Ideias para Debate

Tuesday, May 31, 2005

Pobreza e Riqueza

O texto de Afonso dos Santos provocou a reacção do Sérgio Gomes:

Fiquei atraído pelo texto do Afonso dos Santos por se enquadrar dentro duma perspectiva metodológica que tenho tentado perseguir segundo a qual pra que possamos explicar melhor um fenómeno social temos que procurar perceber o seu oposto (reparo que nem todos os fenómenos criam essa facilidade). Contudo fico um pouco preocupado pelo facto do autor perceber o emprego do discurso sobre o combate a pobreza como sendo desnecessário porque baseado numa construção demagogica dos politicos, particularmente os que estão no poder.

Julgo existirem pelo menos duas formas de olhar para a folklorização do discurso de combate à pobreza absoluta. Uma forma negativa e outra positiva. O Afonso Santos parece-me trilhar pela perspectiva negativa, portanto, de rejeição do próprio discurso. A apreciação negativa do discurso leva-nos a considerá-lo como uma manobra (para não dizer ‘acção concertada’) para divertir a atenção do público em geral sobre a situação de ostentação que somos obrigados a apreciar, principalmente na grande cidade do Maputo. O argumento é que quanto mais a ideia da pobreza de muitos estiver enraizada nas nossas mentes teremos menos tempo pra questionar a natureza da riqueza de poucos. A segunda forma de apreciar o discurso sobre o combate à pobreza, é a abordagem positiva que se pode manifestar de duas maneiras:
1. ele nos desperta pra necessidade de redobrarmos os esforços de modo a melhorarmos, por nossos próprios meios, a nossa condição material ao mesmo tempo que nos deixa com referências (sem as referir) de pessoas que graduaram da situação da pobreza como forma de demonstração da possibilidade de tal graduação.
2 o reconhecimento da legitimidade do discurso que não só trasmite a realidade factual mas tambem sensibiliza, principalmente a comunidade internacional, sobre a situação precária em que os Moçambicanos se encontram, chamando atenção para a necessidade de mais recursos, em forma de doação, serem canalizados ao país.

Como podemos ver qualquer uma das perspectivas de apreciação do discurso sobre o combate a pobreza absoluta tem implicações politicas (de policy e nao politics) distintas podendo levar o apreciador/observador a considerar-se vítima numa sociedade de batota onde uns acomulam cada vez mais e outros são marginalizados ou, por outro lado, podendo levar o apreciador a redobrar os seus esforcos para a melhoria da sua condição e a motivar-se pela existência duma possibilidade de graduação (já que existem casos de graduados).

Contudo, acho que, mais do que a simples apreciação do discurso, a questão do fundo é de procurar saber como fazer com que a riqueza dos poucos que graduaram seja benéfica ou colocada ao servico dos que ainda procuram graduar. A formula mais simples seria, por exemplo, que os mais ricos dessem a nós pobres metade do que eles têm a mais do que nós. Caso a proporção dos ricos em Mocambique fosse igual à proporção dos pobres, então, a aplicação daquela formula traria os Mocambicanos pra os mesmos niveis de riqueza ou de pobreza. Contudo, a realidade é diferente e é um facto que a proporção dos graduados representa não mais do que 10% da população Mocambicana (minha inferência) e que a restante percentagem representa os que duma ou doutra forma se consideram pobres.

A solução não está necessariamente ou somente com o governo ou o Estado. De facto, o Estado pode adoptar uma política fiscal pro pobres ( e me parece que é isso que está a ser feito) mas dado o reduzido número dos graduatos o efeito distribuitivo pouco se faz sentir junto dos pobres ainda por graduar. A solução sustentavel, no meu ponto de vista, está com os já graduados, que devem mudar a atitude em relação à sua própria riqueza no sentido de evitar demonstrações baratas que só provocam invejas desnecessárias e assumir um ethos económico que passa necessariamente pela apreciação da sua riqueza como um activo que pode ser mobilizado e colocado ao servico da economia pra criar mais riqueza duma forma socialmente responsavel.

“What About”
Misr

O Comércio Informal

O comércio informal é uma realidade viva nas nossas cidades. Book Sambo fala-nos nisso:


Derramando o sangue do bode expiatório

É um pouco difícil descrever com precisão o espaço urbano de Maputo. Mas a necessidade de partilhar com os outros a minha pacata observação, insta-me discorrer algum atrevimento nesse sentido. Importa salientar que farei apenas a descrição que interessa ao assunto em epígrafe, relacionando-o com a recente investida do conselho municipal denominada operação espelho. Nesta operação, as autoridades municipais de Maputo, escorraçam aos vendedores ou comerciantes informais que ocupam as calçadas. A imprensa - exemplificando o semanário Embondeiro, a STV, o Notícias, etc. - tem relatado casos de derrame de sangue e até mesmo mortes, resultantes da acção dos agentes da PRM coadjuvados pela polícia camarária nesta operação.
Um pouco pelas calçadas das nossas pobres avenidas, encontramos jovens, homens e mulheres revendendo fragmentos de mercadoria adquirida aos armazenistas, e em alguns casos, productos alimentares confeccionados ou não, que despertam a atenção do cidadão comum[1]. Em bairros como a Malhangalene, o Alto Maé, e a baixa da cidade, podemos encontrar alguns mercados informais junto as calçadas, no qual se verificam productos alimentares como o tomate, a cebola, a cenoura, a pimenta, a batata, etc. Ao invés de serem vendidos em quilos, usam-se medidas já padronizadas remetendo-se a pequenas quantidades de três ou cinco de cada um dos productos supracitados. Nisso podemos encontrar uma porção de três cebolas; quatro cenouras; etc. cada uma delas com o seu respectivo preço. O óleo alimentar também revendido nesses mercados informais alojados nas calçadas, é medido em plásticos de vinte à quarenta e tal mililitros. Portanto estas unidades de medição que escapam ao padrão dos sonantes centros comerciais da praça (Shoprite, Game, Supermercao Luz, O vosso supermercado, O Nosso Supermercado, etc.), têm como principal função favorecer o poder de compra ao cidadão mais desfavorecido da praça. Por outras palavras, na cidade de Maputo, estão criadas as condições para se alojarem os cidadãos de todos os estratos sociais. Desde o guarda nocturno, o servente, o estivador, o técnico administrativo, o electricista, o acessor do ministro, a secretária do reitor; o coordenador nacional de sei lá o quê, o batedor; entre outros. Todos estes têm algum espaço que lhes albergue nesta cidade Capital. O exemplo vivo disso, é a ocupação sobrecarregada e forjada dos imóveis. Temos por exemplo as garagens que albergam famílias de 5 ou mais elementos no seu agregado; para não falar das dependências, e dos terraços que sofrem improvisos constantes para se ajustarem à cada um dos agregados familiares que por lá passa. A diferença entre as dependências e os terraços, aqui em uso, basea-se no seguinte: as dependências por si só devem ser entendidas como as que se encontram no rés do chão; os terraços por sua vez, devem ser entendidos como as dependências que lá se encontram. Esta distinção basea-se no facto de que em muitos prédios as dependências encontram-se localizadas no terraço; enquanto que as dependências do rés do chão localizam-se maioritariamente em vivendas.
Neste espaço urbano, existe uma coabitação de vários actores, e de vários estratos sociais, com modus vivendi diferentes um do outro, para não falar do habitus de Pierre Bordieu[2]. Em alguns momentos esta coabitação chega a ser conflituosa. O exemplo disso é o mau uso dos tambores de lixo, nos quais são lançados troncos, e pedregulhos. Atitude esta que é levada a cabo por caloiros citadinos, ou mesmo pelos que ainda não se aculturaram à este meio.
Os postos de trabalho estão quase que todos concentrados no espaço urbano em referência, sobrando a periferia apenas o espaço residencial. Este elemento acarreta custos elevados no transporte para quem tem que se deslocar da periferia ao centro urbano afim de marcar a presença no posto de trabalho. Se equacionados os custos e benefícios, em muitos casos, os cidadãos optam por ocupar uma garagem no centro urbano, com vista a economizar o dinheiro que seria gasto com o transporte. Esta decisão encontra um forte encorajamento nos mercados informais alojados nas calçadas da urbe. Tais vendedores informais vêm na sua maioria do subúrbio mais próximo da urbe, como é o caso da Mafalala, Maxaquene, Chamanculo, etc.
Parece existir uma relação de simbiose entre dois elementos: a sobrecarga do espaço urbano (pelas garagens, dependências e terraços habitados, o que para facilitar a compreensão usarei o termo gadete proveniente das iniciais ga-de-te = garagens, dependências e terraços) e a invasão das calçadas para o comércio informal. Por um lado os moradores da gadete sentem-se encorajados a permanecer nela pela existência do mercado informal que lhes permite ter uma alimentação condigna, de acordo com o seu estrato social. Por outro lado os propalantes do mercado informal, sentem-se estimulados por saberem que têm os clientes à sua disposição, sendo a maior parte destes últimos os munícipes da gadete.
Os munícipes assalariados da urbe gadete bem como os da urbe convencional (vivendas, e prédios), são vítimas do sistema instaurado, que não permite uma vida sã com o salário mínimo nacional. Mesmo o salário médio nacional, não permite uma vida condigna aos que dele se beneficiam, razão pela qual temos que redefinir o status dos habitantes da gadete. Neste espaço, não está apenas o guarda nocturno. Se calhar até este nem consiga algum acesso à gadete. Sendo assim, abdica-se do transporte para percorrer longas distâncias a pé da periferia ao centro urbano.
Quer me parecer que o grosso dos habitantes da gadete, é composta pela classe média, que portanto aufere algo acima do salário mínimo nacional, mas que mesmo assim não lhes permite escapar ao mercado informal da calçada mais próxima.
Ponho a mão no fogo para afirmar que temos alguma doze de técnicos superiores habitando a gadete. Estes últimos não encontram uma saída para fugirem à esta realidade retroalimentada pelo actual sistema sócio-político de governação.
Tanto o servente, como os técnicos médio e superior, habitantes da gadete, são sustentados pela económia do mercado informal, que muitas vezes invade a calçada.
Os praticantes do comércio informal da calçada, são talvez os maiores beneficiários da fuga ao fisco; o que lhes permite aplicarem preços baixos comparativamente aos pagadores das taxas fiscais (Shoprite, Game, Luz, etc.). Esta é talvez mais uma razão que lhes garante uma maior procura pelos cidadãos de renda baixa, e que coincide com a maioria dos munícipes de Maputo.
As demais flats ocupadas no município de Maputo, escondem nalguns momentos a realidade dos seus ocupantes. Nelas encontram-se também aqueles que não têm uma renda suficiente para lhes levarem aos grandes centros comerciais, nos quais predominam os preços altos, ou seja de acordo com as despesas por eles efectuadas. Sendo assim, há também famílias da classe média, habitantes do terceiro, quinto e sétimo andar, que se beneficiam do comércio informal assente na calçada mais próxima.
Com base no que foi exposto, dá para assumir a hipótese segundo a qual, os mercados informais das calçadas são funcionais na medida em que permitem uma integração urbana.
A extreminação do mercado informal da calçada, poderá trazer consequências cadentes aos cidadãos da gadete, o que provavelmente não seja intenção das autoridade municipais. Isto levarianos a observar aquilo que Boudon – sociólogo francês, e autor de Effets pervers et ordre social - considerou de efeitos perversos. Deste modo podemos admitir que a aliminação do mercado informal é um processo complexo, sobretudo se não quisermos fabricar um bode expiatório.
O problema a ser resolvido não começou e nem está na invasão da calçada pelo comércio informal. Quer me parecer que esta seja apenas a consequência de um problema ainda maior que tem a ver com o sistema sócio-político instaurado no país.
O jornal Vertical com o No. 807, do dia 22.04.2005, publicou um documento apresentado em plenária na Assembleia da República pelo deputado Eduardo Namburete. O mesmo mencionava alguns nomes sobejamente conhecidos da cúpula dos membros seniores do partido no poder, que nunca mais liquidaram as suas dívidas com o erário público. Este facto não constitui novidade para quem se familiarizou aos artigos de Joseph Hanlon, um escritor e jornalista que acusou e denunciou o desfalque do BCM, e do ex-BPD pela elite do partido no poder.
Talvez seria mais prudente redimensionar o espaço urbano, apetrechando a cintura periférica da cidade de Maputo, com casas de material convencional (prédios e vivendas), e dotadas de um planeamento físico urbanístico (com ruas e avenidas) ao invés do subúrbio que actualmente subsiste.
O controlo inflacionácionário acompanhado de uma revisão salarial, se conjugada com a ideia anterior, potenciaria o poder de compra da classe média. Desta forma estariamos a contribuir positivamente para eliminar a gadete e o mercado informal da calçada, sem criar lesados indefesos.
As medidas seleccionadas para fazer face aos demais problemas urbanos, cabe à Câmara Municipal. Do mesmo modo, cabe à esta instância encontrar soluções que não tenham como objectivo arquitetar uma espécie de bode espiatório no cidadão indefeso.
Os problemas que o Conselho Municipal pretende sanar com recurso a violência, surgiram como resultado da governação adoptada pelos nossos dirigentes. Enquanto isso, o cidadão comum procurou sempre domesticar-se às novas condições de vida resultantes da situação sócio-política em que o país se encontrava. Deste modo, digamos que seguiu-se um pouco à lógica adaptacionista do naturalista britânico Charles Darwin[3](1809 -1882).
O darwinismo social[4] verificou-se na medida em que as péssimas condições de vida fomentadas pelo aparato sócio-político em que o país veio-se mergulhando, os cidadão foram encontrando formas alternativas de vida com vista à não sucumbirem. Talvés seja esta uma das razões pelas quais não vemos o povo amotinado contra o elevado custo de vida, e a má gestão do erário público.
Antes de serem vistos como causadores do caos, os cidadãos devem ser vistos como consequência desse mesmo caos, e porquê não vítimas?
Depois do explanado, ousa-me questionar se a operação espelho vem resolver algum problema ou levantar mais outros. Esta é uma questão que cabe numa reflexão conjunta de todos os citadinos de Maputo.

[1] Entenda-se por cidadão comum, aos que estão directamente expostos ao mercado informal. Sendo aliciados a serem o alvo predilecto deste sector comercial. Pertencem à este grupo, os que beneficiam de uma renda que não lhes permite fazer um rancho mensal de pelo menos três milhões de Mt.
[2] Pierre Bourdieu é um sociólogo francês. Dentre as suas obras contam-se La Distinction. Critique Sociale du Judgement; e La Domination Masculine ambas editadas em Paris, e As Regras da Arte. Gênese e Estrutura do Campo Literário, tradução brasileira editada em São Paulo, entre outras.
[3] http://www.lucidcafe.com/lucidcafe/library/96feb/darwin.html
[4] http://trabalhoimperialismo.tripod.com/id9.html

Monday, May 30, 2005

Futebol e identidade

Em resposta ao meu texto "Futebois" o José Teixeira mandou-me este:


A paixão de cá sobre a bola lá. (1)

Surpreendes-te com a paixão futebolística. Essa que atravessa "fronteiras". E que, "confusionista", aparenta dissolver razões e certezas por via das suas erupções. Também a mim, português aqui residente, sempre me chamou a atenção o vínculo futebolístico entre os nossos países - acho-o mesmo O vínculo.Coisa a estudar dizes, e bem. Mas passível de ser conversada com algum tino, ainda que sem estudo prévio. Não por ela própria, mas pelo seu significado. Abordá-la, assim insuficientemente, exige-me regressar às minhas anteriores entradas neste Ideias para Debate, num breve texto e alguns comentários (que já tiveram remoque da F. Ribeiro). Conversar esse vínculo sem estudo prévio? Então é mero texto aberto, talvez curto se me ajudar a retórica, e nada fortificado. Não académico, para simplificar. E nunca escolástico, para moralizar. Apenas pelo prazer do conversar. E picar.Em meu entender, em meu conversar, esta paixão levanta questões múltiplas. Uma, que não posso desenvolver, pois exigiria mesmo andar questionando adeptos, será a da adopção de modelos de sucesso: os futebolistas são riqueza, saúde e fama e, na sua esmagadora maioria, vêm dos estratos mais pobres da sociedade (um Dani ou um Figo são excepções). Mais, "sobem" pelo talento próprio, pelo trabalho "livre" (atlético) e pela sorte. São ídolos mas assim são também "manos", ali não há protegidos, filhos-família. Acho que isso é importantissimo. E estes "manos" falam uma língua comum (os que a falam, no meio da globalização futebolística actual. Mas essas diferentes origens são "traduzidas" pelos clubes), são assim mais próximos - e tu saberás que esta minha chamada da língua não traz "lusofonias" ideológicas atrás, mas mais vale dizê-lo do que remediar. Mas a questão é insuficiente, pois não tem equivalente na relação com o hiper-belo e poderoso futebol brasileiro. Portanto não é suficiente, as razões para tal adesão têm que ser buscadas (também) alhures, noutras questões.Na minha opinião são essas questões identitárias. As da aproximação e separação relativas. Essas que cruzam as "fronteiras" que tão desejadas e estipuladas foram ou são (desculpar-me-ás o remoque, mas é imprescindível). Essas que são um contínuo ambivalente de relacionamentos. Muito menos encaixáveis do que aparentam. E de muito difícil encerramento.Uma pequena etnografia, uma história (abomino o pós-neologismo estória), para começar. Em 1997 tinha acabado de chegar a Maputo, a casa ainda nua, e claro que sem TV. Em certa quarta-feira fui jantar (à Tasquinha, muito aprazível) com amigo de Lisboa, então por cá a trabalhar. Eu do Sporting, ele do Belenenses, já agora. Depois fomos a um whisky no Piri-Piri, instituição então mais sonante num Maputo com menos neons do que hoje. Casa cheissima, clientes a assistirem o Manchester- Porto para a Liga dos Campeões. Estava no intervalo (e já 2-0 para o MU, logo nos informaram para nosso contentamento), e nós ficámos em pé, desagradável numa casa sem balcão. Gentis, nessa solidariedade de adeptos, os clientes de uma mesa convidaram-nos para a mesa, foi só arranjar as cadeiras e lá nos aconchegámos. Mesa corrida, para aí uns vinte amigos, não era coisa para menos. O jogo recomeçou e logo veio o 3-0 para nossa alegria e tristeza de toda a sala. Rimo-nos e mais um trago, aliás, venham mais dois... E muito pouco tardou o (humilhante) 4-0! Aí levantámo-nos, saudando a derrocada portista, braços no ar, como se no estádio. Os únicos assim em todo o Piri-Piri! E logo os "donos da mesa", até incomodados, desiludidos, a invectivarem "parece impossível, a torcerem contra a equipa nacional" (sic, juro). E fui eu, entre o divertido e o sportinguista, que os contra-invectivei num qualquer coisa como "ora bolas, nós somos os únicos portugueses aqui", que o éramos. Pois era uma mesa totalmente moçambicana, e um Piri-Piri quase assim também, quase nesse dia, e isso coisa rara como sabes. Risos e sorrisos então.Ah, primeiro ponto. Necessário porque num país encerrado num racialismo constante, esse aqui tão siamês do racismo, o racialismo urbano que não gosta do estrangeiro. O racialismo, quantas vezes racista, da elite ou pequena burguesia que resmunga ou invectiva o "branco" e o "monhé" (e o "china" que está aí a chegar). O racialismo, tantas vezes racismo invertido, do mundo rural que ainda sobrevaloriza o "branco", em modos que muito para além vão da hospitalidade camponesa. Ah, primeiro ponto, dizia. Era uma mesa corrida, vinte pessoas para aí, e todos integráveis nesse termo horrível e historicamente poluído: "originários". Pois a pureza "racial" é aqui muito gostada, um tenebroso exemplo de como os instrumentos intelectuais da opressão foram apropriados pelos oprimidos (no decurso do processo da sua diferenciação interna?). Sim, eram "originários" a protestar o nosso anti-portismo, o nosso desapego à equipa "nacional".Desviei-me do assunto? Talvez. Mas acho que não, o futebol aqui apenas serve para falar de identidades. E como é difícil falar de identidades sociais em Moçambique sem referir as omnipresentes (e omnipotentes?) categorias raciais, aliás aqui ainda acreditadas com denodo.A paixão da bola portuguesa tem também um aspecto de identidade nacional. O seu ecoar colectivo aqui também me parece aflorar outros pontos: creio normal que no decurso do colonialismo e no percurso da luta anti-colonial o projecto de construção de uma identidade nacional (ainda em curso, como é "natural" num processo histórico), de uma "moçambicanidade", tenha sido assumido como em parte anti-portuguesa, anti-colono, anti-exploração. E que esse anti-portuguesismo tenha sido parte importante, mas não única, atenção, do tecido intelectual do movimento de libertação e influenciado determinantemente as mentes nos tempos subsequentes. Esse anti-portuguesismo surgiu-me com recorrência, aqui chegado vinte anos após a independência. Não agressivo, não particularmente persecutório. E acima de tudo ambivalente, tantas vezes contextual, tão contextual que súbito invertido. Não estou a falar de políticas estatais nem económicas. Estou a falar das relações sociais, do que ressalta da interacção, do "branco/tuga de merda" até ao "albino", um eixo de locuções que por vezes até tem o mesmo locutor. Não estou a falar de "afectos" (esse lusotropicalismo de pacotilha que nunca mais morre) mas de uma matriz de oposição que, porventura, se vai esbatendo com o tempo, face a outros polos de oposição, polos constitutivos de identidade por via de serem "outros", e "outros" pouco amigos ou pouco similares.Mas é um anti-portuguesismo muito vincado em alguns estratos sociais (atenção referi-lo não é injustificá-lo, denunciá-lo. É apenas referi-lo). Objectivamente encontrei-o explícito em estratos médios da elite urbana e em basta percentagem dos lusodescendentes (e neste estrato social a associação de razões sociológico-ideológicas têm que ser cruzadas com os percursos biográficos, a perenidade da ruptura como estruturante conceptual). Este complexo sociológico foi o produtor ideológico de Moçambique, por razões históricas que serão óbvias e estão referidas (o peso da população letrada, inacreditavelmente (melhor dizendo, acreditavelmente) diminuta ao tempo da independência).

(continua)

Riqueza Absoluta

O Afonso dos Santos publicou no Savana um texto em quwe nos chama a atenção para o relacionamento que existe entra a tão falada pobrza absoluta a e muito menos falada riqueza absoluta. Aqui vai:

O combate à riqueza absoluta

Será que já alguém pensou que a riqueza absoluta pode ser exactamente a causa da pobreza absoluta? Se assim for, a única forma de acabar com a pobreza absoluta será o combate à riqueza absoluta.Convém reparar no seguinte: o discurso repetitivo, monótono e já insuportável da luta contra a pobreza absoluta não existiu desde sempre. Ele teve o seu início em algum momento.
Para melhor compreender qualquer fenómeno, situação ou acontecimento, a melhor maneira é observar a sua existência dentro do tempo em movimento: quando é que começou, quanto tempo durará, como é que se transformará.
O mesmo se aplica ao surgimento de qualquer tipo de linguagem.Ora, o discurso da luta contra a pobreza absoluta aparece na sequência do aumento dos sinais de riqueza absoluta: carros de luxo em contraste com o asfalto esburacado, construção de palacetes pessoais, obtenção de gigantescos empréstimos bancários, apropriação de grandes extensões de terra, organização de opíparos banquetes, faustosos festejos, sumptuosos casamentos e aniversários, dispendiosos uôquechopes.
O triste espectáculo de pobreza oratória a que se assiste actualmente consiste no seguinte: entrega-se umas redes a uma associação de pescadores, é a luta contra a pobreza absoluta; abre-se uma loja de roupa de luxo, é a luta contra a pobreza absoluta; atribui-se (aloca-se!) umas máquinas de costura a uma cooperativa de alfaiates, é a luta contra a pobreza absoluta; inaugura-se um hotel de cinco estrelas, é a luta contra a pobreza absoluta; organiza-se uma corrida pedestre pelas ruas duma cidade, é a luta contra a pobreza absoluta; cria-se um novo curso numa universidade, é a luta contra a pobreza absoluta; oferece-se umas cadeiras de rodas a alguns paralíticos, é a luta contra a pobreza absoluta; apresenta-se uma peça de teatro, é a luta contra a pobreza absoluta; faz-se um jantar de gala, é a luta contra a pobreza absoluta; realiza-se uma reunião de jovens ambiciosos por ocuparem algum cargo, e logo se diz que eles devem definir o seu posicionamento (?!) na luta contra a pobreza absoluta.
Os pobres ouvidos de qualquer cidadão já não aguentam mais a luta contra a pobreza absoluta.Mas, afinal, em resultado de cada um destes eventos, em concreto, quantos pobres deixam de o ser (exceptuando os que vão morrendo de morte natural)?
Mas o mais arrepiante ainda é o seguinte: aquelas são acções que já se realizavam antes da luta contra a pobreza absoluta e que continuarão a realizar-se sempre. Ora, se aquelas são acções associadas à luta contra a pobreza absoluta, significa que essa luta também vai durar sempre, e, se essa luta vai durar sempre, isso quer dizer que a pobreza absoluta veio para ficar.
E esta é precisamente a ideologia e a propaganda da riqueza absoluta: haverá sempre pobres e ricos; haverá sempre corrupção; haverá sempre criminalidade, et caetera, et caetera. É este o futuro prometido melhor?
Melhor será então desencadear, desde já, o combate à riqueza absoluta. E para isso é preciso, em primeiro lugar, iniciar a luta contra a luta contra a pobreza absoluta. Não há engano: não é repetição. Explicando melhor: visto que a luta contra a pobreza absoluta não é mais do que uma frase publicitária para ornamentar discursos e para colocar tão em baixo as expectativas dos moçambicanos, então é preciso lutar para eliminar a luta contra a pobreza absoluta.A luta contra a pobreza absoluta é um programa de acção demasiado pobre, é uma fasquia demasiado baixa, que apenas aponta como perspectiva que tudo continue mais ou menos como está, apenas mais suavizado.
Mas o único objectivo que pode interessar efectivamente ao povo moçambicano é "a construção de um Moçambique desenvolvido, moderno, próspero e forte" (Estatutos da Frente de Libertação de Moçambique, 1968), "um Moçambique independente, desenvolvido e próspero" (Programa da Frente de Libertação de Moçambique, 1968), "um Moçambique evoluído, próspero e democrático" (idem).Porque é que os objectivos tais como desenvolvimento, modernidade e prosperidade foram substituídos por um mísero objectivo de luta contra a pobreza absoluta? Será que é porque esses objectivos são incompatíveis com a exageração da riqueza absoluta?
Tudo isto até dá para pensar que está vago o lugar para o surgimento duma força política ou duma nova geração - já que se fala tanto de gerações - que esteja interessada em dar continuidade ao programa político da Frente de Libertação de Moçambique.
Há, em torno de tudo isto, um outro fenómeno exótico: é que o país sofreu, dentro das suas fronteiras, após a Independência Nacional, uma guerra que durou dezasseis anos, e quantos mais anos passam após o fim da guerra, mais se intensifica o discurso sobre a pobreza absoluta, como se a situação de paz fosse favorável ao florescimento da tal pobreza absoluta. Ou será porque essa paz é favorável ao avolumar da riqueza absoluta?Estes são ásperos tempos, os que agora estão a ser vividos, e constituem motivo de grande desesperança, porque enquanto este folclore da luta contra a pobreza absoluta continuar a avançar, ele não vai deixar andar o combate à riqueza absoluta.

Friday, May 27, 2005

Comentário

A Maria de Lurdes Torcato comenta o texto da Fátima Ribeiro:

Espero que o MEC visite este espaço

Quando o Machado da Graça iniciou este blog disse que o pretendia como um espaço para discutir Política. Até agora não conseguiu o intento. Entretanto a Fátima Ribeiro oferece-nos um importante texto a propósito de uma política – a da introdução do programa de ensino bilingue. Ele é a excepção que confirma a regra de que os textos curtos são mais adequados a este meio de comunicação.
Sendo o objectivo melhorar os índices de sucesso escolar, a alternativa que ela apresenta, serve esse objectivo, com menos custos: levar as crianças a aprenderem o mais cedo possível a língua de ensino. A proposta dela, afinal, é um ovo de Colombo: tão simples e ninguém tinha pensado nela antes.
Sobre a valorização das línguas moçambicanas que seria também objectivo do ensino bilingue, sem pretender discutir um assunto em que sou leiga, só queria dizer que a convicção a que cheguei empiricamente, é que a valorizção de uma língua minoritária depende sobretudo de factores sociais situados fora da escola e que o ensino bilingue imposto por razões políticas é a contribuição menos relevante para esse propósito.
Por isso gostava muito de saber que a tese da Fátima Ribeiro era lida e debatida por aqueles que têm o poder de a pôr em prática.

Maria de Lourdes Torcato

Alternativa

Tal como prometido aqui vai a proposta alternativa da Fátima Ribeiro ao modelo de ensino bilingue que está a ser experimentado no país:

UMA ALTERNATIVA AO ENSINO BILINGUE PROPOSTO PELA REFORMA CURRICULAR


Em artigo publicado recentemente no Jornal Savana e que se encontra disponível também no fórum Ideias para Debate[1] tentámos chamar a atenção para alguns dos grandes obstáculos que incontornavelmente se colocarão ao funcionamento do ensino bilingue em Moçambique nos moldes em que está a ser proposto pela reforma curricular. Patente ficou a nossa convicção de que, para além de não oferecer suficiente garantia de qualidade, tal modelo dificilmente se revelará viável e sustentável. Para o demonstrar, apontámos o exemplo dos livros que serão necessários só para as três classes do primeiro grau do ensino primário (EP1), e exclusivamente para as disciplinas de língua local, matemática e português (oral): mais de uma centena de livros diferentes, a serem produzidos, testados, revistos, impressos, distribuídos por todo o país, a custo zero para os alunos. Hoje, a meio do ano lectivo de 2005, e estando a funcionar um sistema único monolingue, com uma escassa dezena de livros para português e matemática no EP1, é preocupante o número de estudantes pelo país fora e até na capital que ainda não receberam os livros a que têm direito.[2] Não será este um evidente sinal de alarme para o sinuoso e duvidoso caminho por que estamos a enveredar?

Não nos iremos aqui deter novamente sobre o modelo já proposto pelo Ministério da Educação nem sobre os outros problemas que já tivemos ocasião de nele apontar. Centrar-nos-emos apenas em sugestões alternativas que pretendem partir do nosso país real: um país que necessita urgentemente de melhorar os resultados do sistema de educação e de valorizar as suas línguas nacionais, mas que dispõe de pouquíssimos recursos, sobretudo humanos, técnicos e logísticos, já que em termos financeiros a comunidade doadora parece, pelo menos por enquanto, disposta a cobrir as necessidades.

Algumas constatações e reflexões prévias

· Com três décadas de independência e cerca de 15 anos de intenções persistente e veementemente proclamadas no domínio do ensino bilingue, alguma discussão e experiências pontuais, Moçambique não oferece ainda, no seu sistema geral de educação, o ensino de línguas moçambicanas. Em busca do ideal, ficamo-nos pelo irreal. Por que não procurar algo mais simples, barato, viável e que possamos implementar até quase de imediato?

· No nosso país, a esperança de vida média à nascença ronda os 38 anos, tendendo ainda a baixar nos próximos tempos. No entanto, as crianças continuam a entrar para a escola aos 6-7 anos de idade. No chamado mundo desenvolvido, em que a esperança de vida chega a ultrapassar os 80 anos, vemos que se aposta cada vez mais no desenvolvimento da criança logo na primeira infância. Moçambique contrasta mesmo com Angola, que pretende ter 30% das crianças de 4-6 anos de idade no pré-primário até ao ano 2008. Entre nós, praticamente não se fala desse nível de ensino, não obstante o desenvolvimento da criança na primeira infância ser uma das áreas em que se concentram os esforços das Nações Unidas. Por que não valorizar mais aqueles dois ou três anos de vida da criança para que ela tenha uma melhor integração escolar, adquira a língua portuguesa e ganhe algum saber prático para a sua sobrevivência?

· Apesar do dramático futuro que temos pela frente, caracterizado por um sem-número de crianças órfãs e vulneráveis de muito tenra idade, continua o Estado o moçambicano a deixar quase exclusivamente para as comunidades e ONGs a responsabilidade por essas crianças. Se o mais certo é que a maior parte delas fiquem entregues a irmãos menores, idosos ou famílias de acolhimento já quase sem recursos para sobreviver, por que é que o Estado não comparticipa de forma mais responsável na sua educação e preparação para a vida futura?


Um modelo bilingue de transição no ensino pré-primário

Se devidamente adaptado às nossas realidades, o ensino pré-primário, além de preparar as crianças para um melhor início e desempenho no nível subsequente, poderia tornar-se um importante instrumento seja para a edificação de uma escola menos segregacionista que a que temos presentemente seja para um melhor enquadramento e protecção de crianças órfãs e vulneráveis.

É dado assente que as crianças aprendem línguas com muito maior facilidade que os adultos, e que quanto mais cedo têm contacto com outras línguas mais rápida e sólida se torna a aquisição. Sabemos também que para isso as crianças pequenas não necessitam de livros de leitura, nem de um conhecimento explícito de regras de ortografia, nem de explicações teóricas sobre a estrutura língua. Basta-lhes o contacto com a língua falada e a necessidade de a usarem com alguma regularidade, de preferência em situações normais de comunicação, que elas próprias se encarregam de descobrir vocábulos e regras, de construir o seu dicionário e a sua gramática pessoal, ampliando-os e aperfeiçoando-os num processo contínuo de tentativa-erro-correcção. Sendo assim, se ao sistema de ensino bilingue proposto pela reforma curricular se contrapusesse um modelo de transição a ser aplicado no nível pré-primário, muito se ficaria a ganhar em termos de tempo e de utilização de recursos em geral.

Conceber um ensino pré-primário viável significaria, em primeiro lugar, pensar-se na faixa etária dos 4-6 anos de idade sabendo à partida que nem todas as crianças poderiam ser contempladas. Frequentá-lo seria, numa primeira fase, um direito e uma obrigação unicamente das crianças que não soubessem falar português ou cujo conhecimento desta língua não fosse suficiente para entrarem na primeira classe.

Em segundo lugar, este ensino pré-primário implicaria um programa único e um pacote uniforme de meios didácticos de fácil replicação e manuseamento por todo o país. Seria um conjunto de meios impressos e jogos educativos, como cartazes, puzzles, cubos, cartas com “famílias” e outras, bonecos representando figuras humanas e animais, miniaturas de casas, e móveis, árvores, etc., bem como fichas com sugestões de exploração e directrizes para a elaboração de outros meios com materiais simples e passíveis de encontrar por toda a parte (papel, cartão, caixas de fósforos, tampas de refrigerantes, recipientes plásticos, caixotes, embalagens de cartão, restos de tecidos, elementos da natureza, etc.) Tal programa e tal pacote educativo – objecto de cuidadosa concepção a nível central – deveriam permitir que, numa primeira abordagem, a criança se exprimisse na sua língua materna, e depois, em cada área temática, numa linha de progressão minimamente definida, que o docente introduzisse e explorasse áreas vocabulares, aspectos gramaticais e situações práticas de utilização da língua portuguesa até à aquisição desta considerada suficiente para o início do ensino primário.

Para ministrar um programa do género, em vez de um professor, necessitar-se-ia de um educador, um agente de ensino a que, no futuro próximo, pouco mais se exigiria que o domínio da língua portuguesa para situações correntes do dia-a-dia, habilidade para lidar com crianças, vontade e disponibilidade para o fazer, para além do reconhecimento pela comunidade do seu bom fundo moral e profundo conhecimento oral da língua local. Para garantia de qualidade, seria também necessário apoio e fiscalização a serem prestados por estruturas do Ministério de Educação e Cultura pelo menos a nível distrital.

O principal objectivo deste sistema seria fazer com que as crianças, ao entrarem para a primeira classe, para além de usarem fluentemente a sua língua materna, tivessem um melhor domínio da língua portuguesa. Assim, o português poderia continuar a ser a língua veicular de todas as disciplinas no EP1, acreditando nós numa acentuada redução dos problemas de integração na escola, assim como das taxas de retenção e desistência que caracterizam a situação actual. Por outro lado, o capital que hoje representa o domínio da língua portuguesa estaria melhor distribuído, contribuindo para uma participação menos discriminatória de todas as crianças.

Presença das línguas locais e outros aspectos culturais moçambicanos já possível no ensino primário de hoje

Introduzir-se-ia, no entanto, desde já e em todas as escolas e todas as classes do ensino primário, em regime obrigatório, uma disciplina de Língua e Cultura Local, com duas ou três horas semanais, mesmo que para isso fosse necessário utilizarem-se as manhãs de sábado. Essa disciplina seria pensada como componente local do currículo, esta já contemplada no currículo oficialmente proposto. Elementos da comunidade devidamente reconhecidos como pessoas idóneas e responsáveis seriam convidados a ir regularmente à escola contar histórias, ensinar canções, provérbios, adivinhas, jogos, danças, receitas de cozinha, aspectos da história local, etc., nas línguas locais, contando-se com a possibilidade de durante as aulas se recorrer a tradução para a língua portuguesa. Todos os alunos, incluindo os de português como língua materna, frequentariam a disciplina, sendo avaliados pela participação nas aulas, pelo interesse demonstrado e pelos progressos alcançados no conhecimento oral da língua local.

Já para o ensino secundário, dado o número muito mais reduzido de alunos e turmas, e consequentemente de professores, livros, estruturas de apoio, etc. que os necessários para o ensino primário, seria possível pensar-se com mais realismo no ensino da escrita das línguas locais, na reflexão sobre a gramática dessas línguas e até no estudo de obras literárias nelas produzidas. Haveria, assim, da oitava classe em diante, uma disciplina curricular de língua local, com peso e avaliação idênticos aos das restantes disciplinas, a ser obrigatoriamente frequentada por todas as crianças. A sua introdução a nível nacional processar-se-ia gradualmente, numa nova classe por ano lectivo.

Por não ser condição de base nem interferir com qualquer outra matéria, a disciplina de língua e cultura local nos moldes aqui propostos para o ensino primário poderia ser introduzida nesse nível já no próximo ano lectivo, concebida como parte do currículo local, em todas as escolas primárias do sistema único actualmente em vigor, sem prejuízo dos outros aspectos que caracterizam esse sistema. Quanto aos níveis pré-primário e secundário, aguardariam a concepção de programas e a elaboração de materiais.

Considerações finais

É urgente que se passe das palavras à acção. É fundamental que as línguas moçambicanas tenham quanto antes pelo menos algum do espaço que lhes é legitimamente devido no nosso sistema de ensino geral. É uma questão de identidade e orgulho nacional que cada moçambicano, mesmo os de língua materna portuguesa, conheça, além desta, pelo menos uma língua intrinsecamente moçambicana. Não só advogamos a introdução imediata das línguas moçambicanas, como também defendemos a frequência obrigatória, por todas as crianças, nos níveis primário e secundário, de uma disciplina de língua local. Criticamos, isso sim, um sistema de ensino bilingue que à partida se apresenta extremamente vulnerável, tremendamente consumidor dos poucos recursos que possuímos (já de si escassos para a erradicação da pobreza e para a luta contra o HIV/SIDA) e possivelmente conducente a uma situação de aproveitamento escolar real ainda pior que a que temos presentemente.

Nos primeiros anos de independência, movidos pela euforia do momento e a pretensão de cortar radicalmente o cordão umbilical com a pátria colonial, quisemos “escangalhar” o aparelho de Estado. Os resultados ainda estão à vista. Agora, com o entusiasmo global da multiplicidade cultural e linguística e a euforia dos fundos existentes, damos a sensação de querer fazer o mesmo ao sistema de educação. Mas se até os principais agentes do modelo - os professores envolvidos, milhares que são! - não saberão sequer escrever devidamente as línguas moçambicanas que vão ensinar aos meninos e meninas das primeiras classes, é pelo telhado que estamos a iniciar a construção. Em vez de tudo desmantelar, não seria mais prudente fazer-se uma transição a partir do que existe, até que tenhamos condições para conceber e implementar com mais qualidade e segurança um sistema totalmente novo?


[1] Ensino Bbilingue: Uma aposta viável? in Savana, 18.02.2005 e Ensino bilingue da reforma curricular: uma aposta viável?, in http://ideiasdebate.blogspot.com/. Ver também Português, Língua Veicular: Algumas Reflexões sobre Modelos de Ensino (ou Carta Aberta por um Moçambique Estável e Sustentável), in Savana, 28.12.2001.
[2] Assunto recorrentemente tratado na imprensa nos últimos meses, com províncias e escolas reclamando os livros que ainda não foram recebidos e dando a conhecer a necessidade de soluções locais como a partilha de livros pelos alunos ou a utilização de livros do antigo currículo.

Wednesday, May 25, 2005

Futebois

Há poucos dias falava eu com um jornalista estrangeiro, em Maputo para fazer um trabalho sobre os 30 anos da nossa independência, e ele pediu-me, muito espantado, para lhe explicar a enorme manifestação festiva, na baixa de Maputo, por causa da vitória do Benfica no campeonato português.
Não soube o que lhe dizer.
Falei-lhe da mudança dos nomes logo a seguir à independência, referi-lhe que, em Nampula, os clubes tinham voltado a ser batizados como Benfica e Sporting. Dei-lhe factos mas não explicações. Porque eu próprio não tenho respostas para explicar este fenómeno.
Tratou-se, claramente, de uma manifestação espontânea, não organizada por ninguém. Mal teria acabado o jogo e já passavam carros à minha porta a buzinar desenfreadamente, sem que eu fizesse ideia da razão de tal algazarra.
Podia-se pensar que era uma manifestação de portugueses e alguns moçambicanos mais velhos, que não conseguiram arrancar completamente as suas raizes clubistas. Mas não, as fotos que vejo mostram moçambicanos jovens vitoriando o Benfica com um entusiasmo que nunca vi, por exemplo, nas caravanas dos partidos durante a campanha eleitoral. De nenhum dos partidos, fique bem claro.
Eu, se fosse politico, punha alguém a estudar seriamente este caso porque há nele, de certeza, muita coisa a aprender: o que é que entusiasma aquelas pessoas? E porquê? Que atractivo tem um clube de um país distante para com os nossos jovens? Porque não vemos o mesmo entusiasmo com a vitória das nossas equipas?
A qualidade do futebol praticado pode ter alguma coisa a ver com isto. Segundo me dizem, comparando o espectáculo que dá um Benfica a jogar com a mediocridade a que chegaram as nossas formações o espectador adere mais entusiasticamente aos que melhor jogam. Faz sentido.
Mas há muitas outras equipas, pelo mundo fora, que jogam muito melhor do que as nossas. E não vemos nada que se pareça com este entusiasmo. É, de facto, bizarro.
Eu, com a maior franqueza, continuo a não perceber. O futebol parece ultrapassar as barreiras fronteiriças sem quase dar por elas.
E não é doença que atinja só os moçambicanos. Um amigo português, lagarto de um tom de verde que até fere a vista, escreveu, há dias, no seu blog que, mesmo jogando contra equipas de outros países, ao Benfica e ao Porto só deseja derrotas.
Como dizia o outro, o futebol tem razões que a razão desconhece.

Linguas Nacionais

Fátima Ribeiro volta ao blog para nos falar sobre a questão das línguas nacionais no ensino:


Estimada Maria de Lourdes, estimados bloguistas,

“Imperiosa é, sem dúvida, a introdução das línguas locais no ensino, pelas mais diversas razões que têm sido apontadas: permitir à criança expressar-se na língua que domina para facilitar a sua inserção na vida escolar, fazer com que a criança adquira uma base sólida na sua língua materna com vista a uma melhor proficiência nas outras línguas, e valorizar as línguas moçambicanas. Razões, todas elas, suficientemente importantes para nem sequer as pormos em causa. O que pretendemos é, tão-somente, chamar a atenção para questões que se prendem com a viabilidade e a garantia de qualidade do sistema proposto, que são, em Moçambique, e nos tempos que correm, igualmente relevantes.” – Assim afirmei eu no meu artigo publicado neste blog a 18 de Fevereiro, e assim tenho argumentado sempre que para isso tenho oportunidade. É que me preocupa verdadeiramente o que parece estar aí para vir, e a ligeireza com que a questão tem sido abordada tanto nos meios académicos como na imprensa.
É certo que ainda se está na fase experimental, e que o natural seria travar-se o processo se os resultados não forem positivos. Não julgo, no entanto, que isso venha a acontecer facilmente. “A decisão já foi tomada, é de natureza política, e nenhum argumento, seja ele de que natureza for, terá qualquer força para a alterar”, cito de memória um dos nossos linguistas no primeiro dia das Jornadas de Língua Portuguesa presentemente a decorrer no Instituto Camões. Por mim, cá continuo, romanticamente pensando que posso ajudar a evitar o caos que prevejo.
E infelizmente - em minha humilde opinião, é claro – nem mesmo os resultados da fase experimental serão suficientes para justificar o modelo. Como todos sabemos, uma coisa é pôr o sistema a funcionar em duas ou três escolas por província, a merecerem toda a atenção do Ministério da Educação e Cultura, dos técnicos superiores envolvidos, dos doadores, etc. Outra coisa é pretender torná-lo sistema geral de ensino e aplicá-lo até às mais remotas aldeias do Niassa. É uma questão que tem de ser vista por linguistas e pedagogos, mas também por técnicos de vários outros domínios. Dela dependendo o futuro próximo e a médio prazo de pelo menos uma geração e do nosso país em geral, é um debate que eu gostaria de ver aberto a toda a nossa sociedade. Se o Machado permitir, vou cumprir muito em breve o que prometi: apresentar ideias para um modelo que proponho seja testado em paralelo com o oficialmente proposto pela reforma curricular. Sem qualquer pretensão académica, será, no entanto, um texto longo, o que tem sido criticado no blog. A todos quero apenas recordar que foi com um dos mais longos textos que aqui se viram – o excelente “Os sete sapatos sujos”, de Mia Couto - que o blog começou a animar, na sequência de também longas intervenções, umas mais, outras menos, mas todas elas “técnicas”, de Patrício Langa, Quitério Langa, Elísio Macamo...

Saturday, May 21, 2005

Olhando para o blog

A Maria de Lurdes Torcato escreveu fazendo um reparo à tendência que está a surgir para aparecerem textos demasiado académicos e de dificil leitura. Eu próprio já tinha apelado para um esforço de trazer aqui textos que possam ser compreendidos por um público mais alargado. Isto semm perder a sua qualidade.
De me permitem, acho que, por exemplo, os textos do Elisio Macamo são de grande clareza, sem se tornarem de dificil leitura. Pelo uso constante de exemplos e abstenção de demasiadas citações de autores que a maioria de nós desconhece, ele consegue transmitir a sua mensagem clara e transparentemente.
Aqui vai o texto da Lurdes:


Na era dos leitores com pressa

Vi a resposta da Fátima Ribeiro sobre a falta de reacção do “blog” ao problema que levantou sobre o “Ensino Bilingue”. Sem dúvida que a questão é importantíssima para Moçambique; mas o facto é que não é uma coisa que eu, por exemplo, possa discutir, porque não sou pedagoga nem linguista. Acho que, mesmo dentro destas disciplinas, é um assunto bastante especializado. Sei que a decisão de introduzir o ensino bilingue foi tomada com base em informação científica e com a preocupação de facilitar a aquisição de conceitos pelas crianças que não falam português, ao iniciarem a escolarização. Julgo saber também que, passado o período experimental, é susceptível de ser revertida se os resultados não corresponderem à expectativa. Estou enganada?
Mas este é o risco de trazer para o blog assuntos que só são acessíveis a pequenos grupos de pessoas, ou colocar esses assuntos mais especializados numa perspectiva que pode não ser a que preocupa o maior número de pessoas. Isto é: o tema do “ensino bilingue”, potencialmente é de interesse para muita gente a quem a educação dos filhos preocupa. Mas ao levantar o problema é preciso fazer com que o leitor “veja” esse interesse, colocando-o de modo acessível e na perspectiva que toca não apenas os especialistas, mas os pais e mães comuns. Infelizmente o texto saíu há muito tempo e ainda procurei lê-lo outra vez mas desconsegui de o encontrar (espero que, como professora de português, me permitas a expressão).
Entretanto achei de interesse um texto de um jurista em Nampula, criticando um secretário de partido que, numa conferência da organização da juventude, disse que os administradores distritais “deviam” ser membros do partido que está no poder. O autor cita a Constituição para provar o tremendo erro que o referido secretário cometeu, erro esse que constitui uma afronta à lei fundamental do país. Neste sentido o texto é bastante didático.
Só me preocupou o facto de o autor fazer as acusações ao secretário com base em ele ter dito que os administradores “deviam” ser membros do partido, porque assim, fora do contexto, não se pode avaliar se o “deviam” era uma sugestão, uma recomendação, ou uma obrigação. Como o autor citava o macua.blog.com, fui lá e vi a reportagem do jornal de Nampula sobre o episódio em causa. E pela leitura fica-se de facto com a impressão que o secretário achava que devia ser obrigatório que os administradores fossem membros do partido. E sendo assim, o autor está cheio de razão nas críticas que faz. Mas, nestas coisas de reprodução por escrito, de factos, o “contexto” é fundamental.
Acho que com a entrada de textos de conteudo mais concreto, o blog pode animar mais, porque argumentações entre académicos, por amor à argumentação, excluem muita gente. A mim por exemplo. Tenho pouca paciência para ler textos académicos com mais de 500 palavras, a partir daí passo a ler em diagonal, e claro, chego ao fim irritada porque não percebi. Mas já não volto atrás! Outras leituras me esperam. Por exemplo o extraordinário livro de contos de João Paulo Borges Coelho, chamado SETENTRIÃO, que é no espaço de um ano o terceiro que ele publica, e que eu leio frase a frase, com o maior prazer intelectual.

Maria de Lourdes Torcato

Thursday, May 19, 2005

Moçambicanidade

Recebi já há uns dias (peço desculpa ao autor pela minha desorganização) o texto de Emidio Gune que se segue.
Entretanto volto a apelar aos participantes neste blog para "aligeirarem" os seus textos de forma a serem acessiveis a pessoas que não têm a mesma preparação académica.
Textos carregados de citações têm valor na universidade mas tornam-se de dificil leitura num blog como este que se destina a um público mais diversificado.
Aqui vai o texto:


Diálogos a Partir da Matola: Pelos Direitos de ser moçambiques, em moçambiques, por Moçambique


O texto que se segue foi originalmente escrito e apresentado no âmbito dos Seminários de Arqueologia e Antropologia do Departamento do Mesmo nome, da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Agradeço desde já a paciência pela anarquia metodológica.

Começo por constatar que falar de Moçambique como demarcação física, de onde provém moçambicanos é uma certeza simples e consensual. Basta olhar o mapa e lá descobrimos esse lugar, no qual vive-se constitucionalmente um Estado democrático desde os anos 90.

Recuo no tempo para ler Severino Ngoenha (1998) na colectânea de textos Identidade, Moçambicanidade, Moçambicanizaçäo, sob direcçäo do prof. Carlos Serra, e eis que sob o título Identidade mocambicana: já e ainda näo, Severino Ngoenha enfatiza que a aglutinaçäo de contextos culturais diversos, pré-existentes a Berlin geraram Moçambique, e que no pós independência essas diversidades foram reprimidas na construçäo do homem novo, näo tendo contudo desaparecido. Este posicionamento surge quase 25 anos após Jacques Soustelle (1973) perguntar na sua carta aberta as vítimas da descolonizaçäo, o que mudou com as independências em termos de bem estar e participaçäo?

Visitei entäo Olívia Maria Faife (2005), no seu Moçambique: as metamorfoses da Cidadania ou em busca de uma cidadania?, que trazendo Marshall (1967) divide o conceito de cidadania em três partes, a saber o civil, o político e o social. Faife vai ainda buscar Turner (1990) para abordar duas perspectivas de cidadania, nomeadamente a cidadania passiva, resultante da obtenção da mesma, via Estado, com o Estado a gerir o espaço público, mantendo a iniciativa de mudança e incorporando aos poucos os cidadãos à medida que vai ampliando os seus direitos. De forma complementar a cidadania activa resulta de uma luta pelos direitos civis, políticos e sociais.

Foi com este substracto que ia entrar para o debate sobre cidadania e a construçäo da moçambicanidade. Aconteceu que no dia 21 de Março o jornal Notícias dava conta da mudança do nome da Escola Secundária da Matola, derivada de razöes patrióticas, necessidade de dar nome a escola, história universal, condicionamento de financiamento e por terem sido consultadas as comunidades da Matola.

Partilho entäo as minhas reservas às razões evocadas, num fórum online onde coloco questões como: Quando foi convocada e por que meios publicitada a referida consulta, onde se realizou, quem participou e em representaçäo de quem, e onde poderiam ser consultadas as actas da mesma?

Longe de virem respostas as questões que eu colocava, vieram mais justificações contra o nome da Escola Secundária da Matola, nomeadamente “vocês meninos tem que aprender com a história universal”, de seguida apareceu um artigo num jornal dando lições de história universal e contra o nome da Escola Secundária da Matola, complementado por outro artigo de outro jornal que perguntava se seria importante abordar essa questão. Mais recentemente complementada por uma autoridade da área da cultura?, defendia ser apenas uma mudança de nome da Escola e nada mais. Esta era a dimensão teórica enfatizando consulta e participação, corporizando então a democracia vivida no país, contudo na prática iam irradiando testemunhos de não haver indivíduos consultados na Matola.

Aqui começava a reaparecer a diversidade de moçambiques dentro do Moçambique, na medida em que sobre o mesmo assunto pessoas divergiam em foma bipolar. Este aspecto fez-me rever minha intenção inicial passando então a focalizar as seguintes questões: como é que os diversos contextos de sobrevivência dialogam neste Moçambique, qual a participação desses moçambicanos desses e nesses diversos moçambiques na tomada de decisões sobre reconstituções que lhes dizem respeito apenas a si enquanto contexto particular, que competências discursivas são mobilizadas no processo e que alternativas podem ser mapeadas?

Para complementar, sendo o exercício da participação um pressuposto fundamental da democracia, e tendo em conta que se trata de um assunto que impacta numa particularidade de Moçambique, urge questionar quem tem direito de decidir se o assunto é importante para ser discutido? Ou ainda como são acauteladas questões que sendo referentes a lugares particulares de Moçambique, têm que ser decididas por decisores alheios a essas mesmas particularidades?

Com base nos elementos discursivos contra o nome da Escola Secundária da Matola, e de modo a tornar possível uma análise sistematizada para procurar algumas possíveis respostas às questões colocadas, construí então uma perspectiva ideal típica[1] que é contra o nome da Escola Secundária da Matola. A referida posição demonstra uma participação a nível discursivo, reduz aspectos identitários apenas ao seu domínio simbólico, procede a uma deificação e impõe uma universalidade de uma história, ao estilo evolucionista unilinear e de forma complementar opera a naturalização da lei, impondo alterações a contextos culturais alheios, por via de decretos e ostracização.

Partia de um ponto triplamente instável e frágil para a presente reflexão. A primeira é que, se a discussão em torno da mudança de nome da escola secundária da Matola veio alargar o meu propósito analítico inicial, ela fragilizou-a duplamente. Por um lado porque a recolha de dados no terreno durou apenas 2 semanas, obrigado-me a redifinir o formato inicial e por outro lado, por não ter podido explorar com mais profundidade o assunto. Contudo, a essas fragilidades juntaram-se factores como a discussão do assunto no programa Matolinhas, da Rádio Cidade, no Fórum Mocambiqueonline, fornecendo-me, reacções de interlocutores, amigos, colegas, participantes do debate de apresentação do texto original, que vieram enriquecer a reflexão, alargando por um lado os argumentos que incialmente propunha apresentar e de forma complemetar trazendo posições diferentes e até contrárias as minhas. Deste modo o imprevisível enriqueceu, ganhando o texto mais conteúdo, profundidade e intensidade.

A segunda fragilidade e instabilidade reside no facto de não ter acesso as razões oficiais de forma oficial, para a “simples mudança simbólica” contra o nome da Escola Secundária da Matola, como se posiacionara certo cidadão dum dos moçambiques, que não a Matola.

Por sua vez a terceira prende-se com o facto de Thomas Kuhn, com a sua Estrutura das Revoluções Científicas, e Bruyne et al (1977). no seu, Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: Os Polos da Prática Metodológica, quase terem-me feito desistir de escrever, ao lembrarem-me que a “produção da verdade ou conhecimento” deriva mais da sociabilidade e do que “os que estão no poder” quiserem que seja e menos da clareza, coerência ou demonstrabilidade do argumento, ou seja mesmo que seja indemonstrável se o poder quiser ele fica verdade.

Mesmo assim, decidi então dialogar, com os contra o nome da Escola Secundária da Matola. Para o efeito, submeti os argumentos que aqueles colocam a um diálogo mediatizado por autores que abordam aspectos relativos a contextos culturais, aspectos identitários, história e cidadania. Por fim decidi dialogar com todos potenciais interlocutores sobre o assunto, porque no limiar da minha desistência Hannah Ahrendt, no seu Poder e a Crítica à Tradição, animou-me ao recorda-me que “Estar no poder” significa “estar autorizado” pelo grupo a falar em seu nome... neste caso estar autorizado pelos eleitores, Municipais da Matola e das eleições gerais, dos quais os da Matola também são parte,,, ai recomponho-me parcialmente. Parcialmente porque a explicação do porque estar contra o nome de Escola Secundária da Matola, ainda não chegou ao “nosso povo”[2], onde todos esses com nomes de indígenas e outros que não são da história universal, estão à semelhança do Matsolo, condenados a ser enterrados bem fundo de seus túmulos[3], não só materiais bem como simbólicos e jamais serem discutidos neste contexto que se chama mundo, ou reduzir possibilidade de sua discutibilidade, porque alguém de outro moçambique que näo Matola assim acha, contra a auto-estima dos que são da Matola ou que nela têm um marcador identitário que dá sentido e torna possível suas vidas.

Como forma de proceder a objectivação das questões colocadas, isolei o caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola e tomei-o como lugar etnográfico, para confrontá-lo com teorizações sobre contextos culturais, marcadores identitários, história e cidadania. Para a sua operacionalização recorri a descrição em presença e a observação participante, usando como instrumentos, entrevistas semi-estruturadas, baseadas num guião da minha autoria e outro produzido pelo programa Matolinhas, que resultou em intervenções dos ouvintes do programa. Ajuntei a isso, histórias de vida e trajectórias pessoais, consultei jornais, e fóruns online, nomeadamente o moçambiqueonline e o blog ideias para debate. Sendo um exercício exploratório há aspectos por alinhavar nomeadamente a necessidade de aprofundar trajectórias dos discursantes contra o nome da Escola Secundária da Matola, e todos outros dos quais não me apercebi, mas que o diálogo com outros interlocutores permitirá aferir, como já aconteceu durante a apresentação no Seminário já referido.

Propus-me entäo a exercitar uma antropologia que estuda problemas de humanos ao estilo de Mariza Peirano (1995), no seu A Favor da Etnografia, e não povos, nem primitivos, como Jean Copans (1971) sugeriu e não cumpriu, ao trazer exemplos etnográficos apenas de contextos primitivos, no seu Antropologia Ciência das Sociedades Primitivas? mas assumindo-o como um projecto político como o mesmo Jean Copans (1974) sugere, em Críticas e Políticas da Antropologia. Faço por fim eco a Stanley Tambiah (2002) que associa vida e profissäo de antropólogo, no seu, Edmund Leach. An Anthropological Life, recolocando que o critério fundamental de definiçäo do objecto de estudo da disciplina näo passa necessariamente por um deslocamento histórico ou geográfico à procura dos outros, podendo por isso o objecto da antropologia ser construído e analisado em nosso contexto do dia a dia. Faço então uma antropologia fraca, no sentido de assumí-la como uma construção aproximativa entre contextos culturais diversos, fraca porque o humano não alcança a perfeiçäo, apenas reduz ciclicamente a imperfeição.

Dialogando com autores sobre cultura, cheguei ao conceito contexto cultural dada a inadequação do conceito de cultura de Tylor, que ata cultura a sociedade, tomada como lugar geográfico. Ora desenvolvimentos analíticos recentes permitem-nos perceber que indivíduos podem partilhar até espaços geográficos comuns mas terem diversos substractos culturais e de forma contrária estarem em espaços geográficos diferentes e partilhar substractos culturais. Enfatizando a distância entre contextos culturais dizia alguém “usar a Withbank para ir ver 10 dos 30 terrenos que tem, quando nenhum teu filho ou alguém que te é próximo, estudou na Secundária, comeu Matswincha, nadou no Matola, jogou no Amparo, ou ter uma mansão na Matola, näo é suficiente para vibrar com Matola e tudo que ela tem”.

Fui buscar entäo Peter Brown (1998) no seu, Understanding and Applying Medical Anthropology, que enquadra a cultura numa esfera interactiva entre os domínios material, de relações entre indivíduos e do simbólico, visando assegurar sua sobrevivência. A este autor, associei Melford Spiro (1998) no seu, Algumas Reflexões Sobre o Determinismo e o Relativismo Culturais com Especial Referência à Emoção e à Razão, que sugere que para que consideremos proposições culturais, estas têm que estar alicerçadas mais numa experiência colectiva e menos na individual, têm que ser resultantes de uma tradição enquanto recurso histórico legitimacional assumido por determinado conjunto de indivíduos e que sejam enculturadas, ou seja interiorizados e assumidas como crenças. A este conjunto de interações designei então de contexto cultural, tomado como um lugar imaginado no qual os indivíduos visam assegurar a sua sobrevivência, intervindo sobre um domínio material, de forma relacional com outros indivíduos por intermédio de símbolos sustentados por crenças públicas e tradicionais.

Neste contexto, os símbolos enquadram-se numa ampla esfera de mediatizaçäo e significaçäo das estratégias de sobrevivência dos indivíduos, não sendo portanto meros símbolos. A redução de aspectos simbólicos a meros símbolos, deriva de situações semelhantes à seguinte: lendo a Bíblia, quando esta aborda a questão de ser "puro como a lã das ovelhas" perguntaremos aqui em Moçambique, que pureza? Porque as nossas ovelhas são castanhas, pretas, cinzentas, e mesmo que sejam brancas devido à areia a brancura não brilha, diremos então é puro simbolismo e pode não fazer sentido para nós, mas uma incursão para os lados de onde a Bíblia veio, sentir, visualizar, tocar, ajuda a perceber o significado da “pureza da lã” ao notar que a sua brancura até brilha.

Isto leva-nos a percepçäo de os símbolos não terem uma razäo em si, mas buscarem representar contextos particulares mais amplos, sendo que a sua percepção passa por reenquadrá-los nos seus contextos culturais de referência. Nestes os símbolos servem de marcadores identitários, ao tornarem-se nos elementos aos quais os indivíduos recorrem para inspirar, manejar e legitimar, visando a sua inserção e sobrevivência desde o substracto particular até ao global, a tal ponto que ouvimos uma mãe dizer: “quando meu filho não quer estudar eu digo para ele, tens que estudar para ires para a Secundária da Matola, e ele esforça-se e repete a motivação aos amigos” ou “Eu sou engenheiro hoje porque fiz primeiro o ensino secundário e não foi nessas outras... ou esses nomes estranhos que nos querem trazer... foi na Secundária da Matola”.

Os contextos culturais, bem como os marcadores identitários são também lugares provisórios porque abertos a transformações, sejam de origem interna ao contexto, derivados de invenções internas, ou exógenas porque derivadas de origens externas ao contexto. De forma complementar podem ser pacíficas ou violentas, ou se preferirmos podem ser de forma democrática ou autoritária, e se nalgum momento o autoritarismo pode ser tolerado noutros não, Dizia um ancião, “antes a escola tinha nome de um colono. Mudaram, foi bom porque começamos a acreditar em nós, afinal tinhamos exemplos de defesa de Moçambique e mesmo quando eramos bombardeados pelos “Boers” Matola inspirava-nos a resistir, agora que brincadeira é essa virem e mudarem?”.

Os referidos marcadores indentitários, säo constituídos com recurso á história, e como refere Jerome Brumer (1991) no seu The Narrative Construction of Reality. Critical Enquiry, e opondo-se a ideia de uma história natural, este autor refere que nenhum conhecimento é neutro. Sendo assim a historia será sempre então a legitimaçäo no hoje visando colher benefícios, seleccionando no ontem, que pode nunca ter existido pelo menos tal e qual se propala, os ingredientes para dar sentido ao hoje, ou seja silencia-se acontecimentos e amplia-se outros, falsificando esse passado para dar lugar à história. Essa falsificação pode derivar de factores propositados ou de limitações técnico metodológico e contextuais, incluindo vontades políticas. Matola é uma construção histórica, tomado como marcador identitário e que dá sentido a vida de moçambicanos da Matola ou do contexto cultural Matola. Dizia um dos ouvintes do Matolinhas “Quando nós fomos a Itália jogar fomos como equipa da Secundária da Matola, e deixamos lá o nosso Matola bem vincado”, e em tom de indignação “quando eu for buscar meu certificado é para aparecer um nome que não me diz nada?”

Referir que, os condimentos materiais, de relações e simbólicos, de dado contexto cultural não derivam necessariamente da construção de seus integrantes. Contudo mesmo nesses casos estes apropriam-se desses elementos enquanto marcadores identitários que lhes estão disponíveis e assumem-nos, ressignificando-os para dar sentido às suas estratégias de sobrevivência enquanto indivíduos ou grupos. Isto leva a que mesmo que determinado indivíduo tenha forjado os condimentos de dado contexto cultural, a partir do momento em que os indivíduos deste apropriam-se deles, os referidos condimentos passam a ser marcadores identitários desses contextos, transcendendo o mero simbolismo, deixando de estar sobre controle apenas dos que os construíram. No caso do Matola se o grosso dos indivíduos deste contexto não o forjou enquanto marcador identitário eles apropriaram-se dele, como ilustra o exemplo “nós somos os matolinhas, os jovens da Matola em movimento” spot publicitário do Matolinhas.

Sobre história universal, Ruediger Korff (2003), no seu Dialectic. Local Enclosures of Globalization. The Power of Locality, sugere que a capacidade de determinado contexto local poder assumir uma posição de definição de discursos dominantes deve-se a sua organização e recursos... consequentemente, dicursos globais (universais) tem um substracto local e globalização (universalização) podem ser então interpretadas como uma dominação global a partir de contextos locais, ou seja não há histórias naturalmente universais elas são universalizações de contextos particulares. Neste sentido Matola não é universal porque ninguém o universalizou, a semelhança do monumento do Tofinho que está sendo destruído. Continuamos a venerar as verdades dos outros mesmo que sejam tão verdades quanto as nossas.

Este cenário lembra Henri Junod (1974), no seu Usos e Costumes dos Bantu, ao ser questionado por colegas seus sobre porque usar um nome pejorativo para designar um povo, e ele dizia irão habituar-se e até orgulhar-se dele e mais adiante vai ciclicamente sugerindo ponha-se aos poucos fim às práticas e costumes indígenas, para dar lugar a civilização, entenda-se a dita ocidental?. Ora, Junod estava a produzir recomendações para o colonizador, por isso não importava o que os nativos pensassem ou quisessem ele queria impor o seu ideal civilizacional. Ora, hoje a quem estarão a servir os contra o nome da Escola Secundária da Matola, se aos moçambicanos da Matola não está sendo dada oportunidade de participar do processo e está sendo de certa forma contra suas vontades, a semelhança do que Junod fez? É esse o sentido patriótico? De que pátria?

No caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, força-se o cidadão a ser passivo, recusando-lhe o direito de participar activamente, pondo em causa o exercício da democracia. Este procedimento torna ainda válida a observaçäo de Severino Ngoenha, e até a questão de Jacques Soustelle.

Porque mesmo não sendo os contextos culturais homogéneos, eles reúnem elementos de proximidade, maior que de outros contextos. A este propósito mapeamos três visões de proximidade relativas ao processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, sendo a primeira a que defende que o “nome pode mudar desde que fique claro o que ganhamos”, ora fica implícito que este indivíduo não sabe o que ganhamos, logo não foi envolvido no processo. A segunda defende “não queremos esse nome, ainda que fosse para ser Ngungunhana, Maguiguana, Samora Machel, mas esses aí acordaram e decidiram mudar o nome”, a semelhança do primeiro este grupo de indivíduos não participou do processo. Por fim a visão segundo a qual “não queremos a mudança de nome, porque não mudam nomes de outras escolas tem que ser esta da Matola, estäo a obrigar-nos a destruir algo que nos diz respeito”. Ou seja os indivíduos do contexto cultural Matola mesmo com posiçöes diferentes sobre o assunto clamam pelo facto de estarem a ser excluídos do processo, clamam por poder participar e decidir sobre os seus destinos de sobrevivência incluindo a identitária, que no caso tem no Matola um marcador identitário.

Se o discurso de Severino Ngoenha pode ser entendido no quadro político particular no qual era necessário construir um Moçambique que havia sido etnicizado, na época colonial, ao estilo dividir para reinar, hoje num Estado democrático onde se pretende resgatar a auto-estima, a posição e sobretudo os procedimentos que estão sendo adoptados contra o nome da Escola Secundária da Matola, levam a pensar no que Custódio Duma (2005), refere no seu texto, Pagar ao País, que o Estado “... cada vez mais se distancia do povo e tenta criar uma imagem de monstro que assusta as pessoas, o cidadão olha para o Estado como se ele fosse a máquina criada para explorá-lo e não como uma instituição que ele mesmo criou para sobreviver”.

Para finalizar, permito-me considerar então que por um lado, estar contra o nome da Escola Secundária da Matola, é “matar os moçambicanos da Matola” como disse um ouvinte do programa Matolinhas, transcende a dimensão simbólica para ser uma tentativa de destruir um marcador identitário visível dos indivíduos do contexto cultural Matola, que motiva, dá sentido, integra e assegura a sobrevivência dos indivíduos e grupos desse mesmo contexto. Dar nome próprio a Escola, Matola não é nome? Ou dar nome assimilado a Escola, apagando o indígena?

Por outro lado, sendo a história uma invenção que legitima as acções no presente, ela por si só não serve de argumento suficientemente demonstrável para dar sentido de forma coerente a mudança do nome da Escola Secundária da Matola, porque este também tem a sua história, a semelhança de qualquer outro nome e com a particularidade de Matola fazer parte da auto-estima deste contexto cultural, que tanto se pretende resgatar, e existem muito mais escolas cujos nomes coincidem com os nomes dos espaços geográficos onde elas se localizam, Escolas Secundária da Polana e do Chibuto, só para mencionar algumas.

De forma complementar sendo a lei uma construção social ela deve considerar o justo, que sendo contextualmente definido, deve ser negociado nessa particularidade sobre a qual impacta, no caso em análise essa particularidade é Matola, pois é injusto que indivíduos que não sendo da Matola ou não partilhem o contexto cultural e marcadores identitários da Matola, impeçam os primeiros de participar da tomada de decisões que apenas a si dizem respeito em nome da lei, porque a lei não está para oprimir nem para explorar, ou estaremos a dizer que a colonização foi justa, que Mueda foi justo porque os que executaram tinham ordens e um substracto legal para o fazer? Ou estaremos ainda a dizer se o povo não se conforma com uma lei injusta mude-se de povo e não a lei?

Como horizonte alternativo quero sugerir que neste caso os moçambicanos da Matola tem direito a participar nos processos de reconstituição de seus contextos culturais, marcadores identitários com os recursos históricos que acharem mais convenientes. No caso presente, os matolinhas tem o direito de manter o nome da Escola Secundária da Matola e não a serem reduzidos a meros votantes para eleger representantes que representam suas vontades e não das dos que os elegeram, porque ser matolinha e reivindicar essa particularidade não é incompatível com ser moçambicano, mas é em si mesmo uma forma de participar da construção de Moçambique e da moçambicanidade. Tal e qual alguém questionou ”onde estavam esses senhores quando em 2000 nós tivemos que fazer greve para que a Secundária da Matola fosse reabilitada?, exigimos a reabilitação da Escola e não do nome da Escola...agora que a Escola está bonita já aparecem...a escola estava uma vergonha para qualquer moçambicano...”.

Se vingar a ideia financiou-mudou, preparemos novos nomes para as Escolas da Polana, do Chibuto, Francisco Manyanga, Josina Machel, Joaquim Chissano, Ngungunhana, Eduardo Mondlane ou para os monumentos do Tofinho, Mueda, Chaimite, para não falar em apelidos indígenas que tanto pululam por entre nós para substituí-los por nomes da história universal, porque mais dia menos dia necessitarão ser reabilitados e parte do orçamento donde provém salários pagos a nós com apelidos indígenas vem de fundos externos? Estamos a voltar aos indígenas e assimilados, negando o que somos para tentar sermos os outros que jamais seremos? Quem serão os responsáveis amanhã pela destruição da nossa história, porque os colonos já foram. Foram, ou transmutaram-se?

Esta é a minha proposta, diálogo na diferença sem reduzí-lo a idades, cargos, ou títulos, mas dialogar num Moçambique onde os moçambicanos de carne e osso contem, com as suas particularidades porque esta é a única maneira de discordar de Soustelle quando afirma que mesmo com as independências continuou existindo exploração e negação de participação, e por isso teria sido melhor que não tivessem ocorrido as independências. Esta proposta de uma antropologia fraca é refutável obviamente, preferencialmente com argumentos demonstráveis, lógicos e coerentes, mas podem colocar outros critérios, ou mesmo via decreto também de qualquer tipo...
[1] Segundo Bruyne et al. (1977:183) “a construção ideal típica ….visa dar uma descrição ‘excessiva’ do fenómeno a fim de melhor poder identificá-lo”.

[2] Acho que os da e para Matola tambem fazem parte.

[3] Mesmo ali Juntinho à Escola Secundária da Matola.

Membros do partido...

Do Custódio Duma recebi o seguinte texto:

Como nao disse nada
Achei que nao recebeu o texto
Ai o mando novamente

Carta Aberta ao Primeiro Secretario do Partido Frelimo em Nampula


Custódio Duma*

Não sou membro de nenhum partido em Moçambique. Exerço meu direito de voto desde que sou habilitado para tal. Considero-me moçambicano e sujeito de direitos e garantias constitucionais facto que me obriga a reagir perante declarações do Primeiro Secretario do Partido Frelimo em Nampula, a quadros da OJM, onde afirmou categoricamente que os Administradores Distritais deviam ser membros do Partido, conforme se pode ler no Wamphula FAX de 17 de Maio de 2005. (Cfr. Macua.blogs.com)
Não que eu pretenda ser administrador de algum distrito, mas porque encontro nessa declaração uma grande dose de discriminação e violação de direitos dos cidadãos que são iguais perante a lei e que devem ser tratados sem acepção.
Prefiro abordar a questão à luz da recente Constituição de Moçambique que entrou em vigor no ano passado e depois disso aferir o que realmente existe por de trás dessas palavras que saíram a um público jovem e quadros do amanhã desse grande país como força destruidora e desinformadora de mentes que ainda estão se firmando.

Em primeiro lugar camarada secretário, gostaria de lembra-lo que a soberania do Estado moçambicano reside no povo e que, por causa disso, o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, situação que torna inconstitucional e repudiável todo e qualquer acto que seja contrario a Lei Mãe moçambicana e outra legislação em vigor. Artigo 2 da CRM 2004;
A mesma Constituição, no seu artigo 35, diz que todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça (...) profissão ou acepção política, sendo portanto inconstitucional e fora da lei toda e qualquer discriminação com base na orientação política da pessoa como é o caso em questão;
O artigo 39 diz que actos que atentem contra a unidade nacional, que prejudiquem a harmonia social, criar divisionismo, situação de privilegio ou discriminação com base naqueles mesmos itens, serão punidos nos termos da lei, sendo portanto essa declaração de V.Excia um acto que cabe nesses proibidos pelo artigo citado, e que, se realmente estivéssemos num Estado de Direito, o camarada secretário estaria agora respondendo pelo reboliço político que criou;
Quanto a aderência a algum partido político, o artigo 53 é claro ao estatuir que o cidadão seja livre de constituir ou participar em partido e que essa adesão seja de forma livre e voluntária, sendo, portanto essa afirmação do primeiro secretario um atentado contra a liberdade do cidadão;
Já no artigo 56, dedicado aos princípios gerais, o numero um diz o seguinte: os direitos e liberdades individuais são diretamente aplicáveis, vinculam entidades publicas e privadas, são garantidos pelo Estado e devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis. O camarada secretário como uma entidade política de forma nenhuma está isento de cumprir essa obrigatoriedade constitucional;
Finalmente o artigo 74, mostra que é através de partidos políticos que a formação e manifestação popular são efetivados, sendo isso fundamental para a participação democrática dos cidadãos na governação do país, o que mostra desde logo um atentado por parte daquelas declarações a esse principio constitucional.

Estes seis pontos constituem o mínimo de violações que se pode aferir daquela declaração que mais do que destemida acabou ilustrando uma filosofia que se segue em todo o país principalmente na administração da coisa pública, onde se exclui por completo aquele que não seja membro do Partido Frelimo.
Para um país que se auto intitula democrático e de justiça social, onde o Estado é de Direito essa declaração é até certo ponto vergonhosa à Soberania Nacional e à própria Constituição da Republica.
Isso mostra a falta de capacidade em conviver com o outro e com aqueles que comungam ideais diferentes dos nossos. O camarada secretário pretende desta forma mostrar que de nenhuma maneira está aberto ao dialogo com aqueles que são diferentes. Isso dissemina desde logo revoltas e barbaridades em face de quem detem o poder, justamente porque a nossa Constituição em nenhum momento afirma que só pode ser funcionário do Estado Membro de algum partido.
Alem do mais, seja quem for que esteja representando o Estado, como funcionário, tem a obrigação de agir conforme a Constituição e as demais leis em vigor e não conforme os estatutos ou obrigações do seu partido. O artigo 38 obriga a todos o respeito da Constituição sendo que nenhuma outra regulação interna é superior à Constituição da Republica, nem mesmo a obrigatoriedade partidária.
Assim, no meu entender, camarada secretario, qualquer um pode ser administrador desde que tenha capacidades e reúna requisitos exigidos por lei, embora não seja do partido frelimo, sendo que a sua destituição deverá ser por má actuação ou má administração da coisa publica, conforme a lei e não por fazer ou não parte de algum partido político.
A idéia que o camarada secretario pretende disseminar é desde logo prejudicial à nação, pois retarda a construção da justiça social e da democracia no país. É por causa desse tipo de idéias que temos muitos quadros que, embora não comprometidos com a causa publica, assumem cargos elevados e só cometem desmandos, usando e abusando da coisa pública.
É claro que foi a Frelimo quem ganhou as eleições, mas acima de tudo é o povo quem deve ganhar com isso, a Frelimo foi votada não só por militantes do partido, mas também por pessoas que por varias razões não pertencem a nenhum partido político. O direito a voto não pertence só aos membros dos partidos, mas a todo o cidadão não impedido por lei.
O espírito do “deixa andar” que se pretende combater no Governo do Presidente Guebuza não será eliminado se o tratamento dos quadros for de acordo com a sua linha partidária, ou qualquer outro tipo de discriminação ao cidadão. Pois temos em Moçambique bons profissionais que não são da Frelimo, assim como temos maus profissionais que são da Frelimo e vice-versa. Esse tipo de idéia do camarada secretário, pode esconder e ter fundamento noutras formas de discriminação como por exemplo com base no regionalismo.
Se o camarada secretário quiser colaborar com a principiologia introduzida pelo Presidente da Republica que ao mesmo tempo é o número um do partido deverá despir-se dessa forma de analisar a administração publica.
Moçambique precisa de quadros que estejam prontos para construir o país e não de membros do partido. Moçambique busca profissionais e não partidários. Há muito ainda por fazer nesse país jovem, que só os membros do partido Frelimo não conseguiram fazer. A unidade nacional que se pretende não deve ser só na campanha eleitoral.
Não quero através dessas palavras ignorar que a governação de qualquer país sempre reserva cargos de confiança, onde se digitam pessoas de grande estima e confiança para assumir aqueles lugares, mas nem por isso a discriminação do cidadão deve ser assim de forma expressa e chocante às pessoas.
Entendo que de alguma forma essa política é seguida não só pelo camarada secretario, mas por outros tantos dirigentes que não entendem os princípios protegidos na nossa Constituição nem compreendem o que seja a unidade nacional e a não discriminação do cidadão.
Camarada secretário, para a efetivação do plano quinquenal do governo, não é necessariamente imperativo que os quadros sejam todos do partido Frelimo. Pelo contrario isso pode impedir a transparência na administração. Basta que os quadros sejam competentes, comprometidos com a causa pública, honestos e obedientes à lei e à Constituição.

Tenho dito

*Jurista

Wednesday, May 18, 2005

Proposta

Estão a aparecer comentários a alguns textos que são, eles próprios, artigos importantes. E tenho medo que muitos leitores não tenham a curiosidade suficiente para andar à procura de comentários em textos de há vários dias.

A minha proposta, portanto, é que, se o comentário ultrapassa dois parágrafos, me seja mandado para o email para eu o colocar como post. Vai ter, de certo, muito mais leitores.

Machado

Tuesday, May 17, 2005

Tudo é Nada 3

Aqui vai o terceiro e último texto da série que o Quitério Langa me mandou, com o título geral Tudo é Nada:


TUDO É NADA

Sobre o combate à pobreza:

Estamos na continuidade da aplicação do programa que orientou a governação do país após as eleições gerais de 2004, o (PARPA), nas quais resultou mais uma vez a Frelimo como partido vencedor.
Nestas eleições elegeu-se o partido que nos últimos cinco anos aplicou a visão que orientou a vida dos moçambicanos, elegeu-se essa visão apresentada em forma de programa de governação, elegeu-se uma utopía, no sentido em que o sucesso desse programa é uma condição de possibilidade, ou seja, tanto pode alcançar o sucesso, como pode desmoronar num fracasso.

Ainda que nos refiramos à condição de possibilidade, o primeiro indicador do sucesso desta utopia é o facto de ter sido favoravelmente acolhida, de ter recebido um voto de confiança à luz dos resultados eleitorais. Esse é um elemento interessante porque poderá ser um indicador do nível de consciência crítica dos eleitores na escolha daquilo que julgam ser o melhor manifesto eleitoral apresentado pelos partidos concorrentes. Ainda assim, poderá revelar na mesma medida a falta dessa consciência se nos depararmos com situações em que mesmo ao nível das camadas eruditas haja um total desconhecimento do teor desse manifesto.

Ao nível das instituições do Estado, assim como das universidades, a sigla PARPA é sobejamente conhecida, mas isso por si não significa que se conheça o teor desse programa de governação. Como viabilizar então a aplicação desse programa? Como garantir que o mesmo tenha sucesso ao longo dos cinco anos de governação?

Para responder a estas questões o anterior governo do mesmo partido encontrou respostas práticas, tendo começado por institucionalizar os seus princípios básicos de acção, seguindo-se um processo de mobilização de entidades que concorressem para a sua aplicação. Mas o que isso significou em termos concretos? Tratando-se de um progrma cuja prioridade básica é a redução e alívio da pobreza absoluta, era necessário institucionalizar a pobreza, ou seja, tornar a pobreza um fenómeno de natureza oficial e de domínio público, com objectividade e validade científica. Para tal a pobreza devia obedecer a dois princípios fundamentais e cientificammente reconhecidos: empiricidade e conceptualização.

Hoje encontramos que ao nível das universidades como instituições de produção de conhecimento, e da instituição que as tutela, os programas de pesquisa com garantias de financiamento têm de estar orientados à redução e alívio da pobreza. Com uma garantia de legitimação científica, a objectividade da pobreza ultrapassou os limites da ciência e tornou-se um senso comúm cujo consenso a evidência não deixa margens de dúvida.

O discurso comúm fala da pobreza ao nível das suas contigências e carências do quotidiano, uma pobreza que segundo o discurso oficial emergiu da sua condição servil desde o período colonial. A pobreza que surge hoje do plano de governação e que alicerça a sua legitimação no discurso cientifico, envolve outras dimenções. A dimensão mais importante é de natureza política, ela surge da natureza do Estado que nos últimos 18 anos assumiu uma governação sob o legado da necessidade de se criar uma burguesia nacional, só que essa pretença burguesia sem espírito empreendedor adoptou como empreedimento fundamental para o seu sucesso, a apropriação do poder de Estado. Num Estado em que o Estado é alienável a um grupo com interesses particulares, rompe-se com todo o ideal de contrato social e de garantias que deste imanam os cidadãos, se é que ainda se pode falar de cidadania numa situação similar.

Um segundo modelo de pobreza emerge ao nível das igrejas que após a sua influência na conquista da paz, e perante uma sociedade mergulhada numa crise generalizada, encontram uma atmosfera propícia para levar de volta as ovelhas aos seus pastores. Sedentas de decadas de silenciamento pelos ventos da revolução, seguidos da “guerra de desestabilização”, resgatam os princípios do aggiornamento proclamado pelo Concílio Ecuménico Vaticano II, e procuram actualizar a sua posição perante o novo cenário político e social ao qual é imperioso que se dê uma resposta à altura da situação.

O aggiornamento de entre outros aspectos, estabelecia a necessidade de actualizar a igreja à modernidade, e pode-se observar como no mesmo sentido, o islão decide actualizar-se, ou seja modernizar o islão. Por volta da decada 70, com o agravar dos valores da secularização, um novo discurso religioso ganha forma, já não para se adaptar a religião à modernidade, mas para devolver à sociedade um fundamento sagrado. Proclamando uma modernidade falida, cujos desaires atribui-se ao afastamento de Deus, já não é pelos princípios do aggiornamento que se deve agir, mas por uma segunda evangelização, do mesmo modo o islão decide agir no mesmo processo, a islamização da modernidade.

A actualização da igreja no caso em análise, vai significar a sua adesão e um compromisso em primeiro lugar com o poder político, dentro do novo quadro político por forma a que não se veja cerceada de seguir com a sua missão. Na sequência do evoluir do discurso religioso à escala universal, a igreja em Moçambique adopta-o de imediato e, verificando a sua incapacidade em promover acções com uma eficácia económica real, o que faz é definir a pobreza como sendo resultado da corrupção que se apoderou da alma dos moçambicanos, sendo por isso necessário enveredar por uma primeira acção: Purificação das almas e entrega da sua sorte à vontade de Deus ou de Alá. A pobreza é então produto de decadas de descrença, pelo que se tornou necessário “evangelizar e islamizar a pobreza”. Sob este desígnio, é permitido ser-se pobre de dinheiro mas não de espírito.

Observa-se assim que os governos da Frlimo na sequência da aplicação do PARPA, conseguiram vincular com habilidade o seu projecto político, mas na mesma medida denunciam a vacuidade da sua utopia pela gestão repressiva que exercem sobre a pobreza, porquanto esta não é mais do que um recurso discursivo no programa de governação, e os pobres o seu objecto surgido de uma elaboração científico-religiosa com vista a persuadir o eleitorado sobre a sua evidente condição sub-humana de vida, ocultando todo um projecto político-económico que envolve o seu modelo de governação jamais superado.

Com uma garantia científica e divina, o PARPA encontra uma adesão do nível público ao privado, do nacional ao internacional, o que garante a sua legitimidade que aliás advém da sua vitória eleitoral.

É um debate em aberto.

Quitério Vitorino Langa

Monday, May 16, 2005

100 dias de Guebuza

Estive esta tarde na escola Anarkaly onde fui fazer uma palestra sobre os primeiros 100 dias do governo de Armando Guebuza.
Aqui vai o texto:

Pediram-me para vos vir hoje falar dos primeiros 100 dias do governo de Armando Guebuza.
Muitas vezes os primeiros 100 dias de um governo são uma indicação clara dos rumos que ele vai seguir durante todo o seu mandato. Pelas iniciativas tomadas, pelas decisões concretizadas, podemos estabelecer um padrão que nos permita prever o que vai acontecer nos anos seguintes.
Terá sido isto que levou a pedirem-me esta tarefa pouco cómoda.
E digo pouco cómoda porque aquilo a que estamos a assistir, nestes primeiros 100 dias do governo de Armando Guebuza, é uma serie de sinais apontando nas mais diversas direcções, sem uma aparente coerência. O que não é de estranhar muito num governo que pertence ao mesmo partido do governo anterior, mas foi eleito debaixo da palavra de ordem “A Força da Mudança”.
Logo aqui se adivinham os problemas.
Em qualquer parte do mundo quem propõe a mudança é a oposição. Quem está no poder propõe a continuidade.
No nosso caso, no entanto, é o partido no poder que declara que é a força que vai mudar precisamente aquilo que tem vindo a fazer há muitos anos.
E precisamos de compreender isto para podermos analisar os sinais contraditórios a que assistimos hoje.
Qual a razão desta proposta de mudança aparentemente absurda?
Eu creio que pode haver mais do que uma resposta mas que todas se resumem no facto de ser notório o descontentamento popular com o nivel de corrupção e criminalidade a que o país tinha chegado. Corrupção e criminalidade que partiam, muitas vezes, de altas figuras do Estado e do partido Frelimo. E, é claro, esse descontentamento popular podia traduzir-se numa derrota eleitoral em Dezembro passado.
Era preciso, portanto, dizer aos eleitores que “embora sejamos os mesmos, agora somos diferentes”. E foi isso que foi feito.
O sucesso desta estratégia é muito relativo. Embora os dirigentes da Frelimo afirmem, frequentemente, que se tratou de uma vitória esmagadora, a verdade é que ela foi tudo menos isso. A mais simples aritmética nos permite constatar que cerca de oitenta por cento do eleitorado não votou na Frelimo. A esmagadora maioria absteve-se e um terço dos que votaram fizeram-no na oposição.
E isto apesar de irregularidades eleitorais como não havia memória de terem acontecido entre nós desde a implantação do regime multi-partidário.
De acordo com a lei moçambicana o governo eleito é legítimo mas não se deve esquecer que tem uma base de apoio fraquíssima. A dizer a verdade só a ausência de uma oposição credível permitiu que ele fosse eleito.
É, portanto, neste contexto que Armando Guebuza aparece a propôr a mudança. Ele e os seus aliados dentro da Frelimo perceberam que continuar pelo mesmo caminho era o suicídio político do partido.
Por outro lado, aquilo que é costume chamar de “a Frelimo honesta” , e que se tinha afastado voluntariamente da política activa, deixando à solta os actores do desregramento que se vivia, parecem ter achado que as coisas tinham ido longe demais e que era tempo de colocar um travão no descalabro.
Tudo isto levou a que, no interior do partido, se fossem gerando consensos no sentido da saída de Joaquim Chissano da Presidência da República e, logo depois, do próprio partido. Saída que, pesem embora as aparências, esteve longe de ser voluntária, em qualquer dos dois casos.
Durante um curto período assistimos à coabitação de um Presidente da República com um diferente Presidente da Frelimo. E essa coabitação não terá sido facil, acelerando uma saída de Chissano da direcção do partido, que só se previa para o próximo congresso. As escolhas de Eduardo Mulembue e Manuel Tomé para presidir à Assembleia da República e para chefiar a bancada da Frelimo no parlamento foram tomadas por um Comité Político ainda dirigido por Chissano e, provavelmente, não terão agradado a Guebuza, que preferiria colocar nesses postos gente mais próxima de si.

Guebuza toma posse, reafirmando, em todos os seus pronunciamentos desde essa altura, a necessidade de se lutar contra a corrupção, a criminalidade, o burocratismo e o agora famoso “deixa-andar”.
Para o seu governo chamou uma grande quantidade de antigos governadores provinciais, gente de uma forma geral com bom nome junto da população e com um conhecimento profundo da realidade do país. Gente mais habituada ao matope das estradas rurais do que às alcatifas dos gabinetes de Maputo.
Os ministros que permaneceram do anterior executivo foram os menos afectados pelo descrédito e por acusações de corrupção.
Parece ter havido divergências profundas na escolha da Primeira Ministra. Diz-se que ela não era a escolha primária de Guebuza mas que foi obrigado a aceitá-la. Não posso garantir que isto seja verdade.
No Programa quinquenal do governo aparecem como Objectivos Prioritários:

. Redução da pobreza
- Promoção do crescimento económico rápido, sustentável e abrangente
- Criação de um ambiente favorável ao investimento;
- Incidência de acções na educação, saúde e desenvolvimento rural.

. Desenvolvimento económico e social
- Redução dos desiquilibrios regionais

. Unidade nacional, paz e justiça

. Valorização e promoção da cultura do trabalho, honestidade e prestação de contas.

. Combate à corrupção, burocratismo e à criminalidade.

. Reforço da soberania e da cooperação internacional

Estes são, na minha opinião, de facto os objectivos prioritários do nosso país neste momento. Há que verificar agora se e como são realizados.
Mal formado o governo começamos a ter notícia de actos de alguns novos dirigentes no sentido de meter na ordem as suas áreas. À frente deste processo apareceu o novo Ministro da Saúde, fazendo uma ofensiva de visitas surpresa a hospitais e centros de saúde para denunciar o mau estado das instalações e o mau tratamento dos doentes por parte de um pessoal sem brio e sem disciplina. Isto feito com a presença dos orgãos de informação para que o exemplo chegue a todo o lado.
Menos visivel actuou também o Ministro da Educação e, mais recentemente, a vice-Ministra da Agicultura. A iniciativa desta de retirar carros do Estado a quem a eles não tinha direito causou grande agitação no seu ministério e não só.
É interessante notar, no entanto, que logo no inicio desta ofensiva dos referidos dirigentes, o jornal Domingo tenha publicado um violento editorial, na sua primeira página, contra o que estava a acontecer.
Ora, como é sabido, o semanário Domingo é um porta-voz oficioso do partido no poder. O principal acessor da sua direcção, na realidade o verdadeiro ideólogo do jornal, é o jornalista Augusto de Carvalho que é, entre outras coisas, associado de Armando Guebuza numa das suas empresas.
O referido editorial é, por conseguinte, um sinal contraditório com os outros que o governo vinha dando até aí.
Outros sinais contraditórios chegam do parlamento: Um deles é o debate à volta da informação anual do Procurador Geral da república.
A informação, tal como vinha acontecendo nos anos anteriores, foi com pletamente vazia de interesse, mero cumprimento de uma penosa obrigação, em que se procurou o mais possivel retirar qualquer aspecto que pudesse, de perto ou de longe, tocar nos interesses dos cidadãos intocáveis. Os deputados da oposição, como deles se esperava, desfizeram o dito informe, denunciando as suas fraquezas. Mas, mesmo na bancada da Frelimo, surgiram vozes a pôr em causa aspectos fundamentais do documento. Salientaram-se, nesse aspecto, as intervenções do deputado Frangulis. Mas, quando a Renamo U.E. propôs uma moção de censura ao procurador Geral da república, a bancada maioritária opôs-se e não permitiu a sua aprovação.
Um fenómeno idêntico ocorreu, mais recentemente, com o debate e aprovação das Contas Gerais do Estado.
A Renamo U.E., que desta vez parece ter feito o seu trabalho de casa, demonstrou claramente as ilegalidades e outras irregularidades do documento, propondo a sua não aprovação. A bancada da Frelimo, no entanto, usando a sua maioria aprovou as Contas, sem nenhuns comentários a seu respeito.
E estas Contas referiam, mais uma vez, a situação dos fundos do Tesouro que foram emprestados a empresas de altos dirigentes do partido no poder, incluindo o actual Presidente da república e o marido da actual Primeira ministra, sem quaisquer garantias e sem que, na maioria dos casos, os seus beneficiários se mostrem interessados em iniciar os pagamentos.
Não parece, portanto, que a Força da Mudança tenha chegado ao Parlamento. A Frelimo parlamentar parece estar longe das prioridades da Frelimo governamental.
E mesmo ao nível do governo as coisas não parecem estar totalmente claras.
Enquanto acontecem ofensivas como aquelas de que já felei, continuamos a assistir a denúncias públicas de graves irregularidades e roubos de dinheiros públicos sem que pareça haver nenhuma acção para avaliar da verdade das denúncias e, caso elas se confirmem, punir os culpados.
Apesar de todo o discurso anti-corrupção apenas se assiste a medidas correctivas nos níveis baixos do aparelho de Estado. Nos níveis mais altos parece persistir o clima de impunidade que vigorava no governo anterior.
Parece, no entanto, que foi tomada uma medida que toca bem acima: Segundo o jornal Savana a verba prevista para a mansão onde irá viver Joaquim Chissano foi cortada para metade. A ser isto verdade, é uma medida que responde ao escândalo nacional que acompanhou a notícia de que o Orçamento de Estado previa o gasto de 2 milhões de dollares para construir tal residência.

Até aqui tenho estado a falar de mudanças, ou da sua ausência, essencialmente numa questão de atitude. De maneira de encarar a política. São mquestões que respondem à parte do programa sobre o combate à corrupção, ao burocratismo e à criminalidade.
Não tenho falado de questões de fundo, nomeadamente as que se referem às alineas económicas e sociais do Programa do Governo, até porque não vejo ainda sinais sobre como elas vão ser enfrentadas. É bom que os professores passem a ser mais disciplinados e cumpridores, mas isso não chega. Os problemas da Educação são muito mais profundos, com os estudantes a sairem diplomados pouco mais sabendo do que quando entraram na escola. O mesmo se pode dizer da área da saúde e de muitas outras.
E sobre essas políticas nada nos está a ser dito. Eventualmente só com o inicio da execução do novo Orçamento Geral do Estado poderemos ver os rumos que vão ser seguidos.
Nos debates parlamentares sobre o Programa Quinquenal e sobre o Plano Económico e Social para 2005 deputados de ambas as bancadas referiram que estes documentos eram demasiado vagos, não indicando prazos para a realização das diferentes actividades previstas nem, muitas vezes, os locais onde elas vão ser realizadas. Esta ausência de balizas claras vai dificultar o acompanhamento crítico da actividade do Governo.

Ao nível da política internacional talvez os sinais se mostrem mais coerentes. E estou a falar, especialmente, no relacionamento com o vizinho Zimbabué.
Era conhecida e patente a forma como o governo de Joaquim Chissano protegia e acarinhava o executivo de Robert Mugabe, fizesse este o que fizesse contra os seus cidadãos.
Já Guebuza parece estar a tomar uma posição mais distanciada em relação a Harare.
Quando realizou a sua primeira digressão pelos países da região, Guebuza foi a Angola, Botsuana e África do Sul mas não foi ao Zimbabué; quando Harare comemorou mais um aniversário da independência, o nosso Chefe de Estado não foi aos festejos, enviando Luisa Diogo para o representar; finalmente não se escusou de ir inaugurar a Feira de Bulauaio. No entanto, as conversações bilaterais com o governo de Mugabe, que estavam previstas, foram adiadas para o último dia da visita e acabaram por não se realizar.
Politica claramente distinta da de Joaquim Chissano que, estou certo, em todos estes casos teria corrido a Harare para mostrar a sua solidariedade a Mugabe.

Em resumo eu poderia dizer que o governo, ao longo destes primeiros 100 dias, tem mostrado vontade de voltar a colocar o país na ordem, disciplinando e operacionalizando o aparelho de Estado.
Este tipo de actuação está longe de ser suficiente para resolver os principais problemas do país. Pode, no entanto, ser importante para que o Governo possa dispor de uma máquina governativa mais funcional, mais eficiente, mais económica e não corrompida.
Usando uma omagem militar eu diria que o novo executivo está a pegar num exército desmotivado, indisciplinado, em que cada um só pensa nos seus próprios interesses e está a tentar transformar esse exército numa força unida e disciplinada, capaz de responder eficientemente às ordens do comando.
O que é que o Governo fará depois com essa força, que batalhas irá travar, será onde se joga o futuro do país.
Mas, para avaliar isso, 100 dias não chegam, nem pouco mais ou menos.