Moçambicanidade
Recebi já há uns dias (peço desculpa ao autor pela minha desorganização) o texto de Emidio Gune que se segue.
Entretanto volto a apelar aos participantes neste blog para "aligeirarem" os seus textos de forma a serem acessiveis a pessoas que não têm a mesma preparação académica.
Textos carregados de citações têm valor na universidade mas tornam-se de dificil leitura num blog como este que se destina a um público mais diversificado.
Aqui vai o texto:
Diálogos a Partir da Matola: Pelos Direitos de ser moçambiques, em moçambiques, por Moçambique
O texto que se segue foi originalmente escrito e apresentado no âmbito dos Seminários de Arqueologia e Antropologia do Departamento do Mesmo nome, da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Agradeço desde já a paciência pela anarquia metodológica.
Começo por constatar que falar de Moçambique como demarcação física, de onde provém moçambicanos é uma certeza simples e consensual. Basta olhar o mapa e lá descobrimos esse lugar, no qual vive-se constitucionalmente um Estado democrático desde os anos 90.
Recuo no tempo para ler Severino Ngoenha (1998) na colectânea de textos Identidade, Moçambicanidade, Moçambicanizaçäo, sob direcçäo do prof. Carlos Serra, e eis que sob o título Identidade mocambicana: já e ainda näo, Severino Ngoenha enfatiza que a aglutinaçäo de contextos culturais diversos, pré-existentes a Berlin geraram Moçambique, e que no pós independência essas diversidades foram reprimidas na construçäo do homem novo, näo tendo contudo desaparecido. Este posicionamento surge quase 25 anos após Jacques Soustelle (1973) perguntar na sua carta aberta as vítimas da descolonizaçäo, o que mudou com as independências em termos de bem estar e participaçäo?
Visitei entäo Olívia Maria Faife (2005), no seu Moçambique: as metamorfoses da Cidadania ou em busca de uma cidadania?, que trazendo Marshall (1967) divide o conceito de cidadania em três partes, a saber o civil, o político e o social. Faife vai ainda buscar Turner (1990) para abordar duas perspectivas de cidadania, nomeadamente a cidadania passiva, resultante da obtenção da mesma, via Estado, com o Estado a gerir o espaço público, mantendo a iniciativa de mudança e incorporando aos poucos os cidadãos à medida que vai ampliando os seus direitos. De forma complementar a cidadania activa resulta de uma luta pelos direitos civis, políticos e sociais.
Foi com este substracto que ia entrar para o debate sobre cidadania e a construçäo da moçambicanidade. Aconteceu que no dia 21 de Março o jornal Notícias dava conta da mudança do nome da Escola Secundária da Matola, derivada de razöes patrióticas, necessidade de dar nome a escola, história universal, condicionamento de financiamento e por terem sido consultadas as comunidades da Matola.
Partilho entäo as minhas reservas às razões evocadas, num fórum online onde coloco questões como: Quando foi convocada e por que meios publicitada a referida consulta, onde se realizou, quem participou e em representaçäo de quem, e onde poderiam ser consultadas as actas da mesma?
Longe de virem respostas as questões que eu colocava, vieram mais justificações contra o nome da Escola Secundária da Matola, nomeadamente “vocês meninos tem que aprender com a história universal”, de seguida apareceu um artigo num jornal dando lições de história universal e contra o nome da Escola Secundária da Matola, complementado por outro artigo de outro jornal que perguntava se seria importante abordar essa questão. Mais recentemente complementada por uma autoridade da área da cultura?, defendia ser apenas uma mudança de nome da Escola e nada mais. Esta era a dimensão teórica enfatizando consulta e participação, corporizando então a democracia vivida no país, contudo na prática iam irradiando testemunhos de não haver indivíduos consultados na Matola.
Aqui começava a reaparecer a diversidade de moçambiques dentro do Moçambique, na medida em que sobre o mesmo assunto pessoas divergiam em foma bipolar. Este aspecto fez-me rever minha intenção inicial passando então a focalizar as seguintes questões: como é que os diversos contextos de sobrevivência dialogam neste Moçambique, qual a participação desses moçambicanos desses e nesses diversos moçambiques na tomada de decisões sobre reconstituções que lhes dizem respeito apenas a si enquanto contexto particular, que competências discursivas são mobilizadas no processo e que alternativas podem ser mapeadas?
Para complementar, sendo o exercício da participação um pressuposto fundamental da democracia, e tendo em conta que se trata de um assunto que impacta numa particularidade de Moçambique, urge questionar quem tem direito de decidir se o assunto é importante para ser discutido? Ou ainda como são acauteladas questões que sendo referentes a lugares particulares de Moçambique, têm que ser decididas por decisores alheios a essas mesmas particularidades?
Com base nos elementos discursivos contra o nome da Escola Secundária da Matola, e de modo a tornar possível uma análise sistematizada para procurar algumas possíveis respostas às questões colocadas, construí então uma perspectiva ideal típica[1] que é contra o nome da Escola Secundária da Matola. A referida posição demonstra uma participação a nível discursivo, reduz aspectos identitários apenas ao seu domínio simbólico, procede a uma deificação e impõe uma universalidade de uma história, ao estilo evolucionista unilinear e de forma complementar opera a naturalização da lei, impondo alterações a contextos culturais alheios, por via de decretos e ostracização.
Partia de um ponto triplamente instável e frágil para a presente reflexão. A primeira é que, se a discussão em torno da mudança de nome da escola secundária da Matola veio alargar o meu propósito analítico inicial, ela fragilizou-a duplamente. Por um lado porque a recolha de dados no terreno durou apenas 2 semanas, obrigado-me a redifinir o formato inicial e por outro lado, por não ter podido explorar com mais profundidade o assunto. Contudo, a essas fragilidades juntaram-se factores como a discussão do assunto no programa Matolinhas, da Rádio Cidade, no Fórum Mocambiqueonline, fornecendo-me, reacções de interlocutores, amigos, colegas, participantes do debate de apresentação do texto original, que vieram enriquecer a reflexão, alargando por um lado os argumentos que incialmente propunha apresentar e de forma complemetar trazendo posições diferentes e até contrárias as minhas. Deste modo o imprevisível enriqueceu, ganhando o texto mais conteúdo, profundidade e intensidade.
A segunda fragilidade e instabilidade reside no facto de não ter acesso as razões oficiais de forma oficial, para a “simples mudança simbólica” contra o nome da Escola Secundária da Matola, como se posiacionara certo cidadão dum dos moçambiques, que não a Matola.
Por sua vez a terceira prende-se com o facto de Thomas Kuhn, com a sua Estrutura das Revoluções Científicas, e Bruyne et al (1977). no seu, Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: Os Polos da Prática Metodológica, quase terem-me feito desistir de escrever, ao lembrarem-me que a “produção da verdade ou conhecimento” deriva mais da sociabilidade e do que “os que estão no poder” quiserem que seja e menos da clareza, coerência ou demonstrabilidade do argumento, ou seja mesmo que seja indemonstrável se o poder quiser ele fica verdade.
Mesmo assim, decidi então dialogar, com os contra o nome da Escola Secundária da Matola. Para o efeito, submeti os argumentos que aqueles colocam a um diálogo mediatizado por autores que abordam aspectos relativos a contextos culturais, aspectos identitários, história e cidadania. Por fim decidi dialogar com todos potenciais interlocutores sobre o assunto, porque no limiar da minha desistência Hannah Ahrendt, no seu Poder e a Crítica à Tradição, animou-me ao recorda-me que “Estar no poder” significa “estar autorizado” pelo grupo a falar em seu nome... neste caso estar autorizado pelos eleitores, Municipais da Matola e das eleições gerais, dos quais os da Matola também são parte,,, ai recomponho-me parcialmente. Parcialmente porque a explicação do porque estar contra o nome de Escola Secundária da Matola, ainda não chegou ao “nosso povo”[2], onde todos esses com nomes de indígenas e outros que não são da história universal, estão à semelhança do Matsolo, condenados a ser enterrados bem fundo de seus túmulos[3], não só materiais bem como simbólicos e jamais serem discutidos neste contexto que se chama mundo, ou reduzir possibilidade de sua discutibilidade, porque alguém de outro moçambique que näo Matola assim acha, contra a auto-estima dos que são da Matola ou que nela têm um marcador identitário que dá sentido e torna possível suas vidas.
Como forma de proceder a objectivação das questões colocadas, isolei o caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola e tomei-o como lugar etnográfico, para confrontá-lo com teorizações sobre contextos culturais, marcadores identitários, história e cidadania. Para a sua operacionalização recorri a descrição em presença e a observação participante, usando como instrumentos, entrevistas semi-estruturadas, baseadas num guião da minha autoria e outro produzido pelo programa Matolinhas, que resultou em intervenções dos ouvintes do programa. Ajuntei a isso, histórias de vida e trajectórias pessoais, consultei jornais, e fóruns online, nomeadamente o moçambiqueonline e o blog ideias para debate. Sendo um exercício exploratório há aspectos por alinhavar nomeadamente a necessidade de aprofundar trajectórias dos discursantes contra o nome da Escola Secundária da Matola, e todos outros dos quais não me apercebi, mas que o diálogo com outros interlocutores permitirá aferir, como já aconteceu durante a apresentação no Seminário já referido.
Propus-me entäo a exercitar uma antropologia que estuda problemas de humanos ao estilo de Mariza Peirano (1995), no seu A Favor da Etnografia, e não povos, nem primitivos, como Jean Copans (1971) sugeriu e não cumpriu, ao trazer exemplos etnográficos apenas de contextos primitivos, no seu Antropologia Ciência das Sociedades Primitivas? mas assumindo-o como um projecto político como o mesmo Jean Copans (1974) sugere, em Críticas e Políticas da Antropologia. Faço por fim eco a Stanley Tambiah (2002) que associa vida e profissäo de antropólogo, no seu, Edmund Leach. An Anthropological Life, recolocando que o critério fundamental de definiçäo do objecto de estudo da disciplina näo passa necessariamente por um deslocamento histórico ou geográfico à procura dos outros, podendo por isso o objecto da antropologia ser construído e analisado em nosso contexto do dia a dia. Faço então uma antropologia fraca, no sentido de assumí-la como uma construção aproximativa entre contextos culturais diversos, fraca porque o humano não alcança a perfeiçäo, apenas reduz ciclicamente a imperfeição.
Dialogando com autores sobre cultura, cheguei ao conceito contexto cultural dada a inadequação do conceito de cultura de Tylor, que ata cultura a sociedade, tomada como lugar geográfico. Ora desenvolvimentos analíticos recentes permitem-nos perceber que indivíduos podem partilhar até espaços geográficos comuns mas terem diversos substractos culturais e de forma contrária estarem em espaços geográficos diferentes e partilhar substractos culturais. Enfatizando a distância entre contextos culturais dizia alguém “usar a Withbank para ir ver 10 dos 30 terrenos que tem, quando nenhum teu filho ou alguém que te é próximo, estudou na Secundária, comeu Matswincha, nadou no Matola, jogou no Amparo, ou ter uma mansão na Matola, näo é suficiente para vibrar com Matola e tudo que ela tem”.
Fui buscar entäo Peter Brown (1998) no seu, Understanding and Applying Medical Anthropology, que enquadra a cultura numa esfera interactiva entre os domínios material, de relações entre indivíduos e do simbólico, visando assegurar sua sobrevivência. A este autor, associei Melford Spiro (1998) no seu, Algumas Reflexões Sobre o Determinismo e o Relativismo Culturais com Especial Referência à Emoção e à Razão, que sugere que para que consideremos proposições culturais, estas têm que estar alicerçadas mais numa experiência colectiva e menos na individual, têm que ser resultantes de uma tradição enquanto recurso histórico legitimacional assumido por determinado conjunto de indivíduos e que sejam enculturadas, ou seja interiorizados e assumidas como crenças. A este conjunto de interações designei então de contexto cultural, tomado como um lugar imaginado no qual os indivíduos visam assegurar a sua sobrevivência, intervindo sobre um domínio material, de forma relacional com outros indivíduos por intermédio de símbolos sustentados por crenças públicas e tradicionais.
Neste contexto, os símbolos enquadram-se numa ampla esfera de mediatizaçäo e significaçäo das estratégias de sobrevivência dos indivíduos, não sendo portanto meros símbolos. A redução de aspectos simbólicos a meros símbolos, deriva de situações semelhantes à seguinte: lendo a Bíblia, quando esta aborda a questão de ser "puro como a lã das ovelhas" perguntaremos aqui em Moçambique, que pureza? Porque as nossas ovelhas são castanhas, pretas, cinzentas, e mesmo que sejam brancas devido à areia a brancura não brilha, diremos então é puro simbolismo e pode não fazer sentido para nós, mas uma incursão para os lados de onde a Bíblia veio, sentir, visualizar, tocar, ajuda a perceber o significado da “pureza da lã” ao notar que a sua brancura até brilha.
Isto leva-nos a percepçäo de os símbolos não terem uma razäo em si, mas buscarem representar contextos particulares mais amplos, sendo que a sua percepção passa por reenquadrá-los nos seus contextos culturais de referência. Nestes os símbolos servem de marcadores identitários, ao tornarem-se nos elementos aos quais os indivíduos recorrem para inspirar, manejar e legitimar, visando a sua inserção e sobrevivência desde o substracto particular até ao global, a tal ponto que ouvimos uma mãe dizer: “quando meu filho não quer estudar eu digo para ele, tens que estudar para ires para a Secundária da Matola, e ele esforça-se e repete a motivação aos amigos” ou “Eu sou engenheiro hoje porque fiz primeiro o ensino secundário e não foi nessas outras... ou esses nomes estranhos que nos querem trazer... foi na Secundária da Matola”.
Os contextos culturais, bem como os marcadores identitários são também lugares provisórios porque abertos a transformações, sejam de origem interna ao contexto, derivados de invenções internas, ou exógenas porque derivadas de origens externas ao contexto. De forma complementar podem ser pacíficas ou violentas, ou se preferirmos podem ser de forma democrática ou autoritária, e se nalgum momento o autoritarismo pode ser tolerado noutros não, Dizia um ancião, “antes a escola tinha nome de um colono. Mudaram, foi bom porque começamos a acreditar em nós, afinal tinhamos exemplos de defesa de Moçambique e mesmo quando eramos bombardeados pelos “Boers” Matola inspirava-nos a resistir, agora que brincadeira é essa virem e mudarem?”.
Os referidos marcadores indentitários, säo constituídos com recurso á história, e como refere Jerome Brumer (1991) no seu The Narrative Construction of Reality. Critical Enquiry, e opondo-se a ideia de uma história natural, este autor refere que nenhum conhecimento é neutro. Sendo assim a historia será sempre então a legitimaçäo no hoje visando colher benefícios, seleccionando no ontem, que pode nunca ter existido pelo menos tal e qual se propala, os ingredientes para dar sentido ao hoje, ou seja silencia-se acontecimentos e amplia-se outros, falsificando esse passado para dar lugar à história. Essa falsificação pode derivar de factores propositados ou de limitações técnico metodológico e contextuais, incluindo vontades políticas. Matola é uma construção histórica, tomado como marcador identitário e que dá sentido a vida de moçambicanos da Matola ou do contexto cultural Matola. Dizia um dos ouvintes do Matolinhas “Quando nós fomos a Itália jogar fomos como equipa da Secundária da Matola, e deixamos lá o nosso Matola bem vincado”, e em tom de indignação “quando eu for buscar meu certificado é para aparecer um nome que não me diz nada?”
Referir que, os condimentos materiais, de relações e simbólicos, de dado contexto cultural não derivam necessariamente da construção de seus integrantes. Contudo mesmo nesses casos estes apropriam-se desses elementos enquanto marcadores identitários que lhes estão disponíveis e assumem-nos, ressignificando-os para dar sentido às suas estratégias de sobrevivência enquanto indivíduos ou grupos. Isto leva a que mesmo que determinado indivíduo tenha forjado os condimentos de dado contexto cultural, a partir do momento em que os indivíduos deste apropriam-se deles, os referidos condimentos passam a ser marcadores identitários desses contextos, transcendendo o mero simbolismo, deixando de estar sobre controle apenas dos que os construíram. No caso do Matola se o grosso dos indivíduos deste contexto não o forjou enquanto marcador identitário eles apropriaram-se dele, como ilustra o exemplo “nós somos os matolinhas, os jovens da Matola em movimento” spot publicitário do Matolinhas.
Sobre história universal, Ruediger Korff (2003), no seu Dialectic. Local Enclosures of Globalization. The Power of Locality, sugere que a capacidade de determinado contexto local poder assumir uma posição de definição de discursos dominantes deve-se a sua organização e recursos... consequentemente, dicursos globais (universais) tem um substracto local e globalização (universalização) podem ser então interpretadas como uma dominação global a partir de contextos locais, ou seja não há histórias naturalmente universais elas são universalizações de contextos particulares. Neste sentido Matola não é universal porque ninguém o universalizou, a semelhança do monumento do Tofinho que está sendo destruído. Continuamos a venerar as verdades dos outros mesmo que sejam tão verdades quanto as nossas.
Este cenário lembra Henri Junod (1974), no seu Usos e Costumes dos Bantu, ao ser questionado por colegas seus sobre porque usar um nome pejorativo para designar um povo, e ele dizia irão habituar-se e até orgulhar-se dele e mais adiante vai ciclicamente sugerindo ponha-se aos poucos fim às práticas e costumes indígenas, para dar lugar a civilização, entenda-se a dita ocidental?. Ora, Junod estava a produzir recomendações para o colonizador, por isso não importava o que os nativos pensassem ou quisessem ele queria impor o seu ideal civilizacional. Ora, hoje a quem estarão a servir os contra o nome da Escola Secundária da Matola, se aos moçambicanos da Matola não está sendo dada oportunidade de participar do processo e está sendo de certa forma contra suas vontades, a semelhança do que Junod fez? É esse o sentido patriótico? De que pátria?
No caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, força-se o cidadão a ser passivo, recusando-lhe o direito de participar activamente, pondo em causa o exercício da democracia. Este procedimento torna ainda válida a observaçäo de Severino Ngoenha, e até a questão de Jacques Soustelle.
Porque mesmo não sendo os contextos culturais homogéneos, eles reúnem elementos de proximidade, maior que de outros contextos. A este propósito mapeamos três visões de proximidade relativas ao processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, sendo a primeira a que defende que o “nome pode mudar desde que fique claro o que ganhamos”, ora fica implícito que este indivíduo não sabe o que ganhamos, logo não foi envolvido no processo. A segunda defende “não queremos esse nome, ainda que fosse para ser Ngungunhana, Maguiguana, Samora Machel, mas esses aí acordaram e decidiram mudar o nome”, a semelhança do primeiro este grupo de indivíduos não participou do processo. Por fim a visão segundo a qual “não queremos a mudança de nome, porque não mudam nomes de outras escolas tem que ser esta da Matola, estäo a obrigar-nos a destruir algo que nos diz respeito”. Ou seja os indivíduos do contexto cultural Matola mesmo com posiçöes diferentes sobre o assunto clamam pelo facto de estarem a ser excluídos do processo, clamam por poder participar e decidir sobre os seus destinos de sobrevivência incluindo a identitária, que no caso tem no Matola um marcador identitário.
Se o discurso de Severino Ngoenha pode ser entendido no quadro político particular no qual era necessário construir um Moçambique que havia sido etnicizado, na época colonial, ao estilo dividir para reinar, hoje num Estado democrático onde se pretende resgatar a auto-estima, a posição e sobretudo os procedimentos que estão sendo adoptados contra o nome da Escola Secundária da Matola, levam a pensar no que Custódio Duma (2005), refere no seu texto, Pagar ao País, que o Estado “... cada vez mais se distancia do povo e tenta criar uma imagem de monstro que assusta as pessoas, o cidadão olha para o Estado como se ele fosse a máquina criada para explorá-lo e não como uma instituição que ele mesmo criou para sobreviver”.
Para finalizar, permito-me considerar então que por um lado, estar contra o nome da Escola Secundária da Matola, é “matar os moçambicanos da Matola” como disse um ouvinte do programa Matolinhas, transcende a dimensão simbólica para ser uma tentativa de destruir um marcador identitário visível dos indivíduos do contexto cultural Matola, que motiva, dá sentido, integra e assegura a sobrevivência dos indivíduos e grupos desse mesmo contexto. Dar nome próprio a Escola, Matola não é nome? Ou dar nome assimilado a Escola, apagando o indígena?
Por outro lado, sendo a história uma invenção que legitima as acções no presente, ela por si só não serve de argumento suficientemente demonstrável para dar sentido de forma coerente a mudança do nome da Escola Secundária da Matola, porque este também tem a sua história, a semelhança de qualquer outro nome e com a particularidade de Matola fazer parte da auto-estima deste contexto cultural, que tanto se pretende resgatar, e existem muito mais escolas cujos nomes coincidem com os nomes dos espaços geográficos onde elas se localizam, Escolas Secundária da Polana e do Chibuto, só para mencionar algumas.
De forma complementar sendo a lei uma construção social ela deve considerar o justo, que sendo contextualmente definido, deve ser negociado nessa particularidade sobre a qual impacta, no caso em análise essa particularidade é Matola, pois é injusto que indivíduos que não sendo da Matola ou não partilhem o contexto cultural e marcadores identitários da Matola, impeçam os primeiros de participar da tomada de decisões que apenas a si dizem respeito em nome da lei, porque a lei não está para oprimir nem para explorar, ou estaremos a dizer que a colonização foi justa, que Mueda foi justo porque os que executaram tinham ordens e um substracto legal para o fazer? Ou estaremos ainda a dizer se o povo não se conforma com uma lei injusta mude-se de povo e não a lei?
Como horizonte alternativo quero sugerir que neste caso os moçambicanos da Matola tem direito a participar nos processos de reconstituição de seus contextos culturais, marcadores identitários com os recursos históricos que acharem mais convenientes. No caso presente, os matolinhas tem o direito de manter o nome da Escola Secundária da Matola e não a serem reduzidos a meros votantes para eleger representantes que representam suas vontades e não das dos que os elegeram, porque ser matolinha e reivindicar essa particularidade não é incompatível com ser moçambicano, mas é em si mesmo uma forma de participar da construção de Moçambique e da moçambicanidade. Tal e qual alguém questionou ”onde estavam esses senhores quando em 2000 nós tivemos que fazer greve para que a Secundária da Matola fosse reabilitada?, exigimos a reabilitação da Escola e não do nome da Escola...agora que a Escola está bonita já aparecem...a escola estava uma vergonha para qualquer moçambicano...”.
Se vingar a ideia financiou-mudou, preparemos novos nomes para as Escolas da Polana, do Chibuto, Francisco Manyanga, Josina Machel, Joaquim Chissano, Ngungunhana, Eduardo Mondlane ou para os monumentos do Tofinho, Mueda, Chaimite, para não falar em apelidos indígenas que tanto pululam por entre nós para substituí-los por nomes da história universal, porque mais dia menos dia necessitarão ser reabilitados e parte do orçamento donde provém salários pagos a nós com apelidos indígenas vem de fundos externos? Estamos a voltar aos indígenas e assimilados, negando o que somos para tentar sermos os outros que jamais seremos? Quem serão os responsáveis amanhã pela destruição da nossa história, porque os colonos já foram. Foram, ou transmutaram-se?
Esta é a minha proposta, diálogo na diferença sem reduzí-lo a idades, cargos, ou títulos, mas dialogar num Moçambique onde os moçambicanos de carne e osso contem, com as suas particularidades porque esta é a única maneira de discordar de Soustelle quando afirma que mesmo com as independências continuou existindo exploração e negação de participação, e por isso teria sido melhor que não tivessem ocorrido as independências. Esta proposta de uma antropologia fraca é refutável obviamente, preferencialmente com argumentos demonstráveis, lógicos e coerentes, mas podem colocar outros critérios, ou mesmo via decreto também de qualquer tipo...
[1] Segundo Bruyne et al. (1977:183) “a construção ideal típica ….visa dar uma descrição ‘excessiva’ do fenómeno a fim de melhor poder identificá-lo”.
[2] Acho que os da e para Matola tambem fazem parte.
[3] Mesmo ali Juntinho à Escola Secundária da Matola.
Entretanto volto a apelar aos participantes neste blog para "aligeirarem" os seus textos de forma a serem acessiveis a pessoas que não têm a mesma preparação académica.
Textos carregados de citações têm valor na universidade mas tornam-se de dificil leitura num blog como este que se destina a um público mais diversificado.
Aqui vai o texto:
Diálogos a Partir da Matola: Pelos Direitos de ser moçambiques, em moçambiques, por Moçambique
O texto que se segue foi originalmente escrito e apresentado no âmbito dos Seminários de Arqueologia e Antropologia do Departamento do Mesmo nome, da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane. Agradeço desde já a paciência pela anarquia metodológica.
Começo por constatar que falar de Moçambique como demarcação física, de onde provém moçambicanos é uma certeza simples e consensual. Basta olhar o mapa e lá descobrimos esse lugar, no qual vive-se constitucionalmente um Estado democrático desde os anos 90.
Recuo no tempo para ler Severino Ngoenha (1998) na colectânea de textos Identidade, Moçambicanidade, Moçambicanizaçäo, sob direcçäo do prof. Carlos Serra, e eis que sob o título Identidade mocambicana: já e ainda näo, Severino Ngoenha enfatiza que a aglutinaçäo de contextos culturais diversos, pré-existentes a Berlin geraram Moçambique, e que no pós independência essas diversidades foram reprimidas na construçäo do homem novo, näo tendo contudo desaparecido. Este posicionamento surge quase 25 anos após Jacques Soustelle (1973) perguntar na sua carta aberta as vítimas da descolonizaçäo, o que mudou com as independências em termos de bem estar e participaçäo?
Visitei entäo Olívia Maria Faife (2005), no seu Moçambique: as metamorfoses da Cidadania ou em busca de uma cidadania?, que trazendo Marshall (1967) divide o conceito de cidadania em três partes, a saber o civil, o político e o social. Faife vai ainda buscar Turner (1990) para abordar duas perspectivas de cidadania, nomeadamente a cidadania passiva, resultante da obtenção da mesma, via Estado, com o Estado a gerir o espaço público, mantendo a iniciativa de mudança e incorporando aos poucos os cidadãos à medida que vai ampliando os seus direitos. De forma complementar a cidadania activa resulta de uma luta pelos direitos civis, políticos e sociais.
Foi com este substracto que ia entrar para o debate sobre cidadania e a construçäo da moçambicanidade. Aconteceu que no dia 21 de Março o jornal Notícias dava conta da mudança do nome da Escola Secundária da Matola, derivada de razöes patrióticas, necessidade de dar nome a escola, história universal, condicionamento de financiamento e por terem sido consultadas as comunidades da Matola.
Partilho entäo as minhas reservas às razões evocadas, num fórum online onde coloco questões como: Quando foi convocada e por que meios publicitada a referida consulta, onde se realizou, quem participou e em representaçäo de quem, e onde poderiam ser consultadas as actas da mesma?
Longe de virem respostas as questões que eu colocava, vieram mais justificações contra o nome da Escola Secundária da Matola, nomeadamente “vocês meninos tem que aprender com a história universal”, de seguida apareceu um artigo num jornal dando lições de história universal e contra o nome da Escola Secundária da Matola, complementado por outro artigo de outro jornal que perguntava se seria importante abordar essa questão. Mais recentemente complementada por uma autoridade da área da cultura?, defendia ser apenas uma mudança de nome da Escola e nada mais. Esta era a dimensão teórica enfatizando consulta e participação, corporizando então a democracia vivida no país, contudo na prática iam irradiando testemunhos de não haver indivíduos consultados na Matola.
Aqui começava a reaparecer a diversidade de moçambiques dentro do Moçambique, na medida em que sobre o mesmo assunto pessoas divergiam em foma bipolar. Este aspecto fez-me rever minha intenção inicial passando então a focalizar as seguintes questões: como é que os diversos contextos de sobrevivência dialogam neste Moçambique, qual a participação desses moçambicanos desses e nesses diversos moçambiques na tomada de decisões sobre reconstituções que lhes dizem respeito apenas a si enquanto contexto particular, que competências discursivas são mobilizadas no processo e que alternativas podem ser mapeadas?
Para complementar, sendo o exercício da participação um pressuposto fundamental da democracia, e tendo em conta que se trata de um assunto que impacta numa particularidade de Moçambique, urge questionar quem tem direito de decidir se o assunto é importante para ser discutido? Ou ainda como são acauteladas questões que sendo referentes a lugares particulares de Moçambique, têm que ser decididas por decisores alheios a essas mesmas particularidades?
Com base nos elementos discursivos contra o nome da Escola Secundária da Matola, e de modo a tornar possível uma análise sistematizada para procurar algumas possíveis respostas às questões colocadas, construí então uma perspectiva ideal típica[1] que é contra o nome da Escola Secundária da Matola. A referida posição demonstra uma participação a nível discursivo, reduz aspectos identitários apenas ao seu domínio simbólico, procede a uma deificação e impõe uma universalidade de uma história, ao estilo evolucionista unilinear e de forma complementar opera a naturalização da lei, impondo alterações a contextos culturais alheios, por via de decretos e ostracização.
Partia de um ponto triplamente instável e frágil para a presente reflexão. A primeira é que, se a discussão em torno da mudança de nome da escola secundária da Matola veio alargar o meu propósito analítico inicial, ela fragilizou-a duplamente. Por um lado porque a recolha de dados no terreno durou apenas 2 semanas, obrigado-me a redifinir o formato inicial e por outro lado, por não ter podido explorar com mais profundidade o assunto. Contudo, a essas fragilidades juntaram-se factores como a discussão do assunto no programa Matolinhas, da Rádio Cidade, no Fórum Mocambiqueonline, fornecendo-me, reacções de interlocutores, amigos, colegas, participantes do debate de apresentação do texto original, que vieram enriquecer a reflexão, alargando por um lado os argumentos que incialmente propunha apresentar e de forma complemetar trazendo posições diferentes e até contrárias as minhas. Deste modo o imprevisível enriqueceu, ganhando o texto mais conteúdo, profundidade e intensidade.
A segunda fragilidade e instabilidade reside no facto de não ter acesso as razões oficiais de forma oficial, para a “simples mudança simbólica” contra o nome da Escola Secundária da Matola, como se posiacionara certo cidadão dum dos moçambiques, que não a Matola.
Por sua vez a terceira prende-se com o facto de Thomas Kuhn, com a sua Estrutura das Revoluções Científicas, e Bruyne et al (1977). no seu, Dinâmica da Pesquisa em Ciências Sociais: Os Polos da Prática Metodológica, quase terem-me feito desistir de escrever, ao lembrarem-me que a “produção da verdade ou conhecimento” deriva mais da sociabilidade e do que “os que estão no poder” quiserem que seja e menos da clareza, coerência ou demonstrabilidade do argumento, ou seja mesmo que seja indemonstrável se o poder quiser ele fica verdade.
Mesmo assim, decidi então dialogar, com os contra o nome da Escola Secundária da Matola. Para o efeito, submeti os argumentos que aqueles colocam a um diálogo mediatizado por autores que abordam aspectos relativos a contextos culturais, aspectos identitários, história e cidadania. Por fim decidi dialogar com todos potenciais interlocutores sobre o assunto, porque no limiar da minha desistência Hannah Ahrendt, no seu Poder e a Crítica à Tradição, animou-me ao recorda-me que “Estar no poder” significa “estar autorizado” pelo grupo a falar em seu nome... neste caso estar autorizado pelos eleitores, Municipais da Matola e das eleições gerais, dos quais os da Matola também são parte,,, ai recomponho-me parcialmente. Parcialmente porque a explicação do porque estar contra o nome de Escola Secundária da Matola, ainda não chegou ao “nosso povo”[2], onde todos esses com nomes de indígenas e outros que não são da história universal, estão à semelhança do Matsolo, condenados a ser enterrados bem fundo de seus túmulos[3], não só materiais bem como simbólicos e jamais serem discutidos neste contexto que se chama mundo, ou reduzir possibilidade de sua discutibilidade, porque alguém de outro moçambique que näo Matola assim acha, contra a auto-estima dos que são da Matola ou que nela têm um marcador identitário que dá sentido e torna possível suas vidas.
Como forma de proceder a objectivação das questões colocadas, isolei o caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola e tomei-o como lugar etnográfico, para confrontá-lo com teorizações sobre contextos culturais, marcadores identitários, história e cidadania. Para a sua operacionalização recorri a descrição em presença e a observação participante, usando como instrumentos, entrevistas semi-estruturadas, baseadas num guião da minha autoria e outro produzido pelo programa Matolinhas, que resultou em intervenções dos ouvintes do programa. Ajuntei a isso, histórias de vida e trajectórias pessoais, consultei jornais, e fóruns online, nomeadamente o moçambiqueonline e o blog ideias para debate. Sendo um exercício exploratório há aspectos por alinhavar nomeadamente a necessidade de aprofundar trajectórias dos discursantes contra o nome da Escola Secundária da Matola, e todos outros dos quais não me apercebi, mas que o diálogo com outros interlocutores permitirá aferir, como já aconteceu durante a apresentação no Seminário já referido.
Propus-me entäo a exercitar uma antropologia que estuda problemas de humanos ao estilo de Mariza Peirano (1995), no seu A Favor da Etnografia, e não povos, nem primitivos, como Jean Copans (1971) sugeriu e não cumpriu, ao trazer exemplos etnográficos apenas de contextos primitivos, no seu Antropologia Ciência das Sociedades Primitivas? mas assumindo-o como um projecto político como o mesmo Jean Copans (1974) sugere, em Críticas e Políticas da Antropologia. Faço por fim eco a Stanley Tambiah (2002) que associa vida e profissäo de antropólogo, no seu, Edmund Leach. An Anthropological Life, recolocando que o critério fundamental de definiçäo do objecto de estudo da disciplina näo passa necessariamente por um deslocamento histórico ou geográfico à procura dos outros, podendo por isso o objecto da antropologia ser construído e analisado em nosso contexto do dia a dia. Faço então uma antropologia fraca, no sentido de assumí-la como uma construção aproximativa entre contextos culturais diversos, fraca porque o humano não alcança a perfeiçäo, apenas reduz ciclicamente a imperfeição.
Dialogando com autores sobre cultura, cheguei ao conceito contexto cultural dada a inadequação do conceito de cultura de Tylor, que ata cultura a sociedade, tomada como lugar geográfico. Ora desenvolvimentos analíticos recentes permitem-nos perceber que indivíduos podem partilhar até espaços geográficos comuns mas terem diversos substractos culturais e de forma contrária estarem em espaços geográficos diferentes e partilhar substractos culturais. Enfatizando a distância entre contextos culturais dizia alguém “usar a Withbank para ir ver 10 dos 30 terrenos que tem, quando nenhum teu filho ou alguém que te é próximo, estudou na Secundária, comeu Matswincha, nadou no Matola, jogou no Amparo, ou ter uma mansão na Matola, näo é suficiente para vibrar com Matola e tudo que ela tem”.
Fui buscar entäo Peter Brown (1998) no seu, Understanding and Applying Medical Anthropology, que enquadra a cultura numa esfera interactiva entre os domínios material, de relações entre indivíduos e do simbólico, visando assegurar sua sobrevivência. A este autor, associei Melford Spiro (1998) no seu, Algumas Reflexões Sobre o Determinismo e o Relativismo Culturais com Especial Referência à Emoção e à Razão, que sugere que para que consideremos proposições culturais, estas têm que estar alicerçadas mais numa experiência colectiva e menos na individual, têm que ser resultantes de uma tradição enquanto recurso histórico legitimacional assumido por determinado conjunto de indivíduos e que sejam enculturadas, ou seja interiorizados e assumidas como crenças. A este conjunto de interações designei então de contexto cultural, tomado como um lugar imaginado no qual os indivíduos visam assegurar a sua sobrevivência, intervindo sobre um domínio material, de forma relacional com outros indivíduos por intermédio de símbolos sustentados por crenças públicas e tradicionais.
Neste contexto, os símbolos enquadram-se numa ampla esfera de mediatizaçäo e significaçäo das estratégias de sobrevivência dos indivíduos, não sendo portanto meros símbolos. A redução de aspectos simbólicos a meros símbolos, deriva de situações semelhantes à seguinte: lendo a Bíblia, quando esta aborda a questão de ser "puro como a lã das ovelhas" perguntaremos aqui em Moçambique, que pureza? Porque as nossas ovelhas são castanhas, pretas, cinzentas, e mesmo que sejam brancas devido à areia a brancura não brilha, diremos então é puro simbolismo e pode não fazer sentido para nós, mas uma incursão para os lados de onde a Bíblia veio, sentir, visualizar, tocar, ajuda a perceber o significado da “pureza da lã” ao notar que a sua brancura até brilha.
Isto leva-nos a percepçäo de os símbolos não terem uma razäo em si, mas buscarem representar contextos particulares mais amplos, sendo que a sua percepção passa por reenquadrá-los nos seus contextos culturais de referência. Nestes os símbolos servem de marcadores identitários, ao tornarem-se nos elementos aos quais os indivíduos recorrem para inspirar, manejar e legitimar, visando a sua inserção e sobrevivência desde o substracto particular até ao global, a tal ponto que ouvimos uma mãe dizer: “quando meu filho não quer estudar eu digo para ele, tens que estudar para ires para a Secundária da Matola, e ele esforça-se e repete a motivação aos amigos” ou “Eu sou engenheiro hoje porque fiz primeiro o ensino secundário e não foi nessas outras... ou esses nomes estranhos que nos querem trazer... foi na Secundária da Matola”.
Os contextos culturais, bem como os marcadores identitários são também lugares provisórios porque abertos a transformações, sejam de origem interna ao contexto, derivados de invenções internas, ou exógenas porque derivadas de origens externas ao contexto. De forma complementar podem ser pacíficas ou violentas, ou se preferirmos podem ser de forma democrática ou autoritária, e se nalgum momento o autoritarismo pode ser tolerado noutros não, Dizia um ancião, “antes a escola tinha nome de um colono. Mudaram, foi bom porque começamos a acreditar em nós, afinal tinhamos exemplos de defesa de Moçambique e mesmo quando eramos bombardeados pelos “Boers” Matola inspirava-nos a resistir, agora que brincadeira é essa virem e mudarem?”.
Os referidos marcadores indentitários, säo constituídos com recurso á história, e como refere Jerome Brumer (1991) no seu The Narrative Construction of Reality. Critical Enquiry, e opondo-se a ideia de uma história natural, este autor refere que nenhum conhecimento é neutro. Sendo assim a historia será sempre então a legitimaçäo no hoje visando colher benefícios, seleccionando no ontem, que pode nunca ter existido pelo menos tal e qual se propala, os ingredientes para dar sentido ao hoje, ou seja silencia-se acontecimentos e amplia-se outros, falsificando esse passado para dar lugar à história. Essa falsificação pode derivar de factores propositados ou de limitações técnico metodológico e contextuais, incluindo vontades políticas. Matola é uma construção histórica, tomado como marcador identitário e que dá sentido a vida de moçambicanos da Matola ou do contexto cultural Matola. Dizia um dos ouvintes do Matolinhas “Quando nós fomos a Itália jogar fomos como equipa da Secundária da Matola, e deixamos lá o nosso Matola bem vincado”, e em tom de indignação “quando eu for buscar meu certificado é para aparecer um nome que não me diz nada?”
Referir que, os condimentos materiais, de relações e simbólicos, de dado contexto cultural não derivam necessariamente da construção de seus integrantes. Contudo mesmo nesses casos estes apropriam-se desses elementos enquanto marcadores identitários que lhes estão disponíveis e assumem-nos, ressignificando-os para dar sentido às suas estratégias de sobrevivência enquanto indivíduos ou grupos. Isto leva a que mesmo que determinado indivíduo tenha forjado os condimentos de dado contexto cultural, a partir do momento em que os indivíduos deste apropriam-se deles, os referidos condimentos passam a ser marcadores identitários desses contextos, transcendendo o mero simbolismo, deixando de estar sobre controle apenas dos que os construíram. No caso do Matola se o grosso dos indivíduos deste contexto não o forjou enquanto marcador identitário eles apropriaram-se dele, como ilustra o exemplo “nós somos os matolinhas, os jovens da Matola em movimento” spot publicitário do Matolinhas.
Sobre história universal, Ruediger Korff (2003), no seu Dialectic. Local Enclosures of Globalization. The Power of Locality, sugere que a capacidade de determinado contexto local poder assumir uma posição de definição de discursos dominantes deve-se a sua organização e recursos... consequentemente, dicursos globais (universais) tem um substracto local e globalização (universalização) podem ser então interpretadas como uma dominação global a partir de contextos locais, ou seja não há histórias naturalmente universais elas são universalizações de contextos particulares. Neste sentido Matola não é universal porque ninguém o universalizou, a semelhança do monumento do Tofinho que está sendo destruído. Continuamos a venerar as verdades dos outros mesmo que sejam tão verdades quanto as nossas.
Este cenário lembra Henri Junod (1974), no seu Usos e Costumes dos Bantu, ao ser questionado por colegas seus sobre porque usar um nome pejorativo para designar um povo, e ele dizia irão habituar-se e até orgulhar-se dele e mais adiante vai ciclicamente sugerindo ponha-se aos poucos fim às práticas e costumes indígenas, para dar lugar a civilização, entenda-se a dita ocidental?. Ora, Junod estava a produzir recomendações para o colonizador, por isso não importava o que os nativos pensassem ou quisessem ele queria impor o seu ideal civilizacional. Ora, hoje a quem estarão a servir os contra o nome da Escola Secundária da Matola, se aos moçambicanos da Matola não está sendo dada oportunidade de participar do processo e está sendo de certa forma contra suas vontades, a semelhança do que Junod fez? É esse o sentido patriótico? De que pátria?
No caso do processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, força-se o cidadão a ser passivo, recusando-lhe o direito de participar activamente, pondo em causa o exercício da democracia. Este procedimento torna ainda válida a observaçäo de Severino Ngoenha, e até a questão de Jacques Soustelle.
Porque mesmo não sendo os contextos culturais homogéneos, eles reúnem elementos de proximidade, maior que de outros contextos. A este propósito mapeamos três visões de proximidade relativas ao processo contra o nome da Escola Secundária da Matola, sendo a primeira a que defende que o “nome pode mudar desde que fique claro o que ganhamos”, ora fica implícito que este indivíduo não sabe o que ganhamos, logo não foi envolvido no processo. A segunda defende “não queremos esse nome, ainda que fosse para ser Ngungunhana, Maguiguana, Samora Machel, mas esses aí acordaram e decidiram mudar o nome”, a semelhança do primeiro este grupo de indivíduos não participou do processo. Por fim a visão segundo a qual “não queremos a mudança de nome, porque não mudam nomes de outras escolas tem que ser esta da Matola, estäo a obrigar-nos a destruir algo que nos diz respeito”. Ou seja os indivíduos do contexto cultural Matola mesmo com posiçöes diferentes sobre o assunto clamam pelo facto de estarem a ser excluídos do processo, clamam por poder participar e decidir sobre os seus destinos de sobrevivência incluindo a identitária, que no caso tem no Matola um marcador identitário.
Se o discurso de Severino Ngoenha pode ser entendido no quadro político particular no qual era necessário construir um Moçambique que havia sido etnicizado, na época colonial, ao estilo dividir para reinar, hoje num Estado democrático onde se pretende resgatar a auto-estima, a posição e sobretudo os procedimentos que estão sendo adoptados contra o nome da Escola Secundária da Matola, levam a pensar no que Custódio Duma (2005), refere no seu texto, Pagar ao País, que o Estado “... cada vez mais se distancia do povo e tenta criar uma imagem de monstro que assusta as pessoas, o cidadão olha para o Estado como se ele fosse a máquina criada para explorá-lo e não como uma instituição que ele mesmo criou para sobreviver”.
Para finalizar, permito-me considerar então que por um lado, estar contra o nome da Escola Secundária da Matola, é “matar os moçambicanos da Matola” como disse um ouvinte do programa Matolinhas, transcende a dimensão simbólica para ser uma tentativa de destruir um marcador identitário visível dos indivíduos do contexto cultural Matola, que motiva, dá sentido, integra e assegura a sobrevivência dos indivíduos e grupos desse mesmo contexto. Dar nome próprio a Escola, Matola não é nome? Ou dar nome assimilado a Escola, apagando o indígena?
Por outro lado, sendo a história uma invenção que legitima as acções no presente, ela por si só não serve de argumento suficientemente demonstrável para dar sentido de forma coerente a mudança do nome da Escola Secundária da Matola, porque este também tem a sua história, a semelhança de qualquer outro nome e com a particularidade de Matola fazer parte da auto-estima deste contexto cultural, que tanto se pretende resgatar, e existem muito mais escolas cujos nomes coincidem com os nomes dos espaços geográficos onde elas se localizam, Escolas Secundária da Polana e do Chibuto, só para mencionar algumas.
De forma complementar sendo a lei uma construção social ela deve considerar o justo, que sendo contextualmente definido, deve ser negociado nessa particularidade sobre a qual impacta, no caso em análise essa particularidade é Matola, pois é injusto que indivíduos que não sendo da Matola ou não partilhem o contexto cultural e marcadores identitários da Matola, impeçam os primeiros de participar da tomada de decisões que apenas a si dizem respeito em nome da lei, porque a lei não está para oprimir nem para explorar, ou estaremos a dizer que a colonização foi justa, que Mueda foi justo porque os que executaram tinham ordens e um substracto legal para o fazer? Ou estaremos ainda a dizer se o povo não se conforma com uma lei injusta mude-se de povo e não a lei?
Como horizonte alternativo quero sugerir que neste caso os moçambicanos da Matola tem direito a participar nos processos de reconstituição de seus contextos culturais, marcadores identitários com os recursos históricos que acharem mais convenientes. No caso presente, os matolinhas tem o direito de manter o nome da Escola Secundária da Matola e não a serem reduzidos a meros votantes para eleger representantes que representam suas vontades e não das dos que os elegeram, porque ser matolinha e reivindicar essa particularidade não é incompatível com ser moçambicano, mas é em si mesmo uma forma de participar da construção de Moçambique e da moçambicanidade. Tal e qual alguém questionou ”onde estavam esses senhores quando em 2000 nós tivemos que fazer greve para que a Secundária da Matola fosse reabilitada?, exigimos a reabilitação da Escola e não do nome da Escola...agora que a Escola está bonita já aparecem...a escola estava uma vergonha para qualquer moçambicano...”.
Se vingar a ideia financiou-mudou, preparemos novos nomes para as Escolas da Polana, do Chibuto, Francisco Manyanga, Josina Machel, Joaquim Chissano, Ngungunhana, Eduardo Mondlane ou para os monumentos do Tofinho, Mueda, Chaimite, para não falar em apelidos indígenas que tanto pululam por entre nós para substituí-los por nomes da história universal, porque mais dia menos dia necessitarão ser reabilitados e parte do orçamento donde provém salários pagos a nós com apelidos indígenas vem de fundos externos? Estamos a voltar aos indígenas e assimilados, negando o que somos para tentar sermos os outros que jamais seremos? Quem serão os responsáveis amanhã pela destruição da nossa história, porque os colonos já foram. Foram, ou transmutaram-se?
Esta é a minha proposta, diálogo na diferença sem reduzí-lo a idades, cargos, ou títulos, mas dialogar num Moçambique onde os moçambicanos de carne e osso contem, com as suas particularidades porque esta é a única maneira de discordar de Soustelle quando afirma que mesmo com as independências continuou existindo exploração e negação de participação, e por isso teria sido melhor que não tivessem ocorrido as independências. Esta proposta de uma antropologia fraca é refutável obviamente, preferencialmente com argumentos demonstráveis, lógicos e coerentes, mas podem colocar outros critérios, ou mesmo via decreto também de qualquer tipo...
[1] Segundo Bruyne et al. (1977:183) “a construção ideal típica ….visa dar uma descrição ‘excessiva’ do fenómeno a fim de melhor poder identificá-lo”.
[2] Acho que os da e para Matola tambem fazem parte.
[3] Mesmo ali Juntinho à Escola Secundária da Matola.
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