Ideias para Debate

Thursday, May 12, 2005

Macamo

Com a entrada de novos textos acabo por me esquecer de continuar a publicação dos que já tenho.
Hoje vai o último da série do Elisio Macamo sobre as formas de debater ideias.


Dominação do Sul (10)

Imaginemos uma situação perfeitamente concebível numa província qualquer do norte do país. Olhamos para a composição do governo provincial e constatamos que nenhum dos directores provinciais é originário da província. Mais, quando olhamos de perto vemos que são todos eles do sul. A partir desta observação podemos tirar uma conclusão: somos governados pelo sul. É uma conclusão perfeitamente plausível. Baseia-se na extrapolação de factos a partir de poucas observações. A partir do pouco tiramos conclusões sobre o todo.
Esta maneira de chegar a conclusões é muito frequente no dia a dia. E não está errada. É impossível sabermos tudo. É impossível reunirmos primeiro toda a informação que seria necessária para podermos tirar conclusões seguras. Se em duas ou três ocasiões fazemos acidente com o chapa, podemos na melhor das consciências concluir que o chapa é perigoso; a partir da actividade nocturna de alguns citadinos da Beira na praia, podemos concluir que a população da Beira tem noções de higiene bastante débeis; algumas pessoas poderiam ser ainda mais arrojadas. Elas podiam concluir que os Sena ou Ndau ou Mátsua são porcos.
Sem este tipo de conclusões é difícil sobreviver no dia a dia. A razão é a que indiquei mais acima: não podemos ficar à espera de reunir todo o material para podermos ter a certeza de que a conclusão que tiramos é justificada. Curiosamente, se quiséssemos ficar à espera de reunir todo o material, ficaríamos à espera toda a vida, pois o nível de conhecimento está sempre a mudar. Uma coisa que hoje é dada como certa pode ser errada amanhã.
Os filósofos chamam a este tipo de raciocínio inductivo. É um raciocínio inseguro na medida em que se baseia apenas em poucos dados para chegar a conclusões pesadas. A partir de quatro laranjas podres compradas num saco de 10Kgs numa determinada banca do mercado central, posso concluir que os vendedores do mercado vendem mercadoria podre. O raciocínio inductivo é imprescindível, mas está repleto de problemas. Ou melhor, mal usado pode criar muitos danos. O mau uso advém da atitude de algumas pessoas de não reconhecerem que a base das suas conclusões é algo ténue para as sustentar. As conclusões tiradas dum argumento indutivo são, por natureza, inseguras. Só através dum processo paulatino de acumulação de fundamentos é que podemos diminuir essa incerteza. Diminuir, digo bem, pois a incerteza permanece, muito embora em menor grau.
Voltemos ao exemplo da governação do sul. O argumento não é novo na nossa esfera pública. Com base nele travam-se batalhas políticas duras nas cabeças das pessoas. E não só. Mesmo ao nível da tomada de decisões é impossível ignorar essa conclusão. Onde fazer um determinado investimento? Quem colocar lá? Algumas pessoas pensam duas vezes antes de aceitarem uma missão oficial fora da sua própria região. Alguns amigos professores afectos no norte, mas provenientes do sul, contam casos de hostilização agressiva por parte dos próprios alunos por serem do sul.
É bem possível que Moçambique seja governado pelo sul. Para termos um grau de certeza ainda maior em relação a esta conclusão precisamos de mais informação do que a observação acima indicada nos proporciona. Não basta, portanto, constatar que todos os directores provinciais são do sul. Há várias outras perguntas que temos que colocar. Por exemplo, o que significa “ser do sul”? Ter nascido e crescido nas províncias de Inhambane, Gaza e Maputo? E as pessoas de pais do norte que nasceram no sul? São também do sul? Da mesma maneira, mas desta feita ao contrário, os que nasceram e cresceram no norte de pais do sul, são donde? Ou sul significa simplesmente ser falante de changana, ronga, chope, xitsua e bitonga? Será que a constatação “directores todos do sul” se refere a uma outra coisa que não tem nada a ver com região, nem etnia? Quem sabe, podia ser que o peso relativo das pessoas do sul signifique meramente que essas pessoas beneficiaram de determinadas condições naturais ou políticas. Por exemplo, e isto é frequentemente referido no debate, historicamente houve mais oportunidades de escolarização e formação no sul do que no norte. Neste sentido, o argumento seria outro: estamos a ser governados por pessoas que estudaram! Podia ser também que a constatação revela o grau de centralização da função pública. Por exemplo, quem está em Maputo, o centro do poder, tem maiores probabilidades de ser nomeado para cargos importantes. Por Maputo se encontrar no sul as pessoas do sul levam vantagem na atribuição de postos, bolsas, etc. Se calhar ao se olhar de perto, constatar-se-á que as pessoas provenientes do norte e que vivem em Maputo têm também maiores probabilidades de ganhar a lotaria das nomeações à função pública. Aqui também o argumento seria bem diferente: somos governados pelas pessoas que vivem em Maputo!
No fundo, o que a constatação segundo a qual o país seria governado pelo sul implica é bem mais profundo. Implica, na realidade, a ideia de que há uma espécie de projecto do sul para dominar o país. É bem provável que haja, neste mundo tudo é possível. Mas se esse é o argumento ele precisa de ser claramente exposto. Para esse efeito, é necessário voltar a colocar o tipo de questões que acabamos de colocar em relação à primeira suposição sobre a simples dominação do sul. Noutros termos, é preciso interiorizar a ideia de que as conclusões que se tiram são apenas plausíveis, mas não são inteiramente seguras. É preciso argumentar: apresentar razões.

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