios

Numa altura em que o Presidente eleito deve estar totalmente concentrado na formação do seu governo, é oportuna a publicação de mais um texto do Elisio Macamo, da série : O Que a Campanha não Debateu:

(5) Diminuir ministérios

Pela forma como as coisas andam no nosso País é difícil perceber porque só temos os ministérios que temos. Podíamos ter mais, de preferência até ministérios para tudo: não só para a mulher, cultura, desportos e meio-ambiente, também para as crianças, idosos, deficientes, regiões, etnias, exploração de montanhas, rios e encostas, comércio informal, organização de eleições, etc. Trata-se de assuntos importantes que merecem o devido reconhecimento através dum ministério. E a vantagem de mais ministérios é que, assim, há mais postos de secretário-geral, director nacional, chefe de departamento e, inevitavelmente, também director provincial e por aí fora. Ministérios criam postos de trabalho bem pagos. E incentivam o sector dos transportes e do turismo, pois há mais gente em movimento no circuito dos seminários e concelhos coordenadores.
Há ministérios que são absolutamente imprescindíveis: negócios estrangeiros, finanças, interior, defesa, saúde, justiça e provavelmente agricultura e educação. Os restantes são para o inglês ver. Não é que o conteúdo do trabalho que os outros ministérios fazem não seja importante. O trabalho do ministério da indústria e comércio, dos recursos minerais, do trabalho, etc. é crucial para o desenvolvimento do País. O que precisa de ser explicado é porque esse trabalho necessita duma estrutura tão pesada como a de um ministério.
O nosso Estado despende, provavelmente, mais dinheiro alimentando a rede burocrática tecida pelos ministérios do que propriamente no trabalho que estas instituições deviam fazer. Em algum momento temos que fazer um compasso de espera para reflectir sobre as razões do nosso atraso económico, social e político apesar do aumento regular e consequente do número de ministérios. O desenvolvimento tem também a ver com a eficiência. Eficiência no uso de recursos humanos, financeiros e naturais. A pergunta que nos devemos colocar é se a estrutura do nosso governo nos permite um uso eficiente destes recursos, sobretudo dos recursos humanos. Tenho as minhas dúvidas.
Em certa medida a lógica que está por detrás da nossa concepção ministerial tem a ver com a nossa dependência do auxílio ao desenvolvimento. Os ministérios não existem para pensar de forma original sobre o fomento deste País, mas sim para responder aos condicionalismos que vêm do exterior. Os exemplos mais caricatos são os ministérios do meio ambiente e da mulher que ficam bem aos olhos das motivações ecológicas e emancipatórias dos que nos querem desenvolver. Mas o que eles fazem em prol do ambiente ou da mulher continua um mistério indecifrável. Mais uma vez, não é a inércia dos seus funcionários que poderia explicar isso, mas sim o facto de que estes assuntos, no estágio actual da nossa sociedade, não podem ser resolvidos nesse tipo de contexto institucional.
Outro exemplo é a constelação que emergiu no ministério da agricultura com a PROAGRI; que sentido faz ainda o ministério? É verdade que a PROAGRI é um instrumento financeiro, portanto, algo que não pode substituir a formulação duma política de aproveitamento da nossa terra. Mas a formulação dessa política justifica a existência dum ministério, ainda mais daquele tamanho, quando a PROAGRI, pela sua estrutura rígida e aparentemente eficiente mostra que são possíveis outros caminhos de racionamento de meios?
A ideia que estou a tentar transmitir aqui é de separar o conceito de ministério do conceito do conteúdo do trabalho dum ministério. O facto de precisarmos duma política de saúde não implica necessariamente que precisemos dum ministério da saúde; o facto de precisarmos duma política cultural, não implica necessariamente que precisemos dum ministério da cultura; o facto de precisarmos duma política de trabalho, não implica necessariamente que precisemos dum ministério do trabalho, e logo aquele que temos; o facto de precisarmos de gerir o nosso estado, não implica que precisemos dum ministério de administração estatal. E por aí fora. O novo presidente pode bater às portas da história levantando este tipo de questões.
E as respostas virão. Por exemplo, o que muitos ministérios fazem não é, realmente, formular políticas, mas sim executar políticas. São instrumentos de execução de políticas. Isso resulta, mais uma vez, da condição de dependência em que o País se encontra. Não há maldade em reconhecer isso, apenas realismo. Duma forma geral o nosso aparelho de Estado é um orgão executivo da indústria internacional de desenvolvimento. Age num contexto em que há pouca margem para a criatividade e originalidade.
Um modelo que me parece mais adequado à nossa condição é a transformação de muitos ministérios em institutos nacionais dotados dum carácter jurídico técnico. Instituto nacional de turismo; instituto nacional do meio-ambiente; instituto nacional do género; instituto nacional de energia e minas; instituto nacional do comércio e indústria; instituto nacional de cultura. Há três grandes vantagens que vejo num arranjo desta natureza. Primeiro, tal como a ideia da criação de gabinetes regionais de fomento a criação de institutos nacionais agilizava os procedimentos burocráticos. O trabalho que estes ministérios fazem ganhava o reconhecimento técnico e executivo que ele de facto tem. Valorizava-se, enfim, a competência técnica, e não política, que caracteriza estes ministérios. Segundo, os institutos podiam contribuir para decongestionar Maputo. Na verdade, os institutos podiam ser espalhados por todo o País segundo critérios políticos e técnicos. Por exemplo, faria sentido ter o instituto de energia e minas na província da Zambézia ou o instituto de pescas em Sofala. Naturalmente, que as regiões podiam competir para atrair a instalação de institutos. Mais gente formada e capaz sairia de Maputo para onde se encontra a acção e dava-se, dessa maneira, um grande contributo para a redução de assimetrias regionais. Terceiro, recuperávamos o protagonismo sobre o nosso próprio desenvolvimento. Este passava a ser um assunto nosso, não uma encomenda de fora. Dessa maneira, ainda por cima, dávamos conteúdo real à política.
Espero que o camarada presidente continue a ler...

Links

É verdade que "links" é um inglesismo desta nossa época de globalização tecnológica, mas não encontro palavra portuguesa para traduzir isto mais satisfatoriamente.
Todo este palavriado para dizer que continuo a não saber como se fazem os tais links de forma que trago para aqui o endereço do blog do José Paulo Gouveia Lemos que, lá do Brasil, continua a acompanhar o que se passa por cá:

www.semtecnica.theblog.com.br

Vão lá que vale a pena.

Saturday, January 29, 2005

Eliminar o lixo

Depois de um interregno provocado pela chegada de um certo número de textos comentando outros, continua a publicação da série de artigos do Elisio Macamo, subordinados ao título geral: O Que a Campanha não Debateu.


(4) Eliminar o lixo

No ano 315 havia 144 casas de banho públicas com autoclismo em Roma. Nos anos oitenta do século recentemente findo havia cerca de 400 casas de banho com autoclismo para cães na cidade de Paris. Por estas alturas o número deve ter aumentado. Em 2004, e muito provavelmente em 2005, 2006, 2007 e, porque não, 2015 – ano em que a pobreza deverá ter sido diminuída em metade no mundo, segundo os objectivos de desenvolvimento do milénio – não há nem uma única casa de banho pública na cidade de Maputo, capital da República de Moçambique. Já houve, mas o que já houve e não há, não há. E não vale contar as barreiras, as árvores, os muros nem mesmo as casas de banho dos centros comerciais.
Existem cálculos segundo os quais mais de 80 por cento das doenças que afectam muita gente nos países em desenvolvimento estão directamente ligadas à insalubridade. Essas doenças são responsáveis por cerca de 20 por cento de todos os óbitos que se verificam nestes mesmos países. Esse até é o mal menor. Quando alguém está doente não pode, provavelmente, ir ao serviço, à escola, isto é, não pode atender ao tipo de coisas que as pessoas fazem no seu quotidiano. E não só. Essa pessoa precisa de ser tratada, o que significa despesas para o Estado. Dentro da lógica capitalista da qual nos queremos apropriar isso não é necessariamente mau, mas para as pessoas afectadas, sobretudo, para os parentes mais próximos, pode ser uma catástrofe.
A morte podia ser, talvez, a solução mais eficiente se não houvesse o grande problema da importância que atribuímos aos funerais: mais uma vez, despesas para a família enlutada, perca de horas de serviço por parte de familiares, amigos e amigos de amigos, colegas e colegas de colegas. Por outro lado, a pessoa que morre leva consigo o investimento que a sociedade inteira fez nas suas capacidades. Um jovem recém-formado que morre de cólera, malária ou qualquer outra doença que resulte directamente do meio insalubre em que vivemos é pior disperdício para o País do que uma viagem de despedida do presidente cessante. Ou do que ir viver na diáspora, pois este pode contiuar ainda ligado à terra.
Toda a gente fala do lixo. É tema de composições musicais, de cartas iradas de leitores, de conversa em todos os cantos. É boa rima para quem quer contrastar com o luxo que define as desigualidades sociais no nosso meio. Há dois anos, o lixo cortou completamente uma via no bairro do Chamanculo, defronte do mercado de Diamantino, ou melhor, o lixo apoderou-se da rua perante a impávida serenidade dos moradores, vendedores e, naturalmente, do concelho municipal. Quem conheceu o bairro do Chamanculo – na verdade, qualquer bairro da cidade de Maputo – no tempo colonial precisa de muita força para ver o estado em que se encontra agora, sem ficar com a vontade de pôr o concelho municipal, os moradores, e todas as circunstâncias que explicam aquela degradação em chamas. Quando chove, formam-se charcos de água que se admiram da indiferença e dos níveis de tolerância dos moradores e demais. E a malária vai reclamando vidas, horas de serviço, velórios, chás, mais uma campa para servir no cemitério de Lhanguene no domingo de manhã e ir, por essa via, alimentando a ociosidade de todos quanto oferecem serviços periféricos lá.
Depois vão distribuir redes mosquiteiras, vão pintar veículos 4X4 com símbolos bonitos para dar a ideia de que estão a fazer qualquer coisa; vão fazer seminários, destacar políticos reformados para organizações internacionais que se ocupam da doença, criar unidades de combate de não sei quantos. Enquanto isso, o lixo vai disputar espaço com o povo e, sempre, admirando-se das facilidades que lhe são dadas. Assisti uma vez a um comício de Hélder Martins, então ministro da saúde, na cidade do Xai-Xai, em que exortava a cada um dos presentes a matar cinco moscas por dia como contribuição para a eliminação da doença. É bem possível que eu não tenha, na altura, percebido a ironia. Se calhar o que ele queria dizer é que o mais fácil era eliminar o lixo. Na altura a Frelimo era muito críptica e para perceber certos pronunciamentos era preciso consultar o relatório do comité central. Coisa que não fiz, é claro.
Não fica bem a um presidente definir o combate ao lixo como uma das suas prioridades. Parece reduzir a importância do cargo. Mas o lixo está a matar. E não só. O lixo é, talvez, um dos principais símbolos do nosso subdesenvolvimento. Nele está patente a nossa incapacidade de gerir a modernidade, de usar os meios modernos de administração de homens e coisas. É só tentar imaginar o tempo que se perde na cidade do Maputo estruturando o nosso quotidiano à volta da ausência de casas de banho públicas: se vou à baixa partindo de Malhazine tenho que calcular o meu tempo em função da regularidade das necessidades biológicas. A indiferença pela insalubridade está a nos obrigar a crescermos duas vezes: aprendemos na infância a não sujar as fraldas; hoje, já crescidos, temos que aprender a não sermos surpreendidos em plena baixa, sobretudo se não houver uma árvore jeitosa, isto é discreta e frondosa, pelo canto persistente e inadiável da necessidade biológica.
Camarada presidente, fraude como não, por favor...

Thursday, January 27, 2005

Democracia

Há amigos e leitores do blog que me criticam por não ter colocado ainda textos meus neste Ideias para Debate. Estão renitentes em me darem o diploma de bloguista por essa razão.
Ora eu já tenho as paredes da casa tão cheias que nem espaço para mais um diploma restou.
Por outro lado o blog está a ser aquilo que eu gostaria que fosse: um lugar onde as pessoas podem colocar civilizadamente as suas ideias sobre o nosso país, concordar, discordar, acrescentar, etc...
Quem ler os textos já publicados pode ver que esse programa está a ser cumprido. Para quem não está habituado ao formato blog chamo a atenção para os comentários ao texto do Gouveia Lemos a que se chega clicando no "coments" no fim do texto.
Mas, para que não digam que não dou a minha opinião, aqui vai o texto que publico no Savana de hoje:

Democracia
APROFUNDÁ-LA OU
AFUNDÁ-LA

Uma das coisas que mais se ouve da boca dos dirigentes da Frelimo é a necessidade de se aprofundar a Democracia no nosso país.
Faz parte daquelas frases feitas que nos habituámos a ouvir dos discursos do poder, junto com a luta contra a corrupção e contra a pobreza absoluta.
Mas, se calhar, esta questão merece ser vista mais de perto.
Num país em paz, como é o nosso caso, o Poder reside nas estruturas do Estado. São elas que têm a possibilidade de traçarem as regras que todos temos que cumprir na vida em sociedade, as leis. São elas que gerem aquilo que é o bem comum de todos os cidadãos. São elas que possuem os instrumentos repressivos para punir aqueles que não cumprem as leis.
Nas democracias mais antigas esses diferentes Poderes foram sendo doseados de forma a que ninguém, nem nenhum partido, ficasse com eles todos na mão. Um dos casos mais conhecidos é o dos Estados Unidos com o seu sistema de “checks and balances” que, numa tradução livre, poderíamos chamar de “pesos e contrapesos”. Este sistema faz com que uns dos centros de Poder sejam sempre compensados por outros, de forma a ele nunca se concentrar muito. A título de exemplo, sendo uma república presidencialista (como Moçambique) o Presidente da República tem o poder de designar os membros do seu governo. Mas, ao contrário do que se passa entre nós, o parlamento tem o poder de chumbar uma ou mais dessas designações.
Ora o que se está a passar entre nós é que o Poder se está a concentrar cada vez mais sem a existência de nenhuns contrapesos.
Ao longo dos últimos anos foi-se generalizando a ideia de que qualquer órgão de poder, qualquer comissão, etc deveria ser formado por pessoas designadas pelos dois maiores partidos parlamentares, de acordo com a mesma proporcionalidade que os deputados desses partidos têm no parlamento. É o que acontece nas comissões parlamentares, na Comissão Nacional de Eleições (e em todas as outras a nível provincial ou distrital), no Conselho Constitucional. Em todo o lado.
Isto em si poderia não ser muito mau se tivesse vingado a tese de, à falta de consenso, as decisões serem tomadas por maioria de 2/3. Só que, como essa tese não vingou, o resultado é que, em todos esses centros de Poder, o partido maioritário tem sempre a garantia de vencer todas as votações. Tenha ou não tenha razão, tem o Poder de impor as suas posições e interesses.
Por outro lado, ao nível do executivo, o Presidente eleito tem o Poder total na escolha dos seus ministros. Incluindo aqueles que controlam as forças militares e militarizadas, desde o exército às diferentes polícias. Isso permite-lhe reprimir, se necessário pela força, todos aqueles que se rebelarem contra as decisões, eventualmente injustas, dos órgãos acima referidos.
Poder-se-á dizer que resta a área da justiça para equilibrar toda esta situação, mas, na minha opinião, nem isso é verdade.
Por muita que seja a vontade de independência dos nossos órgãos de justiça, a verdade é que o Procurador Geral da República é indicado pelo Presidente da República assim como o são, ao que creio, os juizes do Tribunal Supremo. Pelo menos o Presidente e Vice-Presidente são de certeza. E isso, queiramos ou não, tem peso na forma como esses órgãos vão actuar.
No caso concreto da Procuradoria Geral da República, apesar da frase sempre repetida pelo Dr. Madeira de que “Em Moçambique Ninguém Está Acima da Lei”, a verdade é que não me recordo de essa lei ter sido aplicada contra um só dirigente ou militante da Frelimo (ou seu familiar...). Isto apesar de vários deles terem sido denunciados e, até, investigados pela Procuradoria.
Poder-se-ia dizer que o nosso sistema pode permitir um equilíbrio se o Presidente da República for de um partido e a Assembleia da República tiver maioria de outro partido.
Só que, realizando-se as duas eleições em paralelo, no mesmo momento, não é provável que isso venha a acontecer. Num determinado momento as probabilidades são de que quem vota num partido vote também no candidato desse partido.
Voltando ao exemplo dos Estados Unidos vemos que os membros do Congresso não são eleitos todos de uma vez, mas sim em dois períodos diferentes, separados, ao que suponho, por dois anos. Isso permite ao eleitorado premiar o partido no governo ou castigá-lo conforme estiver a ser a governação ao longo desses dois anos de diferença.
Em resumo, a situação entre nós é, neste momento, de um Poder não dividido e que os cidadãos não têm a possibilidade de pôr em causa.
A única possibilidade é através das eleições. Mas nestas o partido no Poder pode fazer todo o tipo de fraudes, apadrinhado por uma Comissão Nacional de Eleições onde tem maioria e por um Conselho Constitucional idem. E com as forças de repressão para travar os mais exaltados.
E, com fraudes ou sem elas, continuar no poder indefinidamente.
Se este tipo de situação não for radicalmente alterada, e nada me indica que o vai ser, não estamos a aprofundar a democracia em Moçambique.
Estamos a afundá-la, o que é muito diferente.

Wednesday, January 26, 2005

A opinião de José Paulo Gouveia Lemos

José paulo Gouveia Lemos tem um blog, o Sem Tecnica (lamento mas ainda não sei fazer links para outros blogs) e publicou lá o seguinte texto:


Um dos blogs que tenho lido é o Idéias para Debates, do agora também
bloguista Machado da Graça. Na verdade ainda não se pode caracterizar o Machado como um bloguista pois o mesmo vem mais reproduzindo textos de terceiros e esperando a reação de quartos pois pelo espaço aberto por ele não ficamos bem a entender o que pensa o mesmo sobre as idéias dos outros.
Mas uma das coisas que o "Idéias para Debates" vem me satisfazendo, é a possibilidade de ler o que pensam as pessoas que vivem Moçambique e em Moçambique.

O último texto que li foi o "Elisio Macamo comenta Tibana" o que me fez reler o texto "Fasquia Alta", uma reprodução de uma crônica do
economista Roberto Tibana.

A visão crítica de Tibana, em relação à administração da Frelimo desde 1975, dos tempos da ditadura pós colônia e depois na democracia, que parece, pela visão do mesmo, só veio para fortalecer a arrogância do partido no governo mesmo após a implantação do voto em terras moçambicanas. O economista não deixa de comparar a imagem negativa da Renamo em relação à má administração dos meticais que este partido, na oposição, recebe do Estado - melhor seria dizer, do povo moçambicano - com
os desvios e corrupção instalada que fazem que parte desses rendimentos vão parar nos cofres do partido no Governo, no caso a Frelimo. Se partilho do espírito crítico do Dr. Tibana, não partilho nem um pouco a comparação de incompetências, do tipo quem é menos incompetente, quem é menos corrupto. Moçambique não precisa e nem deve discutir isso. Moçambique precisa discutir é quem é mais competente, quem não é corrupto. E ainda, pena só ficar-se à roda de dois nomes, Frelimo e Renamo.

Por outro lado, não podemos também entrar na visão comodista, do ser
humano fraco que " têm a tendência de procurar tirar proveito individual de determinadas situações que se prestam a isso" como diz Elisio quando comenta Tibana. Ora, procura tirar proveito do povo, do próximo, quem tem tendência de ser malandro. Esse ditado que diz que "A situação faz o ladrão" não é bem assim; no máximo, a situação poderá confirmar que se é um ladrão. Também achar que se as instituições estão emperradas, que funcionam à base do molha a mão do fulano, que certos crimes não são solucionados nunca e isso não tem nada a haver com o governo que administra o país, também é algo como tapar o sol com a peneira.

De uma forma simples, que talvez um dia eu tenha a paciência de explorar e detalhar melhor o que penso sobre isso, mas talvez o maior problema de Moçambique atual seja a existência destes dois partidos, Frelimo e Renamo.
Se eu tivesse uma varinha de condão,... plim..., uma reforma partidária na tenra democracia moçambicana, o fim destes dois partidos e o inicio do fim dessa concorrência estúpida de quem tem mais valor para a história do país, quem tem o direito de ficar mais rico e virar empresário, quem tem mais direito de ser um simples mortal e por isso se aproveitar da tendência natural de se aproveitar das situações.

Um dia perceberão que os verdadeiros heróis não estão nas poltronas dos dois "grandes" partidos, e para o bem do país que sejam os que estão hoje nas poltronas a perceber isso primeiro.

Gabriel Muthisse comenta Vasconcelos e Tibana

O economista Gabriel Muthisse mandou-me o interessante comentário que publico abaixo:

Conheci Leite de Vasconcelos. Nunca cheguei a falar com ele infelizmente. Mas lia com avidez tudo o que escrevia e publicava. Ele foi, sem dúvida, uma das vozes mais esclarecidas que Moçambique pode-se orgulhar de ter tido. Agradavam-me sobretudo as suas crónicas e a tom elevado com que discutia os assuntos da sua terra. Lembro-me de algumas polémicas em que participou, particularmente as últimas que teve por exemplo com Albino Magaia, outro grande comunicador deste país. Há uma coisa em que o Leite de Vasconcelos deveria ser imitado: a dignificação dos oponentes dum debate. Com efeito, quem debatia com Leite de Vasconcelos não era agredido nem ofendido.

Vejo agora este seu texto indignado. Por aquilo que percebo dos textos do Leite de Vasconcelos, este era um militante esclarecido de uma Esquerda sem rótulos. Aquela Esquerda que acredita no advento dum mundo sem exploração, sem ditaduras, sem pobreza. Uma Esquerda que pugnava e luta ainda por um mundo de fraternidade e de justiça social. Estas são ideias incompatíveis com o rumo que o mundo tomou depois da queda do Muro de Berlim e da Perestroika de Gorbachiev.

Presumo que Leite de Vasconcelos tenha escrito este texto de indignação na altura em que a FRELIMO, esgotada e exaurida a sua tentativa de implantar o socialismo em Moçambique, começa a ensaiar outras alternativas para viabilizar o país. Adopta, em consequência, programas de reforma inspirados pelo FMI e na ideologia que estava em extensão na altura: o neo-liberalismo. É a esta inflecção que Leite de Vasconcelos caracteriza como sendo o bandear-se em bloco, por parte da FRELIMO, para o lado dos vencedores. Ele indigna-se com aquilo que chama de súbita assimilação dos dirigentes da FRELIMO de tudo quanto antes combatiam, a ponto de serem os mais ávidos na partilha dos despojos da guerra, os mais convictos, ainda que incompetentes, defensores do capitalismo.

O ponto que quero levantar é o de que a publicação desta saudável indignação do saudoso Leite de Vasconcelos não deve ser pretexto para um alinhar na lamentação sem fim dos malefícios da viragem à direita da FRELIMO. Este texto deve inspirar reflexões sobre as alternativas que aquele intelectual intuiu existirem para o país. São dele estas palavras: “A questão está em recusar a inexistência de alternativas a este colocar o país acocorado agradecendo que o pacifiquem à custa da sua venda a retalho”.

As alternativas não são de exclusiva responsabilidade dos ideólogos da FRELIMO ou de qualquer outro Partido. Os verdadeiros intelectuais de hoje devem sentir como sendo sua responsabilidade discutir saídas para a situação actual do país. Principalmente quando a descrição que Leite de Vasconcelos fez da oposição continua actual: “oscila entre casos comprovadamente psiquiátricos e o mais descarado oportunismo.

Outro documento indignado é o que foi publicado pelo macro-economista Roberto Tibana. Não sendo possível discutir todo o documento por as questões que levanta serem várias, gostaria de me centrar numa das questões que Tibana debate: a corrupção em Moçambique. Isto porque julgo importante situar melhor a discussão deste tema.

A maneira como esta questão é muitas vezes colocada sugere a ideia de que se mudássemos de dirigentes acabávamos com o cancro da corrupção no nosso país. Basicamente, parece subsistir a ideia de que o fenómeno da corrupção se deve a uma generalizada perda de valores morais por parte dos moçambicanos e a uma degeneração da sua classe dirigente. Elísio Macamo sugeriu, uma vez uma abordagem de corrupção que me parece interessante. Segundo este intelectual, a corrupção ultrapassa as simples questões de moral, devendo ser vista também como um termómetro que indica possíveis desequilíbrios entre a oferta e a procura de serviços públicos.

O enfoque personalizado da corrupção justifica-se em minha opinião em mui contadas circunstâncias. Uma delas seria para responsabilizar criminalmente os corruptos. No entanto, as acções de moralização da sociedade e o reforço dos mecanismos de penalização, sendo importantes, deveriam ser apenas consideradas como acções complementares. As melhores capacidades dos nossos países, humanas e materiais, deveriam ser alocadas no combate às causas básicas do aumento dos níveis de corrupção. Isto implica dar menor ênfase aos aspectos circunstanciais, espectaculares e de curto prazo, mesmo que signifiquem maiores dividendos políticos. É importante ter presente dois factores que, no nosso país, exacerbam a corrupção:
i) a pobreza e os baixos e decrescentes salários na função pública (as pessoas são pagas um salário que se encontra abaixo do limiar de sobrevivência o que cria condições nas quais a corrupção é essencial para a sobrevivência).
ii) Adicionalmente, riscos de todo o tipo (tais como doença, acidentes e desemprego) são altos em Moçambique, e as pessoas, geralmente, carecem dos mecanismos de cobertura de riscos (incluindo segurança social, seguro de saúde e um bem desenvolvido mercado de trabalho), disponíveis nos países que nos servem de referência.

Quero, por fim, saudar a emergência deste espaço que, espero, há-de servir para um debate que se impõe no Moçambique de hoje.

Um abraço

Gabriel S. Muthisse

Monday, January 24, 2005

Elisio Macamo comenta Tibana

Caro Machado da Graça,

Gostava de comentar, brevemente, o texto de Tibana. Acho que ele
nos proporciona uma leitura bastante astuta das últimas eleições.
Está de parabéns por isso. Tenho, pessoalmente, alguns
problemas com o tom da sua análise.
Acho que o seu esforço de perceber o que se está a passar em
Moçambique faz com que dê muita coerência de propósitos a um
grupo de pessoas. Não creio que seja útil analisar os problemas do
nosso país desta maneira. É verdade que há corrupção, nepotismo,
indiferença, arrogância, irregularidades nos processos eleitorais.
Esses males, contudo, não se explicam por uma acção
concertada de seja quem for.
Penso que precisamos de separar dois problemas,
nomeadamente, primeiro, a nossa condição de país em
desenvolvimento e, segundo, aquilo que na falta de melhor termo
gostaria de chamar de lógica situacional. No que diz respeito ao
primeiro não me parece prudente descurar o facto de que muita
coisa que funciona mal em moçambique funciona mal porque o
nosso aparelho de estado, as nossas instituições, pura e
simplesmente funcionam mal. Não acho prudente reduzir isso a
planos malévolos de seja quem for. Quanto ao segundo problema,
penso que devemos ter sempre presente que as pessoas -
independentemente da sua orientação política, do seu extracto
cultural ou racial - têm a tendência de procurar tirar proveito
individual de determinadas situações que se prestam a isso. O
nosso país, pela sua estrutura actual, sobretudo devido à
dependência do auxílio ao desenvolvimento, dispões de "iscas"
que funcionam como uma tentação sobre espíritos fracos. Para o
bem da procura de melhores formulações dos nossos problemas
penso que devíamos ter isso sempre em mente.
Embora oportuna e útil a reflexão de Tibana peca por não distinguir
claramente estes problemas. Um debate sério de ideias não pode
prescindir destas distinções.

um abraço

Elisio

Saturday, January 22, 2005

Governos Provinciais

Dentro da série de textos do sociólogo Elisio Macamo com o título geral O Que a Campanha não Discutiu, aqui vai o terceiro texto. Polémico e a merecer debate, como vão ver:

(3) Abolir os governos provinciais

Apesar de estar ainda longe, um dia o nosso País vai ter mais chefes do que povo. Muitos chefes, poucos índios. Um jornalista camaronês fez uma contagem exaustiva dos chefes que o seu País possui e chegou à alarmante conclusão de que quase metade dos camaroneses eram chefes duma ou doutra coisa. Se, em Moçambique, tivermos em conta o facto de que cada família, juridicamente, tem um chefe esse dia pode, afinal, não estar assim tão distante.
Um tipo de chefe que temos e que, em minha opinião, não precisamos, é o governador. Há razões que explicam a existência deste chefe. Ele – e é sempre “ele” – representa o chefe de Estado na província. Através dele a nação faz-se presente ao nível local. Para um País tão extenso como o nosso e com o tipo de dificuldades que temos em estabelecer a comunicação entre nós, a ideia de reproduzir o chefe de Estado em miniatura, mas sem cachimbo, nos escalões mais baixos da hierarquia do nosso Estado não parece má. O problema, contudo, é que só a função ceremonial não justifica as despesas que este cargo acarreta para o orçamento do Estado. Mas há mais. A existência deste chefe fustiga as esporas do debate étnico, torna o sistema administrativo desnecessariamente pesado e ignora o tipo de dinâmica estrutural em que nos encontramos.
De cada vez que a tômbola das nomeações chega levanta-se sempre a questão de saber se o governador duma província deve ser oriundo da mesma ou não. Muito boa gente pensa que deve ser assim, pois, argumentam, as províncias representam, pelo menos na imaginação dos que defendem esta tese, uma certa coerência étnica. Mesmo nas províncias do sul, que do ponto de vista étnico são mais homogéneas, não me parece pacífica a questão de saber se alguém que é oriundo de “Gaza” é necessariamente representativo da população dessa província. Já que o substracto desta discussão é sempre a etnia, um governador completo de Gaza tinha que ser xangan-chopi-ronga, tudo numa única pessoa.
Há também o problema da redundância administrativa. O governo provincial é uma cópia fiel do governo nacional que se reproduz ao nível distrital e na localidade. Parece uma boneca russa. É um sistema muito fácil de representar graficamente, mas de difícil operação na prática. O director provincial tem praticamente dois chefes, o ministério e o governador, número este que, nalguns casos, subiu com a introdução das autarquias. Que utilidade tem um esquema burocrático tão pesado como este? É muito provável que se perca mais tempo a coordenar actividades do que realmente a desenvolver essas actividades.
Finalmente, os governos provinciais não se afiguram como sendo os instrumentos mais adequados para responder aos desafios do desenvolvimento tal e qual são enfrentados pelo País. Num momento em que precisamos de estruturas dinâmicas, mais autonomia para as comunidades e flexibilidade no processo de decisão, os governos provinciais funcionam muitas vezes como um impecilho que dificulta a articulação de necessidades e actividades destinadas a prover por essas necessidades. Mesmo governos provinciais conduzidos por gente aparentemente hábil como é o caso de Nampula e Sofala não lograram ainda activar o potencial que as suas províncias detêm. E isto não é por culpa dos governadores, é sim porque a própria estrutura, portanto os governos provinciais, não é a melhor resposta aos desafios do desenvolvimento.
Abole-se os governos provinciais e fica-se com o quê? O momento que atravessamos exige maior flexibilidade, mais criatividade e mais responsabilização do indivíduo e da comunidade. Desenvolver o País não deve continuar a ser só tarefa do governo, tem que ser tarefa de cada um de nós. A nossa divisão administrativa reflecte ainda as zonas militares dos portugueses, portanto, não tem nada a ver nem com a economia, nem com a etnia. Parece-me que uma estrutura mais adequada ao momento seriam gabinetes regionais de fomento – melhor do que “desenvolvimento” – que reuniriam apenas técnicos com a tarefa de identificar as potencialidades de cada região, elaborar planos de exploração dessas potencialidades e assessorar as comunidades e indivíduos interessados em tirar proveito do que a região tem para dar. O gabinete de desenvolvimento do vale do Zambeze é um bom exemplo disso. Estes gabinetes teriam também a vantagem de atrair as pessoas formadas para fora de Maputo e, dessa maneira, dar aos muitos defensores da identidade étnica e regional a oportunidade de ir servir a sua etnia directamente na sua região de origem.
Há, porém, limites à realização dum projecto desta natureza. Certos procedimentos burocráticos como o registo civil, a garantia da segurança interna e externa bem como os impostos vão continuar a precisar dum certo nível de centralização. Na verdade, é nesses procedimentos que se reproduz o chefe do Estado, não na figura do governador. Bom, pelo menos devia ser assim. Igualmente, um projecto desta envergadura não é possível sem um processo consequente e implacável de descentralização. A descentralização não deve ser entendida apenas como a satisfação de condições impostas do exterior. É uma oportunidade de responsabilização de cada um de nós e respectivas comunidades pelo seu próprio fomento. É à comunidade que compete explorar os potenciais da sua zona; é a ela que compete livrar-se do lixo, trazer infraestruturas, etc.
O novo presidente pode fazer muito pelo País lançando as bases para um debate sobre este assunto. É verdade que não é fácil enveredar por esse caminho. No fundo, os governos provinciais não estão apenas para representar a nação. São também um meio de alimentar redes clientelares. Ajudam ao chefe de Estado a acalmar os ânimos dos desapontados; com tantos lugares de chefia por distribuir, sempre sobra algum para reestabelecer equilíbrios étnico-regionais ou saldar dívidas por favores prestados. Colocar-se acima dessa tentação podia ser um bom pretexto para entrar no panteão histórico nacional. Pode ser que não seja necessário abolir completamente os governos provinciais, mas nesse caso, seria necessário pensar seriamente na oportunidade de eleger o governador para que ele responda directamente às pessoas que deve servir, não à pessoa que quer satisfazer.

Friday, January 21, 2005

Troca de Ideias

Este blog foi aberto como local para a troca de ideias. Agradeço, portanto, à Maria de Lurdes Torcato pelo texto que enviou e que se transcreve abaixo:

Caro Amigo
Acedi ao Blog mais fácilmente do que me julgava capaz. A iniciativa é
óptima e só posso lamentar o meio restrito que ela atinge.

1 - Começando pelo texto mais antigo, o do Leite de Vasconcelos, foi pena ele não lhe ter dado publicidade na altura em que o escreveu. Mas é reconfortante lê-lo mesmo só agora. Continua a impressionar pela clareza de pensamento, articulação e expressão das ideias, mas também porque não é só o texto seco e frio de um teorizador que raciocinava bem, é o sentimento de um nacionalista frustrado por as coisas se terem passado como se passaram na década de 85-95. Como êle, somos muitos a rever como mal empregues os melhores anos da nossa vida, ludibriados por quem nos fez acreditar, nos anos 70, num projecto que afinal, vêmo-lo hoje claramente, não era levado muito a sério pelo "colectivo" que tinha o poder de o pôr em prática, ou pelo menos pelo "colectivo" inteiro. De qualquer modo teria
sido bom para todos os moçambicanos o conhecimento de ideias diferentes, de ideias arrojadas e descomprometidas, de "ideias", pura e simplesmente.
Curiosamente, a Frelimo que o L V desanca com tanta virulência, ao começar a deixar-se envolver e seduzir pelo seu próprio inimigo, deixou também de produzir "ideias" mesmo sob a forma de doutrina. "A questão está em recusar a inexistência de alternativas a este colocar o país acocorado agradecendo que o pacifiquem à custa da sua venda a retalho" - escreveu LV que pensava que as classes trabalhadoras deviam organizar-se para resistir à recolonização do país. Mas se o pensou não teve a oportunidade de o dizer em voz alta e o expôr à crítica e à discussão. Todos nós, seus contemporâneos, tivémos responsabilidade nisso. Para que este estado de coisas não persista, encorajemos agora uma nova geração de pensadores a exprimirem-se e a conduzirem o debate com os seus compatriotas. Apesar do vazio de ideias de mais de uma década, o pensamento moçambicano existe e o sentimento patriótico está vivo. É altura de responder ao apelo contido no poema de Jorge Rebelo.

2 - O texto de Roberto Tibana é já uma dessas respostas. É uma
interpretação da história recente e uma denúncia ainda mais virulenta que a do LV contra os que fizeram guerra e fazem politica para benefício pessoal, usando o multipartidarismo e outras vantagens da democracia que desprezam, para correr em direcção às suas metas. O povo é deixado na berma da estrada a olhar os maratonistas. Depois de ler RT percebemos melhor os 65% de abstenção nas últimas eleições. LV e RT não aderiram ao projecto moçambicano de 75 pelas mesmas razões, o que se explica pelas diferenças de geração e de formação política; mas aquilo em que diferem, passados 30 anos e muitas mudanças no panorama internacional, já não tem
nenhum peso. Aquilo que os uniria se LV fosse vivo, seria o nacionalismo puro e desinteressado e a generosidade na entrega ao serviço do povo em detrimento do interesse pessoal. Os textos de ambos trazem o mesmo clamor por justiça, verdade e honestidade. Estes são valores humanos universais, para lá de ideologias, religiões e culturas.

3 - Também fui atraida, aliás porque me chamaram a atenção para eles, pela série do sociólogo Elísio Macamo (que tão tipicamente os editores do Notícias remeteram para a página recreativa!). Seria muito bom que o Machado da Graça trouxesse a série completa para este espaço. EM acredita na necessidade do debate de ideias para fazer avançar a sociedade. É óbvio que não só acredita no debate como na democracia (que lhe está associada desde o tempo dos Gregos que a teriam legado à chamada civilização ocidental), e não tem medo deles. É um intrépido soldado das guerrilhas libertadoras da nossa era, que se fazem com o pensamento que gera ideias, e com a palavra que as traduz e as comunica. O desafio que ele lança como perguntas podia atrair um forum em que os participantes ofereciam as suas
ideias à crítica dos outros. Divulgar essas participações seria tarefa dos meios de comunicação social. Há dias, em conversa informal, um dos intelectuais deste país, Luís Bernardo Honwana, dizia que quem tem ideias sobre os assuntos não deve necessáriamente estar a executar governação; mas um governo interessado em desempenhar a sua tarefa o melhor possível deve usar os intelectuais como se faz noutros países, como o "Think-tank" onde vai buscar beber ideias e sugestões. O mundo tal como está hoje, de unipolarizado pode passar a monolítico e totalitário se não houver
cidadãos que se unam para resistir e ocupar os espaços ainda vazios com ideias diferentes e alternativas práticas, para contrariar a uniformidade que nos querem impor.
Maria de Lourdes Torcato

PS - Às questões que EM levanta eu queria acrescentar algumas. Será que os nossos políticos se consideram hábeis e merecedores de admiração quando mentem descaradamente aos jornalistas, quando os fintam e desconcertam com respostas impossíveis de rebater sem ser grosseiro? Desgraçadamente para a ideia que eu tinha do nosso "homem de acção" vi-o fazer isso mesmo ao Jeremias Langa da STV que perguntava como se podia prevenir um presidente-empresário de confundir os seus interesses com os do Estado.
Com a Constituição - foi a resposta imediata. O jornalista não insistiu e eu senti o seu embaraço. Onde é que a Constituição prevê isso? É que se previsse, estaria a prever também que um político sem escrúpulos e ganancioso dos bens públicos chegasse ao lugar mais alto da magistratura.
Outra é a do Procurador-Geral da República que vi ser citado num semanário dizendo que só sabia das últimas do caso Anibalzinho pelos jornais.
Pretende o Senhor PGR que achemos normal não estar melhor informado do que eu, mesmo tendo acesso a dossiers que a mim são vedados?

Thursday, January 20, 2005

Reforçar a oposição

No momento em que a opoasição acaba de ser arrasada pelos "doutos" acordãos do Conselho Constitucional é bastante oportuno o segundo artigo da série publicada por Elisio Macamo:

(2) Reforçar a oposição

No pugilismo não se bate num adversário caído. Na política tudo vale, mesmo bater num adversário caído. A política é uma coisa engraçada. É uma competição com muito poucas regras. O objectivo não é só de ganhar, mas também de derrotar. Ganhar significa sagrar-se vencedor; derrotar significa mostrar a todo o mundo que a vitória foi possível graças à nossa superioridade sobre o adversário. A política é uma competição que, em princípio, não difere de outro tipo de competições. Mas neste aspecto de ganhar e derrotar torna-se diferente.
Em futebol, basquetebol ou n’tchuva é suficiente marcarmos mais pontos que os adversários. A vitória sabe melhor quando o adversário é forte e nós nos impomos sobre ele. Em política ter mais votos que os adversários não é suficiente. A vitória sabe bem quando para além de termos mais votos enfraquecemos o adversário de modo que não nos atrapalhe quando estivermos a festejar a vitória. As mensagens que circularam por aí nos dias que se seguiram ao anúncio dos primeiros resultados das eleições – que indicavam uma vitória folgada da Frelimo e de Guebuza – a ridicularizar Dhlakama e seu partido revelam, por um lado, quão apreensiva muita gente estava em relação a uma possível vitória da Renamo, mas, por outro lado, também esta lógica destrutiva do jogo político.
É uma lógica perversa. Ao contrário do que muita gente crê, o princípio que fundamenta o jogo democrático não é, propriamente, a alternância política. Uma democracia não é democracia porque de cada vez que há eleições sobem ao poder novas pessoas ou partidos. Uma democracia é democracia porque não põe de parte essa possibilidade. Isso é que faz a democracia. Acima de tudo, contudo, o que distingue uma democracia de outros sistemas políticos é o espaço que ela abre para o debate de concepções alternativas da gestão da coisa pública. No fundo, se calhar, o jogo político é mesmo como qualquer outro jogo. Uma liga de futebol é tão forte quanto forem fortes as equipas que nela participam; da mesma forma, uma democracia é tão forte quanto forem fortes os partidos que a compõem. Se Real Madrid jogasse duas épocas na liga moçambicana de futebol juntava-se, com muita certeza, à nossa mediocridade.
A retumbante derrota sofrida pela oposição nas últimas eleições, com ou sem fraude, é um mau agoiro para o nosso País. Moçambique, mais do que nunca, precisa duma oposição forte, por mais não seja que para elevar o nível da nossa democracia. Tal como no futebol. A oposição perdeu por várias razões, as principais das quais têm a ver com os meios financeiros e materiais ao seu dispôr, a qualidade do líder da principal força de oposição e também à natureza fragmentada de todo o campo de oposição. Que desempenho teria tido a Renamo se tivesse sido conduzida por Raúl Domingos neste pleito eleitoral?
Já que a Frelimo se vê como um partido que traz no coração os interesses nacionais, ela devia ver a fraqueza da oposição como uma forte ameaça ao sucesso da democracia. E se a democracia falha, vai falhar muita coisa em Moçambique. Guebuza não se devia banhar na glória de derrotas infligidas – e merecidas, diga-se de passagem – a uma oposição fraca. Não tem piada. Há várias razões que justificam uma oposição forte.
Primeiro, o governo precisa de ser interpelado de forma competente no seu trabalho. Isso deve acontecer não só no parlamento como também fora através dum trabalho consequente de articulação de interesses. É, deveras, arrepiante como a nossa oposição nunca conseguiu ser porta-voz de interesses claros dentro da nossa sociedade: sindicatos, camponeses, empresários, profissões, etc. É uma oposição sem âncora social. Um exemplo particularmente marcante é a falta de sustento social para a sua exigência de novas eleições. Segundo, governos com longa permanência têm a tendência de se tornar arrogantes. Não dão ouvidos a mais ninguém para além de que propiciam males como o nepotismo. Uma oposição forte poderia ser o ponto de articulação duma consciência nacional. Quem sabe, se calhar os altos índices de abstenção se expliquem pela incapacidade da oposição de mobilizar as pessoas para verem na participação política o meio mais eficaz de articular preocupações. Finalmente, uma oposição forte constitui a melhor maneira de usar todo o potencial intelectual que o País possui. O governo tem o mandato do povo para governar, mas mesmo aqueles que não têm este mandato directo podem contribuir para a qualidade dessa governação questionando os méritos da política. Uma oposição forte garante isso.
A necessidade duma oposição forte precisa, contudo, de ser qualificada. Reforçar não significa simplesmente dotar a oposição de recursos materiais e intelectuais. É verdade que a este respeito, a Frelimo deverá repensar seriamente o uso e abuso dos recursos do Estado para fins próprios. Aqui pode ser útil estabelecer critérios claros que permitissem à sociedade verificar em que medida os recursos do Estado estão a ser usados na promoção dos interesses do partido no poder. Um dia a Frelimo também estará na oposição e não deveria esperar até aí para debelar este mal. Mas no que diz respeito directamente à oposição parece-me absolutamente imprescindível que o legado do Acordo Geral de Paz seja paulatinamente transformado para tornar a oposição operacional.
O AGP impôs a Renamo como segunda força. Está mais do que claro que a sabedoria da oposição não reside aí. Gente aparentemente capaz como Eduardo Namburete, Ismael Mussá e Manuel de Araújo, só para citar alguns, podia ter feito muito mais num partido mais inteligente como a Fumo, sob Domingos Arouca, ou mesmo Monamo de Máximo Dias, para já não falar do PDD de Raul Domingos, se estes gozassem das mesmas prerrogativas de que a Renamo goza no actual quadro político nacional. A pedra no sapato da Renamo é, sem dúvida, o próprio líder, cujos planos de adoptar a paciência de Lula da Silva ou de Abdoulaye Wade comprometem seriamente as perspectivas dum futuro melhor para a oposição. Guebuza podia contribuir para o alívio da oposição oferecendo a Dhlakama um posto como representante do País fora. Isto podia incluir, por exemplo, um cargo de embaixador na China ou na Rússia – onde ele podia fazer menos estragos – ou qualquer outro cargo onde ele pudesse pôr a juventude que reclama para si ao serviço dum sistema político útil e funcional. Sem ele.

Tuesday, January 18, 2005

Boas Festas

Recebi o cartão de Boas Festas da família do poeta e político Jorge Rebelo. Penso que tem trodo o cabimento transcrevê-lo neste blog:


APELO

Camarada, companheiro, combatente,
É rica e bela a herança que deixaste:
Os homens irmanados numa causa justa,
A terra que acolheu os verdadeiros filhos,
A lenda viva dos libertadores da pátria,
O solo fértil que as nossas mãos fecundam.
Tudo isto nos legaste, fruto das longas marchas,
Da unidade com o povo, da tua arte
e saber profundos.
Ah, e a Mensagem: mensagem de luta pela paz,
De entrega total, de justiça, de igualdade,
De denúncia e combate aos que se vendem.
Porque cresceste no fogo dos combates,
Alheio às intrigas dos palácios,
A tua alma é livre. Reside aqui
A tua grande força.
É certo: já não és a força justiceira
Que fazia mover a tera
E tremer o inimigo.
Mas és ainda a esperança,
A inspiração e a bandeira.

Camarada, no novo tempo sem lei,
Em que os abusos são regra
E a injustiça domina,
Tens tu que erguer-te de novo
E prosseguir a missão.
E armado da tua crença,
Do eterno amor pela pátria,
Dizeres "basta!" we destroncares
Aqueles que hoje, agora, impunemente
São os novos inimigos:
Os chefes sem rosto que traficam o poder,
Os mandantes do crime que planeam na penumbra,
Os donos da droga que viciam os teus filhos
Os chefes venais cobradores de comissões
("quinze por cento para mim ou não assino")
Os juizes corruptos que ilibam a quem mais paga,
Os que vendem a pátria
a quem mais paga.

Camarada, no novo tempo sem lei
Tens tu que erguer-te de novo
E prosseguir a missão.



No novo quinquénio
Votos de paz
desenvolvimento
e o fim da corrupção

É ilustrado com uma foto de guerrilheiros armados no mato.

O que a campanha não discutiu

O sociólogo Elisio Macamo publicou, recentemente, no Notícias uma série de artigos subordinados ao título geral acima indicado.
Porque os artigos me parecem muito interessantes e terão passado despercebidos de grande número de leitores, ali escondidos na penúltima página do jornal, aqui os vou reproduzir.
Hoje publico o primeiro:

O que a campanha não discutiu – Onze ideias para debate
Por Elísio S. Macamo

(1) A era Guebuza?

Há várias maneiras úteis de interpretar as últimas eleições. A “declaração de Maputo” não é uma delas. Tudo indica que houve irregularidades, umas graves, outras não assim tão graves. Contudo, essas irregularidades não me parecem comprometer seriamente a integridade dos resultados. Embora surpreendentemente altos a favor da Frelimo e do seu candidato presidencial, os resultados reproduzem vários aspectos da qualidade da nossa esfera política. Uma qualidade refere-se aos assuntos que lhe são constitutivos. Os resultados mostram, na verdade, que existe um grande fosso entre o discurso político e o quotidiano das pessoas. Numa situação dessa natureza, quem beneficia é o partido que consegue falar aos seus simpatizantes e mobilizá-los a votar. A nossa oposição, cuja intransigência actual é bastante sintomática, não parece ter sido capaz de fazer isso. A outra qualidade é se será mesmo do interesse de todos nós que as coisas internas sejam feitas apenas com a benção externa. Está visto que por mais elevado que seja o número de observadores internacionais e nacionais a democracia não tem nenhuma possibilidade de êxitos enquanto não houver confiança e auto-estima entre nós.
Nesta série de artigos gostaria de propôr alguns assuntos para debate que nos podem, talvez, ajudar a dar maior substância à política. Concebi-os como um desafio ao vencedor das eleições e ao nosso País nos próximos anos. No momento em que escrevo tudo indica que Guebuza será o novo chefe de Estado. Há fortes razões para crer que a vitória retumbante que ele e o seu partido conquistaram se deva ao seu empenho pessoal. Não tenho a certeza se as constantes viagens que fez às províncias, à “revitalização das células”, como se diz nos círculos partidários, foram determinantes para o desempenho da Frelimo. Algo me diz que não. Mais do que este trabalho árduo e necessário, e a despeito do que outros analistas dizem, dois factores concorreram de forma fundamental para os resultados alcançados: a desigualidade de recursos financeiros e materiais e as limitações intelectuais do principal partido da oposição.
Não me parece necessário elaborar os detalhes destes factores, pois são do conhecimento público. De resto, mais adiante nesta série, ainda me vou debruçar sobre o assunto. O que me parece importante neste momento é colocar a pergunta que quer Guebuza, quer o seu partido deviam neste momento colocar: o que significa esta vitória? Na verdade, todos nós devíamos colocar esta pergunta. O que significa mais um governo da Frelimo? O que significam mais cinco anos de oposição dominada pela Renamo e por Dhlakama? Que agenda política se anuncia?
Um aspecto particularmente saliente das últimas eleições – aliás de todas as eleições até à data – é que se caracterizaram por um nível extremamente baixo de debate substancial. Enquanto que a oposição reduziu a sua campanha às acusações de corrupção e à promessa dum melhor desempenho, o partido no poder preferiu insistir na ideia de que ele é sinónimo de estabilidade e prosperidade. Estas estratégias, para bem dizer, eram de esperar. Mas o que é de esperar não é necessariamente bom para a saúde do nosso País. Se o nosso País não quer ser como os pobres – que só vão para a frente quando tropeçam – vai precisar de colocar o debate substancial no centro da sua agenda política. Só o debate é que nos vai levar adiante.
Neste sentido, o principal significado que estas eleições têm é de que são uma responsabilidade muito grande para todos nós. Mas sobretudo para Guebuza. Mondlane despertou-nos à necessidade de lutarmos pela nossa liberdade; Machel conduziu-nos à independência; Chissano tornou a democracia possível, pesem embora os protestos de paternidade que vêm de outros cantos. E Guebuza, em que qualidade vai entrar na história? Como o presidente que acabou com Dhlakama? Parece-me pouco e nada ambicioso.
Não é que cada presidente precise necessariamente de fazer algo de novo. É perfeitamente concebível que um presidente prefira apenas gerir bem o que os outros lhe legaram. E o momento que o nosso País atravessa exige, no mínimo, precisamente isso. Só que também exige mais, pois o que foi feito é apenas o começo. Guebuza parece reunir as qualidades necessárias para a formulação duma visão. Durante a campanha essa visão pautou pela invisibilidade. Muitos comentadores, inclusivamente os que são simpáticos à Frelimo, questionaram ao longo da longa campanha que fez, justamente se era possível reclamar o perfil duma força da mudança sem nenhuma visão formulada que procurasse marcar a diferença com o actual estado de coisas.
Uma das qualidades que tornam inevitável a formulação duma visão – não do estilo Agenda 2025, pois essa é do reino do fantástico – é a ideia que se formou de Guebuza como um homem de acção, algo, diga-se de passagem, fácil de ser se se tem como pano de fundo a calma chinesa do seu predecessor. O que, então, o nosso homem de acção vai fazer para fugir ao tédio da Ponta Vermelha? Ofensiva política e organizacional? Operação Produção? Vinte e quatro e vinte? Viagens ao exterior? Rebaptismo de avenidas, escolas, parques e centros de conferência em seu nome?
Nos artigos que se seguem vou propôr ao nosso homem de acção alguns assuntos para reflexão. A maior parte incide sobre o quadro institucional dentro do qual o nosso País é governado: Precisamos de governos provinciais? Precisamos de tantos ministérios? Que tipo de mão de obra precisamos? Que tipo de segurança social precisamos? Outros assuntos vão incidir sobre o conteúdo da política: Precisamos do lixo? Precisamos duma oposição fraca? Precisamos da corrupção? Que tipo de integração precisamos para a nossa diáspora? Sobre estes assuntos tenho opiniões assentes que pretendo defender claramente. Um assunto sobre o qual estou indeciso, mas que acho que deve ser discutido, é o das assimetrias regionais. Vou apenas expôr os argumentos que me ocorrem para um e outro caso e esperar que haja interesse em discutir o assunto.
Distribuí versões preliminares desta série de artigos a alguns amigos para comentarem. Embora a sua composição não seja completamente representativa do nosso País as suas reacções, de apoio e rejeição de alguns pontos, deixaram-me com a impressão de que se trata de assuntos que não deixam ninguém indiferente. São assuntos que podem ser discutidos. Um deles escreveu “... estes textos poderão não ser do agrado de alguns guardiões da pureza. Publique-os de qualquer forma!”. Não consigo imaginar melhor recomendação.

Monday, January 17, 2005

Fasquia Alta

Em 10 de Dezembro de 2004 o economista Roberto Tibana publicou, no Mediafax, o seguinte texto:

Eleições 2004: Quando a fasquia
foi levantada demasiado alto

(Maputo)Trinta anos de governação
da FRELIMO em Moçambique deram para
vermos tudo o que os políticos da geração
que passa em África nos podem dar, desde
catalisar os povos e guiá-los numa epopeia
libertadora de inquestionável e inapagável
valor histórico, passando por desastres
económicos, políticos e militares resultantes
de um misto de inexperiência, ingenuidade,
clientelismo em relação a potências mundiais
em disputas geo-estratégicas e ideológicas,
até chegarmos ao realismo político a que a
evidência dos factos necessariamente levou
e que os convenceu da necessidade de relaxar
o seu controlo autocrático da sociedade,
para ainda desaguarmos na ilusão dos
sistemas económicos e políticos corruptos
que se desenvolveram na sequência das
liberalizações dos anos 1980s/90s.
Quando aqueles da minha geração que
não haviam participado na luta clandestina
e na luta armada de libertação nacional
recebemos a FRELIMO, estávamos imbuídos
do mesmo espírito nacionalista que
impregnava toda a sociedade e os guerrilheiros,
mesmo naquela nossa juventude.
A história contada quase mítica da guerrilha
e dos feitos e qualidades dos líderes e
do movimento só veio reforçar esse entusiasmo.
Mesmo quando na convivência e
participação activa nas actividades de reconstrução
pós-colonial como simpatizantes
do movimento nacionalista e como
cidadãos nos íamos dando conta de anoma-
lias e erros, da intolerância e manipulação, da
exclusão e extremismo, o dogma da verdade
e da pureza do movimento e da liderança que
nos foi inculcado eram suficientemente fortes
para criar aquela zona de tolerância que nos
levava sempre a dar o benefício da dúvida aos
homens que fizeram o Moçambique independente.
Mas o totalitarismo do regime, a tortura,
as prisões arbitrárias e sem julgamento,
seguidas de deportações, a recusa ao diálogo
com os irmãos que mais cedo do que
muitos de nós se deram conta dos males do
regime e o questionaram, fizeram desmoronar
o castelo de cartas, e iniciaram o ciclo vicioso
do declínio económico e social da sociedade
moçambicana.
A génese da RENAMO, em particular
as suas ligações com os regimes militares da
Rodésia do Sul e da África do Sul é bem
conhecida e não é negada mesmo pelos dirigentes
deste movimento de insurreição agora
tornado partido político. Os métodos brutais
de recrutamento e incorporação na guerra
são bem conhecidos. A destruição das
infraestruturas sociais e económicas, as vítimas
inocentes nas estradas e aldeias, estão
registados na memória das famílias e da sociedade..
Mas só quem não conhece a natureza
das lutas de guerrilha e da contra-guerrilha
é que teria a ingenuidade de acreditar na
versão oficial da FRELIMO em como todas as
barbaridades da chamada “guerra dos dezasseis
anos” foram o produto exclusivo das
operações da RENAMO. Se as duas partes
tivessem aceite abrir um processo de reconciliação
nacional que incluísse a denúncia e
confissão dos actos desumanos e criminosos
durante essa guerra, tanto os cometidos
a mando dos comandos superiores ou por
iniciativa de comandos locais ou de grupos
de guerrilheiros e soldados de ambas as
partes, teria sido difícil saber-se de que lado
a balança pende, pois para além dos crimes de
guerra existem também os crimes de abuso,
prisão, tortura e matança pública a coberto
da defesa da soberania do Estado, cometidos
por um regime totalitário de partido
único, em nome da soberania do povo e
nos interesses do povo, mas que se tornaram
um verdadeiro desastre que levou a
sociedade décadas atrás no caminho do
progresso humano.
Acreditando na paz trazida pelos
acordos de Roma de 1992 entre as duas
partes detentoras de armas, e com o desejo
de consolidar essa paz, o povo saiu em
massa para as eleições de 1994 e com
dificuldades de escolher entre os dois,
quase que lhes deu o mesmo crédito por se
terem entendido em poupá-lo do martírio
da guerra. Mas segundo os impulsos inerentes
à cultura de exclusão típica dos líderes
africanos, e aproveitando o sistema
necessariamente imperfeito da democracia
do vencedor que fica com tudo, só um
deles podia governar e a FRELIMO ficou
com o poder. E com isso, convenceu-se da
sua legitimidade inquestionável. Em 1999
o povo foi mais uma vez chamado a dar o
seu veredicto. Quis experimentar a
mudança, mas desta vez o desrespeito pela
sua soberania foi ao extremo. A fraude de
1999 é hoje um segredo público. Mesmo os
observadores internacionais que ingenuamente
ou não a permitiram e fizeram o
povo incauto engolí-la em seco, têm hoje
o peso na consciência por assim terem
procedido. Mas isso é tarde demais. Perdemos
vidas em Montepuez e em várias
partes do país, perdemos Carlos Cardoso,
o país quase parou no seu progresso, e
uma elite predatária e um grupo de criminosos
capturou o estado e mantém o povo
como refém dos seus ditames.
Nesse tempo todo, a FRELIMO foi
ajudada pela ineficácia política do seu
adversário directo, a RENAMO, que só
muito tardiamente se apercebeu da erosão
do seu poder de facto antes baseado no
controlo militar de vastas porções do território
e que terminou em 1992-94 com os
acordos de Roma e o desfecho das eleições
de 1994. Em lugar de rapidamente sair das
suas trincheiras e exclusivismo típico de
todas as guerrilhas que se vangloriam libertadoras
das massas supostamente passivas
e sem poder nenhum, e em lugar de avançar,
dialogar, desenvolver ideias e projectos de
desenvolvimento e governação alternativos,
e em lugar de se organizar, ligar continuamente
e trabalhar para curar as feridas e
a sua relação com o povo que sofreu com a
guerra, em lugar de rapidamente buscar
alianças com elementos da classe média à
procura de uma alternativa credível ao
incumbente desgastado pela história de governação
autocrática, erros de políticas, e
corrupção, a RENAMO acreditou na irreversibilidade
dos ganhos de 1994 e 1999 e
apostou na força da inércia da legitimidade
da sua luta pela instauração de um regime
democrático em Moçambique. Porém, tendo
conseguido evitar a derrocada total do regime
através das conversações de Roma,
tendo saído de lá com ainda um certo controlo
do poder político institucional derivado
do reconhecimento internacional da sobera-
nia do seu governo, e tendo conseguido
manter esse poder com a sua vitória marginal
em 1994 e o feito acrobático de 1999, nos
últimos 10 anos a FERELIMO usou muito
inteligentemente esse poder político para ir
impondo as instituições de uma democracia
largamente parcial e fictícia, mas que
tinham o efeito de progressivamente ir
estabelecendo as condições para uma hegemonia
total e de longo prazo a coberto de
processos aparentemente livres e justos
sufragados eleições periódicas. Ela criou
uma classe média baseada na administração
pública e uma elite de negócios profundamente
ligada ao Partido, e que lhe
serve de canal de recursos financeiros e
materiais gerados tanto no sector privado,
como daqueles tornados disponíveis ao
governo através da tributação e das doações
internacionais para os programas de
desenvolvimento do país.
Há sim uma fraude em curso em
Moçambique. Mas esta é uma fraude que
não começa nem se desenrola somente no
teatro das eleições nem nos eventos da
votação ou da contagem dos votos. O que
nós assistimos nos últimos dias não é nada
mais do que mais um episódio numa fraude.
Trata-se de uma fraude contra o povo
moçambicano que se desenvolve desde
1975, quando o poder tomado pela força
das armas da guerrilha contra a administração
colonial não foi devolvido ao povo
pelo sufrágio universal, mas sim mantido
nas mãos de uma elite exclusivista que o
usou para acumular mais poder e riqueza
com os quais pretende manter e perpetuar
a sua hegemonia sobre o resto de todos
nós. Numa das suas outras expressões
cultivadas mais recentemente na história
do pais, essa fraude toma a forma da apropriação
ilícita dos recursos públicos para
benefício pessoal por parte dessa elite
política e seus familiares e amigos, e inclui
o uso desses recursos para fortificar a sua
organização e poder político. As manobras
todas, desde a manipulação do estabelecimento
das instituições e do processo de
recenseamento eleitoral, até à desorganização
deliberada da logística das eleições
da semana passada através da Comissão
Nacional de Eleições e do Secretariado
Técnico para a Administração Eleitoral,
são somente uma parte de uma grande
operação para a manutenção do poder, a
todo o custo, por um grupo que cada vez
mais o procura só com o fito de fazer avançar
os seus interesses privados e individuais.
É sim verdade que o candidato presidencial
da FRELIMO cavalgou o país de alto a
baixo nos últimos anos reavivando as bases
do seu partido. Não é o mérito pessoal dele
que está ou não em causa. Fala-se muito da
má gestão da liderança da RENAMO e da
ineficácia deste partido em termos da organização
das suas bases para ganhar o poder
e governar eficazmente o país. Mas nisto
tudo ignora-se o volume de recursos públicos
que têm desaparecido dos cofres do
Estado à guarda do governo da FRELIMO, e
que são centenas de vezes superiores aos
míseros valores de que a liderança da RENAMO
é acusada de mal gerir. E pretende-se que
os propalados quatro biliões de Meticais que
a RENAMO-UE recebe do Orçamento do
Estado são em pé de igualdade aos valores
desviados do Estado através dos mais diversos
esquemas de corrupção, e que depois de
uma grande volta vão pelo menos em parte
dar entrada aos cofres do Partido no poder.
Estamos a falar de acções de um grupo
que recusa direitos a todos os que dele diferem
e não fazem parte, incluindo o direito de
eleger e ser eleito, de participar na governação
dos destinos do país. É um grupo
extremamente arrogante, muito convencido
da justeza das suas ideias, mas sobretudo
que acredita profundamente na legitimidade
inquestionável da sua hegemonia. É assim
que a FRELIMO se arroga o direito de dizer à
sociedade moçambicana quando é que ela
estará madura para a mudança, e para que tipo
de mudança. A mudança para a FRELIMO
só será aceitável quando ela for para colocar
no poder aqueles que eles próprios aprovam
como os mais indicados para governar este
país, o que representa uma grande contradição
nos termos de entendimento do que é
uma democracia. Também têm um medo abismal
de ver os outros no poder, porque a sua
noção e prática de poder está cheia de horrores
que pensam que os outros irão replicar.
Na realidade é o medo deles próprios que os
faz desesperarem no poder. É um grupo de
pessoas tão mesquinhas e ignorantes da
dinâmica do avanço da sociedade e da civilização
no século vinte que chega ao ponto de
supor que sem ele a sociedade moçambicana
não teria avançado qualquer milímetro na
direcção do progresso.
Para essas
pessoas,devemos
estar agradecidos
por termos uma
escola e um centro
de saúde, qualquer
que eles sejam
e a qualidade
dos serviços que
nos prestam, mesmo
que pudéssemos
ter mais e melhores
escolas se
eles não estivessem
a permitir o
roubo do dinheiro
destinado à educação
e saúde,
tanto dos contribuintes nacionais como
da comunidade internacional a que eles
fazem os peditórios em nome do povo de
Moçambique.
Mas é um grupo que não é homogéneo.
E por isso vale a pena apelar aos mais
conscientes e honestos dentro da FRELIMO
para que travem o deslize do comboio
para o desastre. E queremos chamar à
atenção aos que se deixam levar pela onda
da ambição de acesso ao poder pela via da
bajulação das lideranças, visto o poder
como caminho para o enriquecimento pessoal
e rápido como tem sido o caso generalizado
no nosso país, para que se abstenham
de apoiar as manobras visando manipular
os resultados das eleições acabadas
de realizar, que já de si vêm muito
tendenciosamente viciadas pela maneira
como foram preparadas. Os jovens que
dentro da FRELIMO querem alguma vez
aceder ao poder, um direito e desejo legítimo,
devem aceitar trabalhar para ele e para
com ele fazer o bem à nação, em lugar de
embarcar nos esquemas dos mais velhos
para a defesa de causas de que eles pouco
ou nenhum conhecimento têm. Moçambique
é de todos. E os excluídos de hoje
não irão desistir de lutar pelos seus direitos.
E esses são a maioria, são os mais pobres,
e têm muito pouco a perder numa sociedade
tão empobrecida como a nossa.
Em termos práticos, é preciso
começar por levantar o embargo à imprensa
no acesso e divulgação dos verdadeiros
resultados que vêm das contagens parciais
pelos órgãos eleitorais nas províncias.
É necessário que a mesma proeminência
aos resultados mais duvidosos que foram
propalados pela Rádio Moçambique e por
uma certa imprensa internacional irresponsável,
se continue a dar a conhecer aos
cidadãos o modo como está a decorrer a
contagem dos votos. É necessário deixar
que os resultados reais sejam eles a falar ao
lado de uma imagem de vitória esmagadora que
com esses resultados se pretendeu condicionar
a opinião pública nacional e internacional
para a manipulação dos resultados destas
Muitas são as dúvidas que alimentadas por
várias irregularidades que ocorreram ao longo
do processo eleitoral persistem e que em caso
do seu não esclarecimento, mais uma vez, à semelhança
do que aconteceu em 1999, deixarão
o cidadão atento sem saber de facto quem
ganhou o actual escrutínio. Senão vejamos:
Sabe-se que cidadãos foram impedidos
de se recensearem ou actualizar os seus dados,
supostamente devido a motivos logísticos.
Sabe-se ainda que são vários os cidadãos que
não puderam votar em virtude dos seus nomes
não constarem nos cadernos disponíveis nos
postos de votação porque estes estavam trocados.
Sabe-se também que houve locais onde
o controlo do processo de votação e de apuramento
foi feito na ausência das outras partes
interessadas, tendo sido feito apenas com
elementos oriundos do partido Frelimo. È
ainda verdade que há zonas onde o número de
editais é de longe superior ao correspondente
às assembleias de voto, fenómeno que é relacionado
com o facto dos próprios dados que
são propalados não darem nenhuma indicação
sobre a origem dos respectivos cadernos,
publicamente. Aliás esse assunto foi dirimido
pouco antes do início da votação entre as duas
alas na CNE, quando a “CNE-Renamo” exigia
a disponibilização dos mapas dos cadernos
eleitorais, o que foi rejeitado
pela maioria, ou seja, a “CNE-Frelimo”.
Perante estes factos todos só a própria
CNE e o seu par, o STAE, podem publicamente
esclarecer o que se passa por forma a se dar
credibilidade as eleições. E mais, os observadores,
tanto nacionais como internacionais,
têm o dever de, longe de correrias na propagação
da justeza e liberdade de votação,
tomarem a peito estas situações anómalas,
para que eles mesmos não venham ser cúmplices
de contendas em Moçambique. (x)

Testamento político

Nos finais do ano passado chegou-me às mãos um texto do falecido Leite de Vasconcelos.
Pelos meus cálculos deve ser de entre 1992 e 1994. Penso que é um bom texto para inaugurar este blog:

Se chegaram a ser muitos, são hoje cada vez menos os iludidos. Um partido que cai rebolando pela escada da inépcia e um Governo atolado na mais abjecta corrupção só podem conservar na ilusão os que se esforçam em permanecer nela.

A questão não está apenas em desmascarar um partido que perdeu a vergonha há vários anos. O “Ã direita volver” do VI Congresso, a cantilena desafinada do “partido de todo o povo”e a fantástica tese de que a eclosão do capitalismo selvagem em Moçambique correspondia à “extensão e aprofundamento” da “democracia popular” eram já, mais do que uma apressada actualização, o descalabro do Partido Frelimo como representante das trabalhadores.

A questão está em recusar a inexistência de alternativas a este colocar o país acocorado agradecendo que o pacifiquem à custa da sua venda a retalho.

O Partido Frelimo representou um projecto social que foi derrotado. Isto não é novo. Outras forças sofreram revezes e derotas pesadas. O que é novo é a direcção do partido bandear-se em bloco para o lado dos vencedores e arrastar atrás de si o partido. O que é novo é a identificação dos dirigentes dos vencidos com os vencedores, a sua súbita assimilação de tudo quanto antes combatiam, a ponto de serem os mais ávidos na partilha dos despojos da guerra, os mais convictos, ainda que incompetentes, defensores do capitalismo.

Ou seja: sob a influência dos seus dirigentes, o Partido Frelimo não se reformou – decalcou-se do seu contrário, usando um papel químico gasto e esgaçado que torna ainda mais insensatos os contornos do capitalismo.

Este processo foi apresentado como a única solução possivel para a guerra, como a única plataforma que podia assegurar a paz em Moçambique. É nisto que os dirigentes da Frelimo mais se identificam com os seus anteriores adversários. Como eles, apresentam a aceitação passiva da exploração e do neo-colonialismo como condição essencial da paz. E procuram afanosamente ser os melhores agentes internos dos novos patrões.

Na realidade, o jogo viciado que a direcção da Frelimo pratica, longe de assegurar a paz, conduz o país para a desagregação e conflitos ainda mais devastadores e prolongados do que a guerra que se afirma ter terminado. Antes o imperialismo tinha apenas um peão em Moçambique – a Renamo. Hoje tem dois e poderá jogá-los um contra o outro, quando e sempre que lhe convier fazê-lo.

Um partido revolucionário, quando sofre uma derrota, deve analisar o que a provocou e fazer o exame crítico dos seus erros. Eis o que a Frelimo não fez. Os seus dirigentes preferiram render-se e fizeram-no alegre e apressadamente – com a pressa de quem não quer perder o comboio dos exploradores.

Muitos ficaram, até agora, amarrados à convicção de que, apesar de tudo, a Frelimo é o menor de dois males. É hoje evidente que a direcção da Frelimo contou com a paralisia da maioria dos militantes, para os quais qualquer enfraquecimento do Partido era um ganho para a Renamo.

Mas, hoje, é também evidente que os trabalhadores moçambicanos foram colocados entre duas hastes da mesma pinça.

Nenhum partido representa hoje os trabalhadores moçambicanos. A Frelimo, exceptuando uma simbologia cada vez mais vaga e mais negada pela sua política, alijou o seu património revolucionário. A festiva “oposição não armada” não é apenas inepta: oscila entre casos comprovadamente psiquiátricos e o mais descarado oportunismo, sendo que todos pretendem atrelar-se a um “plano Marshall” que só uma completa imbecilidade permite esperar. A Renamo tem o terror por vocação, é o agente da chantagem imperialista.

A Tão desejada transformação da Renamo num partido nacional, mesmo de extrema direita, é mais do que improvável. Os seus dirigentes são criminosos por formação e instrumentos por ambição. A ideia de construir um regime democrático com a Renamo é uma aberração, cuja única virtude é mostrar os extremos a que pode chegar a hipocrisia das “grandes democracias” que dominam o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O projecto que a Frelimo procurou realizar foi alvo da agressão implacável do imperialismo, conduzida pelo regime racista da África do Sul. A situação catastrófica em que se encontra o país foi provocada por essa agressão.

Não é demais repetir isto porque o coro dos bem pensantes ocidentais e dos “democratas” africanos, embora saiba perfeitamente a quem cabe a responsabilidade, não se cansa de a atribuir ao “governo marxista da Frelimo”, coisa também afirmada pela Renamo, que foi o agente directo das destruições e massacres. Há mesmo uma equivocada “crítica de esquerda” , também localmente presente, que está tão empenhada em procurar razões do desmoronamento dos sistemas socialistas nos erros destes que parece esquecer a acção do imperialismo.

A Frelimo cometeu erros, cometeu mesmo erros graves. Mas só a cegueira mais imbecil pode querer encontrar nesses erros a causa da agressão imperialista. É inaudito acreditar que o imperialismo agrediu Moçambique porque o projecto socialista se revelou irrealizável devido aos erros da Frelimo. O passo seguinte seria pensar que o imperialismo queria rectificar os erros da Frelimo para que o projecto socialista se pudesse realizar!

Moçambique foi implacavelmente agredido porque, apesar dos erros que a Frelimo cometeu, o projecto socialista era realizável e estava a ser realizado. Os erros enfraqueceram a capacidade de resistência popular e facilitaram a tarefa do agressor. Mas não devemos confundir o agressor com o agredido, mesmo que a direcção da Frelimo esteja hoje de braço dado com os agressores, mesmo que sintamos ser essencial fazer a crítica dos erros, porque a política e a atitude actuais da direcção da Frelimo germinaram neles.

Os trabalhadores moçambicanos estão hoje indefesos face à extrema violência que caracteriza a imposição do sistema capitalista no país. Nenhum partido os representa e não devemos ter ilusões acerca da possibilidade de recomposição rápida dum movimento político que articule os seus interesses e os exprima através de processos de luta política, social e económica coerentes e eficazes.

Foram postos em marcha poderosos factores de desagregação das classes trabalhadoras, da sociedade e do próprio país. O multipartidarismo, tal como está sendo imposto, de forma artificial e apresentado como panaceia universal, é o maior e o mais perigoso dos logros políticos. O etnicismo transporta consigo o reacender dos conflitos tribais e a mistificação de que edificar uma sociedade moderna implica o regresso às formações tradicionais, mistificação que só serve para que o imperialismo não encontre nenhuma resistência séria à sua acção. (Quando eram jovens e vigorosas, a resistência das formações tradicionais ao colonialismo foi ineficaz. Como se pode esperar que, sendo agora anacrónicas e débeis, possam resistir à dominação imperialista? A “esquerda”que incautamente anda por aí transformando a antropologia em ideologia faria melhor em procurar resposta a esta pergunta antes de saudar o regresso do poder tradicional como a marca da “democracia africana”).

As formas selvagens de capitalismo tornam-se ainda mais selvagens num país que, não produzindo mais do que dez por cento das suas necessidades, não produz certamente o que poderia permitir uma acumulação primitiva de capital. Como consequência, a acumulação particularmente ávida e apressada que alguns sectores estào a fazer assenta nos desvios dos bens do Estado, da ajuda humanitária e de créditos, que não são aplicados sob a forma de investimentos produtivos.

A maioria numérica dos nossos candidatos a empresários são dirigentes e quadros do aparelho de Estado e das Forças Armadas que dirigem a sua acumulação para a importação (geralmente ilegal) de bens sumptuários e de mercadorias para o sector informal, que gera um gigantesco lumpen-proletariado, capaz de explodir erraticamente a qualquer momento, mas incapaz de ser sujeito dum processo coerente de luta pela realização de direitos económicos.

Nas zonas rurais, a dispersão e a produção familiar dificultam enormemente o surgimento de formas de organizaçào dos camponeses que lhes permitam lutar eficazmente contra a pilhagem das terras e a desvalorização dos excedentes que comercializam.

Tudo isto nos indica que a recomposição dumj movimento político que represente e articule os interesses das classes trabalhadoras não será um processo fácil e rápido. O que é uma excelente razão para não se perder tempo em começar.

Há uma outra tendência de “esquerda” que, sendo sem dúvida generosa e partindo duma constatação inegável, executa um grande salto no tempo e propõe soluções que, aplicadas hoje, não fariam mais do que facilitar uma recolonização do país.

É espantosa a ingenuidade com que essa “esquerda” considera o vistoso slogan da “cooperação regional”, sem se interrogar a quem ela serve e que objectivos visa. É ainda mais espantoso que, neste particular, todos os quadrantes pareçam estar de acordo, ou seja, todos pareçam estar convictos de poderem utilizar a cooperação regional a seu favor.

O raciocínio das potências capitalistas é bastante claro e inteiramente lógico. Trata-se de integrar mercados cuja dependência está assegurada. É uma simples operação de racionalização e só fica por discutir que grupos multinacionais exercerão maior influência na zona.

O raciocínio da “esquerda” é bastante confuso e inteiramente desprovido de lógica. Parece partir da ideia de que, não sendo possível criar uma resistência efectiva ao imperialismo em cada um dos países da região, ela pode ser efectiva no quadro do conjunto dos países da zona. Isto assemelha-se a uma boa ideia até notarmos que se trata duma união entre Estados extremamente dependentes e duma cooperação que, precisando de ser financiada pelas potências capitalistas, se terá de conter nos limites que elas fixarem. É absurdo pensar que financiarão uma cooperação regional que tenha por objectivo libertar economicamente os países da região. Aparentemente, há na “esquerda” quem acredite neste absurdo. Outra coisa seria a cooperação regional entre movimentos políticos que representem as classes trabalhadoras. Mas para isso é necessário que eles existam e se desenvolvam em cada país. O que nos remete sobriamente para as tarefas da fase actual, a menos que desejemos fazer mera ficção política.

Uma outra tese do optimismo de esquerda é a do “arrastamento”. Ela postula que o desenvolvimento da luta operária pelo proletariado mais forte e organizado da região, o da África do Sul, exercerá um efeito poderoso sobre a organização e a luta dos trabalhadores nos restantes países. O estreito mecanicismo desta concepção é suficiente para que a olhemos com a maior desconfiança, principalmente se o corolário for devermos esperar até que os efeitos da luta dos operários sul-africanos se façam sentir em Moçambique.

Recompor uma força política que articule e defenda os interesses das classes trabalhadoras, sem ilusões em relação à actual direcção do Partido Frelimo e aos caminhos que escolheu, é a única via para resistir à recolonização do país. É, simultaneamente, um objectivo de classe e um objectivo patriótico.