Alternativa
Tal como prometido aqui vai a proposta alternativa da Fátima Ribeiro ao modelo de ensino bilingue que está a ser experimentado no país:
UMA ALTERNATIVA AO ENSINO BILINGUE PROPOSTO PELA REFORMA CURRICULAR
Em artigo publicado recentemente no Jornal Savana e que se encontra disponível também no fórum Ideias para Debate[1] tentámos chamar a atenção para alguns dos grandes obstáculos que incontornavelmente se colocarão ao funcionamento do ensino bilingue em Moçambique nos moldes em que está a ser proposto pela reforma curricular. Patente ficou a nossa convicção de que, para além de não oferecer suficiente garantia de qualidade, tal modelo dificilmente se revelará viável e sustentável. Para o demonstrar, apontámos o exemplo dos livros que serão necessários só para as três classes do primeiro grau do ensino primário (EP1), e exclusivamente para as disciplinas de língua local, matemática e português (oral): mais de uma centena de livros diferentes, a serem produzidos, testados, revistos, impressos, distribuídos por todo o país, a custo zero para os alunos. Hoje, a meio do ano lectivo de 2005, e estando a funcionar um sistema único monolingue, com uma escassa dezena de livros para português e matemática no EP1, é preocupante o número de estudantes pelo país fora e até na capital que ainda não receberam os livros a que têm direito.[2] Não será este um evidente sinal de alarme para o sinuoso e duvidoso caminho por que estamos a enveredar?
Não nos iremos aqui deter novamente sobre o modelo já proposto pelo Ministério da Educação nem sobre os outros problemas que já tivemos ocasião de nele apontar. Centrar-nos-emos apenas em sugestões alternativas que pretendem partir do nosso país real: um país que necessita urgentemente de melhorar os resultados do sistema de educação e de valorizar as suas línguas nacionais, mas que dispõe de pouquíssimos recursos, sobretudo humanos, técnicos e logísticos, já que em termos financeiros a comunidade doadora parece, pelo menos por enquanto, disposta a cobrir as necessidades.
Algumas constatações e reflexões prévias
· Com três décadas de independência e cerca de 15 anos de intenções persistente e veementemente proclamadas no domínio do ensino bilingue, alguma discussão e experiências pontuais, Moçambique não oferece ainda, no seu sistema geral de educação, o ensino de línguas moçambicanas. Em busca do ideal, ficamo-nos pelo irreal. Por que não procurar algo mais simples, barato, viável e que possamos implementar até quase de imediato?
· No nosso país, a esperança de vida média à nascença ronda os 38 anos, tendendo ainda a baixar nos próximos tempos. No entanto, as crianças continuam a entrar para a escola aos 6-7 anos de idade. No chamado mundo desenvolvido, em que a esperança de vida chega a ultrapassar os 80 anos, vemos que se aposta cada vez mais no desenvolvimento da criança logo na primeira infância. Moçambique contrasta mesmo com Angola, que pretende ter 30% das crianças de 4-6 anos de idade no pré-primário até ao ano 2008. Entre nós, praticamente não se fala desse nível de ensino, não obstante o desenvolvimento da criança na primeira infância ser uma das áreas em que se concentram os esforços das Nações Unidas. Por que não valorizar mais aqueles dois ou três anos de vida da criança para que ela tenha uma melhor integração escolar, adquira a língua portuguesa e ganhe algum saber prático para a sua sobrevivência?
· Apesar do dramático futuro que temos pela frente, caracterizado por um sem-número de crianças órfãs e vulneráveis de muito tenra idade, continua o Estado o moçambicano a deixar quase exclusivamente para as comunidades e ONGs a responsabilidade por essas crianças. Se o mais certo é que a maior parte delas fiquem entregues a irmãos menores, idosos ou famílias de acolhimento já quase sem recursos para sobreviver, por que é que o Estado não comparticipa de forma mais responsável na sua educação e preparação para a vida futura?
Um modelo bilingue de transição no ensino pré-primário
Se devidamente adaptado às nossas realidades, o ensino pré-primário, além de preparar as crianças para um melhor início e desempenho no nível subsequente, poderia tornar-se um importante instrumento seja para a edificação de uma escola menos segregacionista que a que temos presentemente seja para um melhor enquadramento e protecção de crianças órfãs e vulneráveis.
É dado assente que as crianças aprendem línguas com muito maior facilidade que os adultos, e que quanto mais cedo têm contacto com outras línguas mais rápida e sólida se torna a aquisição. Sabemos também que para isso as crianças pequenas não necessitam de livros de leitura, nem de um conhecimento explícito de regras de ortografia, nem de explicações teóricas sobre a estrutura língua. Basta-lhes o contacto com a língua falada e a necessidade de a usarem com alguma regularidade, de preferência em situações normais de comunicação, que elas próprias se encarregam de descobrir vocábulos e regras, de construir o seu dicionário e a sua gramática pessoal, ampliando-os e aperfeiçoando-os num processo contínuo de tentativa-erro-correcção. Sendo assim, se ao sistema de ensino bilingue proposto pela reforma curricular se contrapusesse um modelo de transição a ser aplicado no nível pré-primário, muito se ficaria a ganhar em termos de tempo e de utilização de recursos em geral.
Conceber um ensino pré-primário viável significaria, em primeiro lugar, pensar-se na faixa etária dos 4-6 anos de idade sabendo à partida que nem todas as crianças poderiam ser contempladas. Frequentá-lo seria, numa primeira fase, um direito e uma obrigação unicamente das crianças que não soubessem falar português ou cujo conhecimento desta língua não fosse suficiente para entrarem na primeira classe.
Em segundo lugar, este ensino pré-primário implicaria um programa único e um pacote uniforme de meios didácticos de fácil replicação e manuseamento por todo o país. Seria um conjunto de meios impressos e jogos educativos, como cartazes, puzzles, cubos, cartas com “famílias” e outras, bonecos representando figuras humanas e animais, miniaturas de casas, e móveis, árvores, etc., bem como fichas com sugestões de exploração e directrizes para a elaboração de outros meios com materiais simples e passíveis de encontrar por toda a parte (papel, cartão, caixas de fósforos, tampas de refrigerantes, recipientes plásticos, caixotes, embalagens de cartão, restos de tecidos, elementos da natureza, etc.) Tal programa e tal pacote educativo – objecto de cuidadosa concepção a nível central – deveriam permitir que, numa primeira abordagem, a criança se exprimisse na sua língua materna, e depois, em cada área temática, numa linha de progressão minimamente definida, que o docente introduzisse e explorasse áreas vocabulares, aspectos gramaticais e situações práticas de utilização da língua portuguesa até à aquisição desta considerada suficiente para o início do ensino primário.
Para ministrar um programa do género, em vez de um professor, necessitar-se-ia de um educador, um agente de ensino a que, no futuro próximo, pouco mais se exigiria que o domínio da língua portuguesa para situações correntes do dia-a-dia, habilidade para lidar com crianças, vontade e disponibilidade para o fazer, para além do reconhecimento pela comunidade do seu bom fundo moral e profundo conhecimento oral da língua local. Para garantia de qualidade, seria também necessário apoio e fiscalização a serem prestados por estruturas do Ministério de Educação e Cultura pelo menos a nível distrital.
O principal objectivo deste sistema seria fazer com que as crianças, ao entrarem para a primeira classe, para além de usarem fluentemente a sua língua materna, tivessem um melhor domínio da língua portuguesa. Assim, o português poderia continuar a ser a língua veicular de todas as disciplinas no EP1, acreditando nós numa acentuada redução dos problemas de integração na escola, assim como das taxas de retenção e desistência que caracterizam a situação actual. Por outro lado, o capital que hoje representa o domínio da língua portuguesa estaria melhor distribuído, contribuindo para uma participação menos discriminatória de todas as crianças.
Presença das línguas locais e outros aspectos culturais moçambicanos já possível no ensino primário de hoje
Introduzir-se-ia, no entanto, desde já e em todas as escolas e todas as classes do ensino primário, em regime obrigatório, uma disciplina de Língua e Cultura Local, com duas ou três horas semanais, mesmo que para isso fosse necessário utilizarem-se as manhãs de sábado. Essa disciplina seria pensada como componente local do currículo, esta já contemplada no currículo oficialmente proposto. Elementos da comunidade devidamente reconhecidos como pessoas idóneas e responsáveis seriam convidados a ir regularmente à escola contar histórias, ensinar canções, provérbios, adivinhas, jogos, danças, receitas de cozinha, aspectos da história local, etc., nas línguas locais, contando-se com a possibilidade de durante as aulas se recorrer a tradução para a língua portuguesa. Todos os alunos, incluindo os de português como língua materna, frequentariam a disciplina, sendo avaliados pela participação nas aulas, pelo interesse demonstrado e pelos progressos alcançados no conhecimento oral da língua local.
Já para o ensino secundário, dado o número muito mais reduzido de alunos e turmas, e consequentemente de professores, livros, estruturas de apoio, etc. que os necessários para o ensino primário, seria possível pensar-se com mais realismo no ensino da escrita das línguas locais, na reflexão sobre a gramática dessas línguas e até no estudo de obras literárias nelas produzidas. Haveria, assim, da oitava classe em diante, uma disciplina curricular de língua local, com peso e avaliação idênticos aos das restantes disciplinas, a ser obrigatoriamente frequentada por todas as crianças. A sua introdução a nível nacional processar-se-ia gradualmente, numa nova classe por ano lectivo.
Por não ser condição de base nem interferir com qualquer outra matéria, a disciplina de língua e cultura local nos moldes aqui propostos para o ensino primário poderia ser introduzida nesse nível já no próximo ano lectivo, concebida como parte do currículo local, em todas as escolas primárias do sistema único actualmente em vigor, sem prejuízo dos outros aspectos que caracterizam esse sistema. Quanto aos níveis pré-primário e secundário, aguardariam a concepção de programas e a elaboração de materiais.
Considerações finais
É urgente que se passe das palavras à acção. É fundamental que as línguas moçambicanas tenham quanto antes pelo menos algum do espaço que lhes é legitimamente devido no nosso sistema de ensino geral. É uma questão de identidade e orgulho nacional que cada moçambicano, mesmo os de língua materna portuguesa, conheça, além desta, pelo menos uma língua intrinsecamente moçambicana. Não só advogamos a introdução imediata das línguas moçambicanas, como também defendemos a frequência obrigatória, por todas as crianças, nos níveis primário e secundário, de uma disciplina de língua local. Criticamos, isso sim, um sistema de ensino bilingue que à partida se apresenta extremamente vulnerável, tremendamente consumidor dos poucos recursos que possuímos (já de si escassos para a erradicação da pobreza e para a luta contra o HIV/SIDA) e possivelmente conducente a uma situação de aproveitamento escolar real ainda pior que a que temos presentemente.
Nos primeiros anos de independência, movidos pela euforia do momento e a pretensão de cortar radicalmente o cordão umbilical com a pátria colonial, quisemos “escangalhar” o aparelho de Estado. Os resultados ainda estão à vista. Agora, com o entusiasmo global da multiplicidade cultural e linguística e a euforia dos fundos existentes, damos a sensação de querer fazer o mesmo ao sistema de educação. Mas se até os principais agentes do modelo - os professores envolvidos, milhares que são! - não saberão sequer escrever devidamente as línguas moçambicanas que vão ensinar aos meninos e meninas das primeiras classes, é pelo telhado que estamos a iniciar a construção. Em vez de tudo desmantelar, não seria mais prudente fazer-se uma transição a partir do que existe, até que tenhamos condições para conceber e implementar com mais qualidade e segurança um sistema totalmente novo?
[1] Ensino Bbilingue: Uma aposta viável? in Savana, 18.02.2005 e Ensino bilingue da reforma curricular: uma aposta viável?, in http://ideiasdebate.blogspot.com/. Ver também Português, Língua Veicular: Algumas Reflexões sobre Modelos de Ensino (ou Carta Aberta por um Moçambique Estável e Sustentável), in Savana, 28.12.2001.
[2] Assunto recorrentemente tratado na imprensa nos últimos meses, com províncias e escolas reclamando os livros que ainda não foram recebidos e dando a conhecer a necessidade de soluções locais como a partilha de livros pelos alunos ou a utilização de livros do antigo currículo.
UMA ALTERNATIVA AO ENSINO BILINGUE PROPOSTO PELA REFORMA CURRICULAR
Em artigo publicado recentemente no Jornal Savana e que se encontra disponível também no fórum Ideias para Debate[1] tentámos chamar a atenção para alguns dos grandes obstáculos que incontornavelmente se colocarão ao funcionamento do ensino bilingue em Moçambique nos moldes em que está a ser proposto pela reforma curricular. Patente ficou a nossa convicção de que, para além de não oferecer suficiente garantia de qualidade, tal modelo dificilmente se revelará viável e sustentável. Para o demonstrar, apontámos o exemplo dos livros que serão necessários só para as três classes do primeiro grau do ensino primário (EP1), e exclusivamente para as disciplinas de língua local, matemática e português (oral): mais de uma centena de livros diferentes, a serem produzidos, testados, revistos, impressos, distribuídos por todo o país, a custo zero para os alunos. Hoje, a meio do ano lectivo de 2005, e estando a funcionar um sistema único monolingue, com uma escassa dezena de livros para português e matemática no EP1, é preocupante o número de estudantes pelo país fora e até na capital que ainda não receberam os livros a que têm direito.[2] Não será este um evidente sinal de alarme para o sinuoso e duvidoso caminho por que estamos a enveredar?
Não nos iremos aqui deter novamente sobre o modelo já proposto pelo Ministério da Educação nem sobre os outros problemas que já tivemos ocasião de nele apontar. Centrar-nos-emos apenas em sugestões alternativas que pretendem partir do nosso país real: um país que necessita urgentemente de melhorar os resultados do sistema de educação e de valorizar as suas línguas nacionais, mas que dispõe de pouquíssimos recursos, sobretudo humanos, técnicos e logísticos, já que em termos financeiros a comunidade doadora parece, pelo menos por enquanto, disposta a cobrir as necessidades.
Algumas constatações e reflexões prévias
· Com três décadas de independência e cerca de 15 anos de intenções persistente e veementemente proclamadas no domínio do ensino bilingue, alguma discussão e experiências pontuais, Moçambique não oferece ainda, no seu sistema geral de educação, o ensino de línguas moçambicanas. Em busca do ideal, ficamo-nos pelo irreal. Por que não procurar algo mais simples, barato, viável e que possamos implementar até quase de imediato?
· No nosso país, a esperança de vida média à nascença ronda os 38 anos, tendendo ainda a baixar nos próximos tempos. No entanto, as crianças continuam a entrar para a escola aos 6-7 anos de idade. No chamado mundo desenvolvido, em que a esperança de vida chega a ultrapassar os 80 anos, vemos que se aposta cada vez mais no desenvolvimento da criança logo na primeira infância. Moçambique contrasta mesmo com Angola, que pretende ter 30% das crianças de 4-6 anos de idade no pré-primário até ao ano 2008. Entre nós, praticamente não se fala desse nível de ensino, não obstante o desenvolvimento da criança na primeira infância ser uma das áreas em que se concentram os esforços das Nações Unidas. Por que não valorizar mais aqueles dois ou três anos de vida da criança para que ela tenha uma melhor integração escolar, adquira a língua portuguesa e ganhe algum saber prático para a sua sobrevivência?
· Apesar do dramático futuro que temos pela frente, caracterizado por um sem-número de crianças órfãs e vulneráveis de muito tenra idade, continua o Estado o moçambicano a deixar quase exclusivamente para as comunidades e ONGs a responsabilidade por essas crianças. Se o mais certo é que a maior parte delas fiquem entregues a irmãos menores, idosos ou famílias de acolhimento já quase sem recursos para sobreviver, por que é que o Estado não comparticipa de forma mais responsável na sua educação e preparação para a vida futura?
Um modelo bilingue de transição no ensino pré-primário
Se devidamente adaptado às nossas realidades, o ensino pré-primário, além de preparar as crianças para um melhor início e desempenho no nível subsequente, poderia tornar-se um importante instrumento seja para a edificação de uma escola menos segregacionista que a que temos presentemente seja para um melhor enquadramento e protecção de crianças órfãs e vulneráveis.
É dado assente que as crianças aprendem línguas com muito maior facilidade que os adultos, e que quanto mais cedo têm contacto com outras línguas mais rápida e sólida se torna a aquisição. Sabemos também que para isso as crianças pequenas não necessitam de livros de leitura, nem de um conhecimento explícito de regras de ortografia, nem de explicações teóricas sobre a estrutura língua. Basta-lhes o contacto com a língua falada e a necessidade de a usarem com alguma regularidade, de preferência em situações normais de comunicação, que elas próprias se encarregam de descobrir vocábulos e regras, de construir o seu dicionário e a sua gramática pessoal, ampliando-os e aperfeiçoando-os num processo contínuo de tentativa-erro-correcção. Sendo assim, se ao sistema de ensino bilingue proposto pela reforma curricular se contrapusesse um modelo de transição a ser aplicado no nível pré-primário, muito se ficaria a ganhar em termos de tempo e de utilização de recursos em geral.
Conceber um ensino pré-primário viável significaria, em primeiro lugar, pensar-se na faixa etária dos 4-6 anos de idade sabendo à partida que nem todas as crianças poderiam ser contempladas. Frequentá-lo seria, numa primeira fase, um direito e uma obrigação unicamente das crianças que não soubessem falar português ou cujo conhecimento desta língua não fosse suficiente para entrarem na primeira classe.
Em segundo lugar, este ensino pré-primário implicaria um programa único e um pacote uniforme de meios didácticos de fácil replicação e manuseamento por todo o país. Seria um conjunto de meios impressos e jogos educativos, como cartazes, puzzles, cubos, cartas com “famílias” e outras, bonecos representando figuras humanas e animais, miniaturas de casas, e móveis, árvores, etc., bem como fichas com sugestões de exploração e directrizes para a elaboração de outros meios com materiais simples e passíveis de encontrar por toda a parte (papel, cartão, caixas de fósforos, tampas de refrigerantes, recipientes plásticos, caixotes, embalagens de cartão, restos de tecidos, elementos da natureza, etc.) Tal programa e tal pacote educativo – objecto de cuidadosa concepção a nível central – deveriam permitir que, numa primeira abordagem, a criança se exprimisse na sua língua materna, e depois, em cada área temática, numa linha de progressão minimamente definida, que o docente introduzisse e explorasse áreas vocabulares, aspectos gramaticais e situações práticas de utilização da língua portuguesa até à aquisição desta considerada suficiente para o início do ensino primário.
Para ministrar um programa do género, em vez de um professor, necessitar-se-ia de um educador, um agente de ensino a que, no futuro próximo, pouco mais se exigiria que o domínio da língua portuguesa para situações correntes do dia-a-dia, habilidade para lidar com crianças, vontade e disponibilidade para o fazer, para além do reconhecimento pela comunidade do seu bom fundo moral e profundo conhecimento oral da língua local. Para garantia de qualidade, seria também necessário apoio e fiscalização a serem prestados por estruturas do Ministério de Educação e Cultura pelo menos a nível distrital.
O principal objectivo deste sistema seria fazer com que as crianças, ao entrarem para a primeira classe, para além de usarem fluentemente a sua língua materna, tivessem um melhor domínio da língua portuguesa. Assim, o português poderia continuar a ser a língua veicular de todas as disciplinas no EP1, acreditando nós numa acentuada redução dos problemas de integração na escola, assim como das taxas de retenção e desistência que caracterizam a situação actual. Por outro lado, o capital que hoje representa o domínio da língua portuguesa estaria melhor distribuído, contribuindo para uma participação menos discriminatória de todas as crianças.
Presença das línguas locais e outros aspectos culturais moçambicanos já possível no ensino primário de hoje
Introduzir-se-ia, no entanto, desde já e em todas as escolas e todas as classes do ensino primário, em regime obrigatório, uma disciplina de Língua e Cultura Local, com duas ou três horas semanais, mesmo que para isso fosse necessário utilizarem-se as manhãs de sábado. Essa disciplina seria pensada como componente local do currículo, esta já contemplada no currículo oficialmente proposto. Elementos da comunidade devidamente reconhecidos como pessoas idóneas e responsáveis seriam convidados a ir regularmente à escola contar histórias, ensinar canções, provérbios, adivinhas, jogos, danças, receitas de cozinha, aspectos da história local, etc., nas línguas locais, contando-se com a possibilidade de durante as aulas se recorrer a tradução para a língua portuguesa. Todos os alunos, incluindo os de português como língua materna, frequentariam a disciplina, sendo avaliados pela participação nas aulas, pelo interesse demonstrado e pelos progressos alcançados no conhecimento oral da língua local.
Já para o ensino secundário, dado o número muito mais reduzido de alunos e turmas, e consequentemente de professores, livros, estruturas de apoio, etc. que os necessários para o ensino primário, seria possível pensar-se com mais realismo no ensino da escrita das línguas locais, na reflexão sobre a gramática dessas línguas e até no estudo de obras literárias nelas produzidas. Haveria, assim, da oitava classe em diante, uma disciplina curricular de língua local, com peso e avaliação idênticos aos das restantes disciplinas, a ser obrigatoriamente frequentada por todas as crianças. A sua introdução a nível nacional processar-se-ia gradualmente, numa nova classe por ano lectivo.
Por não ser condição de base nem interferir com qualquer outra matéria, a disciplina de língua e cultura local nos moldes aqui propostos para o ensino primário poderia ser introduzida nesse nível já no próximo ano lectivo, concebida como parte do currículo local, em todas as escolas primárias do sistema único actualmente em vigor, sem prejuízo dos outros aspectos que caracterizam esse sistema. Quanto aos níveis pré-primário e secundário, aguardariam a concepção de programas e a elaboração de materiais.
Considerações finais
É urgente que se passe das palavras à acção. É fundamental que as línguas moçambicanas tenham quanto antes pelo menos algum do espaço que lhes é legitimamente devido no nosso sistema de ensino geral. É uma questão de identidade e orgulho nacional que cada moçambicano, mesmo os de língua materna portuguesa, conheça, além desta, pelo menos uma língua intrinsecamente moçambicana. Não só advogamos a introdução imediata das línguas moçambicanas, como também defendemos a frequência obrigatória, por todas as crianças, nos níveis primário e secundário, de uma disciplina de língua local. Criticamos, isso sim, um sistema de ensino bilingue que à partida se apresenta extremamente vulnerável, tremendamente consumidor dos poucos recursos que possuímos (já de si escassos para a erradicação da pobreza e para a luta contra o HIV/SIDA) e possivelmente conducente a uma situação de aproveitamento escolar real ainda pior que a que temos presentemente.
Nos primeiros anos de independência, movidos pela euforia do momento e a pretensão de cortar radicalmente o cordão umbilical com a pátria colonial, quisemos “escangalhar” o aparelho de Estado. Os resultados ainda estão à vista. Agora, com o entusiasmo global da multiplicidade cultural e linguística e a euforia dos fundos existentes, damos a sensação de querer fazer o mesmo ao sistema de educação. Mas se até os principais agentes do modelo - os professores envolvidos, milhares que são! - não saberão sequer escrever devidamente as línguas moçambicanas que vão ensinar aos meninos e meninas das primeiras classes, é pelo telhado que estamos a iniciar a construção. Em vez de tudo desmantelar, não seria mais prudente fazer-se uma transição a partir do que existe, até que tenhamos condições para conceber e implementar com mais qualidade e segurança um sistema totalmente novo?
[1] Ensino Bbilingue: Uma aposta viável? in Savana, 18.02.2005 e Ensino bilingue da reforma curricular: uma aposta viável?, in http://ideiasdebate.blogspot.com/. Ver também Português, Língua Veicular: Algumas Reflexões sobre Modelos de Ensino (ou Carta Aberta por um Moçambique Estável e Sustentável), in Savana, 28.12.2001.
[2] Assunto recorrentemente tratado na imprensa nos últimos meses, com províncias e escolas reclamando os livros que ainda não foram recebidos e dando a conhecer a necessidade de soluções locais como a partilha de livros pelos alunos ou a utilização de livros do antigo currículo.
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