Ideias para Debate

Friday, March 23, 2007

GUERRA CONTRA O POVO

O que se passou, na quinta feira passada, em Maputo, foi mais uma batalha da guerra que, há muitos anos, se desenvolve entre a Incompetência, o Deixa-Andar e a Negligência, por um lado, e o Povo Moçambicano pelo outro.

Uma guerra que, até aqui, se desenvolvia ao nível das repartições públicas, do funcionalismo do Estado, e que, de repente, saltou para a praça pública com o seu cortejo de morte, sofrimento e destruição de propriedades.

O que a Renamo nunca conseguiu, nos 16 anos de guerra, conseguiu-o o Ministério da Defesa sem precisar de ter nenhum inimigo pela frente. Com a agravante de terem sido destruidas as linhas de transporte de energia para as províncias de Gaza e Inhambane, que ficaram totalmente às escuras.

Porque o que aconteceu em Maputo não foi uma catástrfe natural, imprevisivel.

O que aconteceu em Maputo já rinha acontecido antes, quer em Maputo quer na Beira. Tinha acontecido, em nível muito menor, em Maputo há menos de dois meses.

E, para além do paleio do costume, ninguém tinha feito nada, o que resultou nesta gigantesca roleta russa em que os projecteis levantavam voo, descontrolados, sem ninguém saber onde iriam parar. E sabendo, pela boca do Ministro da Defesa, que poderiam atingir qualquer lugar num raio de 30 quilómetros.

No Jornal da Manhã, da Rádio Moçambique de 23 de Março, ouvi, estarrecido, o mesmo Ministro a dizer que todo aquele material homicida estava ao ar livre, ao Sol e à chuva.

Será que nunca ninguém explicou ao senhor Tobias Dai que há formas especiais de armazenar explosivos para evitar este tipo de incidentes? Para os isolar uns dos outros impedindo o rebentamento por simpatia de todo o paiol se, por um acidente, um dos projecteis rebentar?

E Tobias Dai não pode dizer que herdou essa situação do governo anterior, dos tempos do deixa-andar. Ele próprio transitou desse tempo para o actual.

Não sei se Tobias Dai foi um bom guerrilheiro na luta contra o colonialismo português. Se calhar, foi.

Mas isso não lhe dá a competência para ser, hoje, Ministro da Defesa, no nosso governo. Administrador de uma área sensivel em que tem que lidar com homens armados e com equipamento letal em grandes quantidades.

O facto de ser cunhado do Presidente da República pode ser importante, em termos de garantir um certa fidelidade das forças armadas ao governo central. Mas não lhe dá a competência para o cargo que ocupa. Sem ter, aparentemente, nenhuma preparação para isso.

E a primeira prova dessa falta de preparação, Tobias Dai deu-a logo na tarde de quinta-feira. Quando falou na Rádio Moçambique, que vinha desde há algum tempo, avisando que se deviam manter as janelas e portas abertas, para evitar as consequências das explosões. O que, até onde sei, é correcto. Mas o senhor Dai aconselhou que, pelo contrário, as pessoas deveriam manter as janelas das suas casas fechadas. Quantos mortos e feridos terão derivado destes palavras de Tobias Dai?

A informação de que toda aquela porcaria mortífera estava ao Sol e à chuva é prova cabal do nível que atingiu a irresponsabilidade, a negligência e a incompetencia entre nós. Que pagámos agora com mortes, mutilações, ferimentos e destruição de bens materiais dse valôr impossivel de calcular. Para não falar já do valor das próprias munições, pagas com os nossos impostos.

Nada do que aconteceu era imprevisivel. Pelo contrário, as explosões de Janeiro anunciavam este desastre.

Agora não adianta vir com desculpas de temperaturas altas. Esse tipo de temperaturas temos todos os anos. Piores do que esta semana. E se se sabe que as temperaturas altas podem provocar este tipo de coisas, é preciso também saber como se pode evitar que isto aconteça. Apesar das temperaturas altas.

O que ninguém imaginava era que houvesse material letal, ao Sol e à chuva, no paiol.

Descobrimo-lo agora, da pior maneira.

E se, am Maputo, é assim que se “armazena” o material de guerra, como será no resto do país?

Mas, apesar de todo este estendal de negligência e incompetência crimonosas, nem se ouve o Ministro a pedir a sua demissão nem o Presidente da República a demiti-lo.

Se calhar também nunca ninguém lhes explicou que, em democracia, as pessoas devem assumir as responsabilidades pelo que acontece nas áreas que dirigem.

Mas se esta situação se mantiver ficaremos a saber que não vivemos numa democracia, como tanto se apregoa, mas numa qualquer república das bananas em que ser cunhado do Presidente é muito mais importante do que ser responsavel pela morte de cerca de uma centena de cidadãos inocentes.

A ver vamos...

Monday, March 19, 2007

Poder da Frelimo

Peço desculpa da irregularidade na colocação dos textos. Aqui vai o oitavo.

O poder da Frelimo – Técnicos e decisões tomadas (8)

Por E. Macamo

Do ponto de vista da sociologia, a política é um conceito pouco útil. Não é algo que possa ser definido com utilidade antes do trabalho preliminar de saber o que se passa em torno do que as pessoas chamam de política. Aos sociólogos interessa o poder, o seu exercício e as suas implicações. Depois disso feito, é possível definir a política. Noutros termos, a política constitui-se na relação entre o poder, seu exercício e sua continuidade no tempo. Poder, no seu estado bruto, é simplesmente a possibilidade que algumas pessoas têm de fazerem outras pessoas cumprirem a sua vontade contra a sua própria vontade. Nesta acepção, a noção de poder ainda não tem grande interesse sociológico. Começa a tê-lo quando olhamos para ela do ponto de vista da dominação, isto é de uma relação social em que uns podem impor a sua vontade a outros que consideram essa imposição justa. Aí sim, já temos algo sociologicamente interessante, pois já estamos a falar de autoridade e legitimidade.

A dominação pode assumir várias formas, todas elas presentes em maior ou menor grau na nossa experiência histórica. Segundo o sociólogo alemão Weber que se debruçou sobre estas coisas com muita atenção, a dominação pode ser (i) tradicional, isto é quando se legitima a partir do que é consuetidinário; pode ser (ii) carismática, isto é quando se legitima a partir de qualidades tidas como sendo excepcionais e sobrenaturais de um líder político. Samora Machel ou Afonso Dhlakama são exemplos claros disso em virtude das suas qualidades militares; finalmente, a dominação pode ser (iii) jurídico-racional quando assenta num conjunto de normas codificadas e executadas por um corpo especialmente formado para esse efeito.

Não quero transformar o artigo numa introdução à sociologia política. Interessava-me apenas chegar a este ponto onde chamo a atenção do leitor para a importância que a legitimação desempenha no exercício do poder. É através dela que o poder ganha cunho social e se traduz em autoridade. O Estado moderno, e nesta categoria cabe também o nosso – define-se justamente pelo exercício de um poder legitimado constitucionalmente e que se manifesta no dia a dia das pessoas através da obediência a leis que respeitam o espírito dessa constituição. Num Estado moderno o exercício do poder não é arbitrário. Aproveito, desde já, para dizer que o poder não é apenas legítimo quando é democrático. Mesmo um poder dictatorial pode ser legítimo desde o momento que o seu exercício esteja em conformidade com a lei.

Neste esquema de coisas, a peça mais fundamental não é o chefe máximo. É o burocrata, ou para estar mais perto da nossa linguagem, o técnico. É o técnico que dá substância à autoridade garantindo que o exercício do poder esteja em conformidade com a lei. O chefe máximo, médio ou mínimo é chefe e tem autoridade em virtude do lugar que ocupa na máquina de exercício do poder. Naturalmente que o chefe precisa de ter qualidades excepcionais para chegar até onde chegou. Mas num contexto de Estado moderno, o seu poder só é legítimo quando exercido dentro dos preceitos legais. A lei é que é o soberano. Agora, é um pouco difícil transmitir esta ideia num contexto político e cultural como o moçambicano em que as noções tradicionais de autoridade – reforçadas pela atitude paternalista do poder colonial – e em que a socialização primária dos principais políticos foi feita em ambientes militares – com a sua exigência de disciplina – ou de exaltação carismática.

Não estranha, pois, que a cultura política dominante dê maior ênfase à lealdade ao chefe do que ao respeito pela legalidade. As características principais da dominação tradicional e da dominação carismática são, respectivamente, a confusão entre o privado e o público, e a preferência pelos que são leais ao chefe. O nosso sistema político tem elementos fortes disto, patentes na dificuldade que a Frelimo tem de se desligar do Estado e respeitar as suas instituições como bens públicos bem como nas dificuldades do líder do principal partido da oposição que prefere se fazer rodear dos chamados “yes-men” (homens que dizem sim a


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tudo). O Nono Congresso podia ter debatido esta questão, pois o assunto não é novo. Já nos anos oitenta, quando o fosso entre a vontade política e a realidade se tornara cada vez maior, a Frelimo decidiu que o problema residia no facto de a tecnocracia se ter tornado independente do partido. A conclusão a que se chegou na altura foi de que era necessário voltar a colocar o partido na direcção. Este é um assunto que merece ainda maior atenção e estudo. Um passo importante neste sentido foi dado por uma socióloga da UEM, Judite Chipenembe, que tenta perceber os meandros da burocracia em Moçambique. De qualquer maneira, um dos erros da análise feita pela Frelimo na altura foi de ter esperado uma burocracia dócil e eficiente num contexto em que o próprio poder político se notabilizava pela sua arbitrariedade e espontaneidade na condução dos destinos do País. A burocracia precisa de certezas.

O Congresso podia ter debatido como garantir que os técnicos façam o seu trabalho como técnicos. Para esse efeito, podia ter reflectido sobre como transformar as expectativas do partido em leis a serem cumpridas e executadas por técnicos. O slógan “decisão tomada, decisão cumprida” é sintomático da ausência deste debate. Num Estado de direito não são decisões que contam, mas sim leis. Sei que a questão é retórica, mas é importante para se perceber o que está em causa. Decisões têm a tendência de serem arbitrárias. Decisões são coisas do pelouro do poder na sua forma bruta, de um poder sem autoridade. As leis podem ser também arbitrárias, mas pelo menos proporcionam aos técnicos quadros seguros de referência. Leis conferem autoridade a quem toma decisões. A autoridade vem da lei. Logo, uma decisão que não é transformada em lei, dificilmente será cumprida. E se o respeito pela lei não constitui prioridade para quem toma decisões, então o técnico nunca vai ter a autonomia de que precisa para ser um técnico. O nosso País ainda tem um longo caminho a percorrer para incutir nos seus técnicos e políticos a ideia de que os técnicos estão ao serviço da legalidade.


Saturday, March 03, 2007

Continua a série

Aqui vai mais um texto da série sobre o Poder da Frelimo. Estranho a falta de comentários nesta série de textos tão interessante.


O poder da Frelimo – “Académicos” e políticos (7)

Por E. Macamo

É difícil não dar razão a Machado da Graça quando na sua “Talhe da foice” no Semanário Savana suspeita que o combate à pobreza seja apenas um acto de constrição por parte de pessoas que enriqueceram à custa dos pobres. Na verdade, o problema da ênfase que o Presidente Guebuza dá ao combate à pobreza como grande objectivo da sua governação é bem mais profundo. Embora louvável e em sintonia com os grandes Objectivos do Milénio, a ênfase no combate à pobreza é sintomática de algo que se tornou óbvio no decurso do Nono Congresso, nomeadamente que a Frelimo não só deixou de ser partido de operários e camponeses – se é que alguma vez foi – como também, e mais grave, que os intelectuais perderam muito do protagonismo que tiveram no passado. Não há novos Eduardo Mondlane, Jorge Rebelo, Óscar Monteiro, Luís Bernardo Honwana, Sérgio Vieira. Só há intelectuais orgânicos que sabem dizer quem não faz parte, mas aparentemente não fazem a mínima ideia donde querem levar o País.

Dito de outra maneira, estão a fazer falta à Frelimo pessoas que formulem projectos de sociedade e articulem-nos com a leitura que fazem da sociedade moçambicana. Se como refere Machado da Graça o grosso dos participantes ao Congresso consistiu em gerentes de empresas e funcionários públicos, isso é porque a Frelimo, na verdade, é um partido gestor, um partido sombra do seu próprio passado quando, mesmo que privilegiando ideologias problemáticas e aventureiras, se definia por um projecto claro e coerente de sociedade. O engraçado nisto tudo, todavia, é que volvidos 30 anos da independência que a Frelimo conquistou, o País dispõe de muita gente formada ao alto nível, a maioria da qual até é militante do partido. Praticamente, todo o intelectual digno desse rótulo é membro da Frelimo. Contudo, a julgar pela fraca qualidade do que o partido propõe como visão para o País, esses intelectuais não têm nenhum protagonismo nas suas hostes.

Escrevo isto com um pouco de trepidação, pois já alguns “colegas” me qualificaram de pretencioso e arrogante. Suponho que me critiquem por preferir falar e escrever de acordo com o que considero mais em sintonia com os hábitos académicos de reflexão do que alguns deles que, desonrando a academia a que dizem pertencerem, preferem das duas uma: calarem-se ou dizerem o que acham ser mais do agrado dos que detêm o poder. Não quero com isto dizer que todo o académico deva escrever para os jornais, pois o trabalho académico não consiste nisso. Nem quero dizer que toda a gente com título académico seja académica. Na verdade, a reflexão que faço aqui é para distinguir precisamente isso e dar a devida importância às pessoas detentoras de títulos e que decidiram dedicar o seu conhecimento ao serviço do trabalho prático e técnico. Refiro-me apenas àqueles que fazem política com o cunho de académicos quando na verdade são meros técnicos e burocratas. A política e a academia são coisas diferentes. São poucas as pessoas que podem conseguir conciliar as duas coisas. Não obstante, isto não significa que os académicos não devam ter preferências políticas, muito menos que não sejam militantes de um partido. Contudo, se forem militantes e continuarem a querer fazer parte da academia eles devem ter a coragem de fazer aquilo que identifica um académico, nomeadamente contribuir com o seu pensamento crítico para uma melhor formulação dos problemas, mesmo se as conclusões a que chegarem puserem em questão preceitos importantes do partido.

O político, já disse isto uma vez apoiando-me num sociólogo alemão, Max Weber, olha para os fins. Para lá chegar qualquer meio, em princípio, serve, desde o momento que o leve lá. O académico, em contrapartida, olha para os meios e pergunta se são os mais adequados para os fins propostos. Ao fazer isso, coloca à disposição do político todas as possibilidades que se abrem ao se tomar uma decisão. O Nono Congresso, por exemplo, reconfirmou o combate à pobreza como grande objectivo do partido. Decidiu também que um dos meios para lá se chegar era o slógan “decisão tomada, decisão cumprida”, algo que mereceu a crítica atenta de


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Machado da Graça. Portanto, o Congresso parece ter decidido que o problema principal enfrentado pelo País é o não cumprimento das decisões tomadas. O que disseram os “académicos” militantes da Frelimo? Bateram palmas? Acenaram forte com a cabeça? Gritaram vivas? Ou interpelaram a qualidade das decisões tomadas? Fizeram isso? Procuraram saber como é que as decisões são tomadas? Interrogaram-se sobre o contexto em que decisões são tomadas? Perguntaram se essas decisões correspondem a uma leitura coerente do País real? Indagaram-se se essas decisões contêm dentro de si a visão do que o País deve ser? Puseram decisões em relação com leis? Perguntaram se a ideia de “decisão” é compatível com um sistema democrático?

Duvido imenso. E isto é preocupante. A falta de consenso sobre o que a Frelimo é e, sobretudo, sobre o que o seu poder é, conduz-nos a uma situação em que pseudo-académicos interpretam o papel da academia no País como sendo o de utilizar os seus títulos para dar legitimidade a posições políticas. Confundem a crítica com oposição e tornam o pensamento e a produção de conhecimento em artefactos mercenários da sua própria esquizofrenia: “académicos” e políticos. Bom, pelo menos nunca estarão sozinhos. Usam considerações materiais como critérios de avaliação da plausibilidade do que diz quem quer pensar de forma crítica. Se eu critico a ênfase no combate à pobreza, o “académico” não procura saber que argumentos tenho; ele quer saber em graças de quem eu quero cair. A ideia de que a reflexão possa constituir um fim em si próprio não cabe no seu entendimento do papel de um académico.

Políticos o nosso País já os tem em número suficiente. Académicos, contudo, isto é, pessoas comprometidas com a verdade e com o fomento deste País por via da reflexão crítica, esses fazem ainda muita falta. Moçambique não vai deixar de existir ou de resolver os seus problemas porque os “académicos” foram ao Nono Congresso. Mas se esses académicos assumissem o seu papel, o País poderia lograr todos os desafios com mais opções. Era tão bom que eles tomassem a decisão de serem académicos ou políticos e... cumprissem-na.