Craveirinha
Recebi o seguinte texto, sde João Reis, escrito pela morte de José Craveirinha.
Embora fuja um bocado do contexto deste blog, sinto-me bem a publicá-lo aqui:
IOE! IOE! O CRAVERINHA MORREU!...
João C. Reis
José João Craveirinha começou a sua vida como auxiliar de escritório numa sociedade Cooperativa, não por capacidades comerciais específicas, mas por ser um potencial marcador de golos de cabeça, da equipa de futebol do Grupo Desportivo de Lourenço Marques.
Foi assim, e por essa habilidade, que o conheci, e o descrevi numa desataviada crónica desportiva que então publicava no jornal Lourenço Marques Guardian. Fiz-lhe algumas prognósticas referências nesse sentido, e ele veio agradecer-mas. Deste modo começaria uma longa convivência, que durou até Dezembro, um ano depois do 25 de Abril – quando regressei a Lisboa, após quarenta anos de interregno moçambicano.
Enganei-me nos vaticínios. Embora vizinhos, quási de porta- a- porta, como depois seria, sempre na Mafalala, com o Eusébio, e outros, o Zézé não seria um (primeiro) Matateu, obliquou, na carreira, não sei se bem, se mal – e foi para o campo das letras.
Costuma falar-se no dom de palavra de certas pessoas, espontâneas e calhadas para a oratória, mas ninguém diria que o Zé Craveirinha acabasse num verdadeiro e lídimo artífice da palavra, portuguesa, como viria a ser. O destino, ou lá o que tivesse sido, pregou-lhe essa partida, instilou-lhe na inteligência, uma agudíssima apetência por tudo quanto era escrita (tendo não mais do que a quarta classe elementar), e quando sentiu absoluta e urgente necessidade de começar a vida, entrou, pelo futebol, no comércio a fazer facturas de vendas de leite, e por acréscimo circunstancial, no jornalismo associativo, como revisor num pequeno hebdomanário propriedade de uma periférica Associação Africana - O Brado Africano, que acabaria por lhe servir de trampolim, para fazer publicar, para encher buracos vazios por falta de colaboração, alguns pequenos textos, notas sociais, e, de autoria já firmada, alguns poemas.
Seria numa dessas circunstâncias que faria uma vez publicar nesse humilde semanário periférico de mulatos, uma poesia que viria a provocar muito maior perplexidade, do que emoção: Quero Ser Tambor – tambor onde se repercutiam os gritos de miséria e revolta, e os anseios do povo da cidade do caniço, tão fortemente discriminado, explorado e oprimido. Politicamente, e socialmente, o poema teve fortíssimo impacto, decerto, muito mais pelo inesperado de uma revelação, do que pela literatura, acerto das palavras, contundência das ideias, e da consciência critica, que não cabiam bem no hábito, nem nas expectativas da gente pachorrenta e prudente daquela bela cidade perfumada, de acácias rubras e lilases jacarandás, inimiga das novidades e dos perigos subjacentes aos golpes de um mulato raivoso. Ninguém se iludiu a esse respeito, isso, não.
Talvez tivesse sido mais pelo bom português patenteado da sua escrita, do que pela poesia, ousada, exótica, que punha em questão arrogâncias e indisfarçáveis antinomias, humanas, sociais e políticas – que lhe fosse arranjado um lugar de ajudante de revisor na Imprensa Nacional. Verdadeiramente, porquê, nunca se soube. Há muitas formas de fazer calar as pessoas que falam alto de mais, umas menos subtis que outras, mas todas de eficácia comprovada.
Da Imprensa Nacional, onde se praticava o horário único, para arredondar o magro salário de “auxiliar” que auferia pelos motivos aduzidos, e pelo facto de, na profissão, não ser, propriamente, um analfabeto, foi convidado a ingressar, por acumulação, e, igualmente, como ajudante, ou auxiliar, no departamento de revisão do Notícias, o maior, e o mais rico jornal da Colónia Era assim naqueles tempos. Pretos e mulatos serviam apenas para ajudantes ou auxiliares de serviços, com salários, naturalmente, compatíveis.
E, por hábito, ou não, de uma coisa se passa a outra. Com o tempo, a situação do Craveirinha, no jornal, ganhava relevo, por estímulo do instinto, ou arreganho de competição sofreada, já escrevinhava pequenas coisas, como lhe acontecera no Brado Africano, textos curtos, anónimos, ou publicados sob pseudónimos, acabaria, mesmo, por ter direito de facto, embora não oficialmente outorgado, a uma “coluna” semanal assinada, normalmente, “cartas culturais” ou, por assim dizer, dialécticas, dirigidas a distintos - indistintos, onde escrevia coisas que ninguém mais se atrevia a escrever, por indiferença, por falta de competência, ou de coragem. Os destinatários (quando não tugiam nem mugiam, dadas a qualidade, a evidência, a força, e a curialidade dos argumentos, sobretudo, o medo da tréplica) nem sempre reagiam bem ao atrevimento do mulato. Calavam-se – mas passaram a cumprimentá-lo, cordealmente, nas ruas. E as coisas corriam. A verdade é que o jornal, sempre aos sábados, dia da prosa do Craveirinha, ganhava uma dimensão que nunca antes (nem depois) alguma vez tivera. Um, ou dois colegas, por essa ocasião, entenderam dirigir-se uma vez à então directora do Jornal a sugerir (porque era justo) que se atribuísse ao Craveirinha o estatuto de jornalista, com compensação adequada. A resposta que obtiveram ficou na história do jornal: Para “aquilo que ele é, e o seu nível natural de vida, o rapaz até ganha de mais! (O que ele recebia não chegava a metade do que ganhava um simples repórter – mas, claro, o repórter era branco, e tinha um nível de vida diferente, isto é, comia três refeições diárias, tinha que vestir e calçar, e andar engravatado, viver numa casa de alvenaria, tudo como um branco. Representar e honrar o jornal como uma instituição respeitável.
Nessa época, já nos celebrados anos 60, tempo de literaturas e rebeldias artísticas, graças, ou não, à pagina literária do Santos Abranches, do mesmo Jornal, na qual, e não por culpa do responsável, o Craveirinha não colaborava - sobrevivia uma plêiade de jovens a fazer arte e poesia, entre os quais, o Reinaldo Ferreira, o Rui Knopfli – e outros, de quem a história se esqueceu – que não dos referidos.
E daí, que alguém, por desafio, pensasse organizar um Sarau não-racial de Poesia, por ocasião da data comemorativa da do aniversário da Cidade (24 de Julho) no salão nobre do edifício da própria Câmara Municipal. Houve, naturalmente, quem resmungasse da ideia e do local onde – mas a noticia já aparecera nos jornais, ninguém se atreveria a proibir a iniciativa.
O evento, do qual se editaria depois um disco, hoje raríssimo, foi realizado (1962) em duas sessões, sob vigilância pidesca reforçada, tendo constituído, apesar disso, assinalável sucesso, principalmente porque ninguém fazia ideia daquele inesperado submundo de literatos e artistas, nos quais se incluíam ainda o arquitecto Pancho Miranda Guedes, os pintores João Aires, o Malangatana, o Obdias, o Zé Julio, Eugénio Lisboa, Augusto Cabral, o Rui Calçada Bastos, o Antero, e o Freire, os escultores Alberto Chissano, e Zé Lobo Fernandes, os contistas Luís Bernardo Honwana, a Lina Magaia, e outros rebaldecos (alguns nem tanto…) Foi uma revelação! O Zé Craveirinha passou a ser uma referência específica. Para o bem, e para o mal. No geral, mesmo entre os que o conheciam, temiam-no mais do que o apreciavam. Sempre assim foi, sempre assim seria.
Mas o submundo de então não era constituído apenas por artistas e diletantes. Moçambique projectava-se igualmente no mundo da bola, através do Matateu e do irmão Vicente, do Coluna, do Costa Pereira e do Eusébio. Mas sobretudo por uma população catalizadora, de recalcitrantes, dos perseguidos e injustiçados, discriminados, muitos deles, legalmente, pelo famigerado Acto Colonial de 1939.
Vilipendiados em Lisboa, perseguidos pela Pide, louvados e respeitados na ONU, esse “areópago de bandidos sob influência, e soldo de Moscovo apostados em destruir Portugal!” E muitos foram presos, e muitos morreram, e outros fugiram, para organizar a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). A certa altura do campeonato, aparece em Lourenço Marques, vindo da Tanzânia, um tal Joel Monteiro, ex-estivador da ponte-cais, para instalar a quinta região militar da Frelimo. Até que a Pide o apanhasse, ao fim de mais de um mês de buscas e perseguições, o Joel promoveu diversas reuniões, das quais ficaria o embrião de um sentimento global mais generalizado de recalcitrantes e contestadores. Com a detenção do Joel – a Pide prendeu, de seguida, (1964) indiscriminadamente, centenas de pessoas, entre as quais o Malangatana, o Rui Nogar e muitos outros, e até o subscritor destas linhas.
O Zé Craveirinha conseguiria fugir para o país vizinho da Suazilândia. Três meses depois, a PIDE faz-me uma proposta “generosa”: libertavam-me imediatamente, sem processo, na condição de eu ir à Suazilândia, e trazer o Craveirinha, que até já estava arrependido de haver fugido, aliás, sem razão, etc., e tal - e queria agora regressar….
Respondi que não. Nanja eu!
Então o agente sub-chefe, ensimesmado, mostra-me uma carta em que o Craveirinha, efectivamente, me pedia que o fosse buscar, porque a família estava a passar mal, tinha saudades de casa, desejava entregar-se, e se fosse necessário, juntar-se, assim, solidariamente, aos seus amigos encarcerados.
Continuei a dizer que não. Nem com promessas, ou ameaças me prestaria a isso. Não por altruismo, ou calculismo... não era nesse tipo de “libertação” que eu pensava para mim próprio. Se queriam prendê-lo, que fossem eles lá buscá-lo. Foram eles que tiveram de lá ir. E assim porque não o fiz eu, por isso paguei o meu preço, ficando mais três meses à sombra. Por castigo, na solitária. Mas também por isso tive oportunidade saber, em directo, da bizarria de um tal Lord Russel de Liverpool, homem de Esquerda, como se acentuava, que um dia foi a Lourenço Marques para tomar conhecimento das condições em que se encontravam os presos políticos, especialmente, os agora já mundialmente conhecidos, José Craveirinha e o Malangatana, que por manhosa intencionalidade dos carcereiros, se encontravam juntos, e com o Rui Nogar, na mesma cela 1. O Craveirinha perguntaria: porquê ele? Encontravam-se ali enjauladas centenas de pessoas, e até “dois brancos” não via razão nenhuma para ser privilegiado pela visita de um Lord, e portanto, recusava terminantemente em ser “visto” pelo britânico de sotaque socialista. Ele não conhecia nenhum Lord nem de esquerda, nem de direita.
Tudo isto me contaria ele num rolo de papel higiénico, que me foi trazido por um guarda moçambicano, o Ricardo, guarda-auxiliar, naturalmente, e que era o nosso correio, mal disso desconfiavam os carcereiros de carreira, e ainda menos os agentes encarregados do processo. Foi um bom amigo, o Ricardo, generoso, e corajoso, sabendo muito bem os riscos que corria naquela solidariedade com os renegados. Foi pelas mãos dele que um dia recebi um rolinho de papel higiénico a comunicar-me laconicamente que: O Joel morreu! – acompanhado de um poema, da Cela 1 para a (minha) cela 4. É – tinha morrido o Joel. Provavelmente de indigestão. Iòé, iòé, que o Joel moreu!
E agora, iòé, morreu o Craverinha! Iòé! Iòé!
Obra publicada de José Craveirinha:
-Chigubo – 1964
-Karingana wa Karingana - 1994
-Cela 1 – 1980
-Babalaze das Hienas - 1992
-Hamina e Outras Histórias - 1997
Macau, 2003
Embora fuja um bocado do contexto deste blog, sinto-me bem a publicá-lo aqui:
IOE! IOE! O CRAVERINHA MORREU!...
João C. Reis
José João Craveirinha começou a sua vida como auxiliar de escritório numa sociedade Cooperativa, não por capacidades comerciais específicas, mas por ser um potencial marcador de golos de cabeça, da equipa de futebol do Grupo Desportivo de Lourenço Marques.
Foi assim, e por essa habilidade, que o conheci, e o descrevi numa desataviada crónica desportiva que então publicava no jornal Lourenço Marques Guardian. Fiz-lhe algumas prognósticas referências nesse sentido, e ele veio agradecer-mas. Deste modo começaria uma longa convivência, que durou até Dezembro, um ano depois do 25 de Abril – quando regressei a Lisboa, após quarenta anos de interregno moçambicano.
Enganei-me nos vaticínios. Embora vizinhos, quási de porta- a- porta, como depois seria, sempre na Mafalala, com o Eusébio, e outros, o Zézé não seria um (primeiro) Matateu, obliquou, na carreira, não sei se bem, se mal – e foi para o campo das letras.
Costuma falar-se no dom de palavra de certas pessoas, espontâneas e calhadas para a oratória, mas ninguém diria que o Zé Craveirinha acabasse num verdadeiro e lídimo artífice da palavra, portuguesa, como viria a ser. O destino, ou lá o que tivesse sido, pregou-lhe essa partida, instilou-lhe na inteligência, uma agudíssima apetência por tudo quanto era escrita (tendo não mais do que a quarta classe elementar), e quando sentiu absoluta e urgente necessidade de começar a vida, entrou, pelo futebol, no comércio a fazer facturas de vendas de leite, e por acréscimo circunstancial, no jornalismo associativo, como revisor num pequeno hebdomanário propriedade de uma periférica Associação Africana - O Brado Africano, que acabaria por lhe servir de trampolim, para fazer publicar, para encher buracos vazios por falta de colaboração, alguns pequenos textos, notas sociais, e, de autoria já firmada, alguns poemas.
Seria numa dessas circunstâncias que faria uma vez publicar nesse humilde semanário periférico de mulatos, uma poesia que viria a provocar muito maior perplexidade, do que emoção: Quero Ser Tambor – tambor onde se repercutiam os gritos de miséria e revolta, e os anseios do povo da cidade do caniço, tão fortemente discriminado, explorado e oprimido. Politicamente, e socialmente, o poema teve fortíssimo impacto, decerto, muito mais pelo inesperado de uma revelação, do que pela literatura, acerto das palavras, contundência das ideias, e da consciência critica, que não cabiam bem no hábito, nem nas expectativas da gente pachorrenta e prudente daquela bela cidade perfumada, de acácias rubras e lilases jacarandás, inimiga das novidades e dos perigos subjacentes aos golpes de um mulato raivoso. Ninguém se iludiu a esse respeito, isso, não.
Talvez tivesse sido mais pelo bom português patenteado da sua escrita, do que pela poesia, ousada, exótica, que punha em questão arrogâncias e indisfarçáveis antinomias, humanas, sociais e políticas – que lhe fosse arranjado um lugar de ajudante de revisor na Imprensa Nacional. Verdadeiramente, porquê, nunca se soube. Há muitas formas de fazer calar as pessoas que falam alto de mais, umas menos subtis que outras, mas todas de eficácia comprovada.
Da Imprensa Nacional, onde se praticava o horário único, para arredondar o magro salário de “auxiliar” que auferia pelos motivos aduzidos, e pelo facto de, na profissão, não ser, propriamente, um analfabeto, foi convidado a ingressar, por acumulação, e, igualmente, como ajudante, ou auxiliar, no departamento de revisão do Notícias, o maior, e o mais rico jornal da Colónia Era assim naqueles tempos. Pretos e mulatos serviam apenas para ajudantes ou auxiliares de serviços, com salários, naturalmente, compatíveis.
E, por hábito, ou não, de uma coisa se passa a outra. Com o tempo, a situação do Craveirinha, no jornal, ganhava relevo, por estímulo do instinto, ou arreganho de competição sofreada, já escrevinhava pequenas coisas, como lhe acontecera no Brado Africano, textos curtos, anónimos, ou publicados sob pseudónimos, acabaria, mesmo, por ter direito de facto, embora não oficialmente outorgado, a uma “coluna” semanal assinada, normalmente, “cartas culturais” ou, por assim dizer, dialécticas, dirigidas a distintos - indistintos, onde escrevia coisas que ninguém mais se atrevia a escrever, por indiferença, por falta de competência, ou de coragem. Os destinatários (quando não tugiam nem mugiam, dadas a qualidade, a evidência, a força, e a curialidade dos argumentos, sobretudo, o medo da tréplica) nem sempre reagiam bem ao atrevimento do mulato. Calavam-se – mas passaram a cumprimentá-lo, cordealmente, nas ruas. E as coisas corriam. A verdade é que o jornal, sempre aos sábados, dia da prosa do Craveirinha, ganhava uma dimensão que nunca antes (nem depois) alguma vez tivera. Um, ou dois colegas, por essa ocasião, entenderam dirigir-se uma vez à então directora do Jornal a sugerir (porque era justo) que se atribuísse ao Craveirinha o estatuto de jornalista, com compensação adequada. A resposta que obtiveram ficou na história do jornal: Para “aquilo que ele é, e o seu nível natural de vida, o rapaz até ganha de mais! (O que ele recebia não chegava a metade do que ganhava um simples repórter – mas, claro, o repórter era branco, e tinha um nível de vida diferente, isto é, comia três refeições diárias, tinha que vestir e calçar, e andar engravatado, viver numa casa de alvenaria, tudo como um branco. Representar e honrar o jornal como uma instituição respeitável.
Nessa época, já nos celebrados anos 60, tempo de literaturas e rebeldias artísticas, graças, ou não, à pagina literária do Santos Abranches, do mesmo Jornal, na qual, e não por culpa do responsável, o Craveirinha não colaborava - sobrevivia uma plêiade de jovens a fazer arte e poesia, entre os quais, o Reinaldo Ferreira, o Rui Knopfli – e outros, de quem a história se esqueceu – que não dos referidos.
E daí, que alguém, por desafio, pensasse organizar um Sarau não-racial de Poesia, por ocasião da data comemorativa da do aniversário da Cidade (24 de Julho) no salão nobre do edifício da própria Câmara Municipal. Houve, naturalmente, quem resmungasse da ideia e do local onde – mas a noticia já aparecera nos jornais, ninguém se atreveria a proibir a iniciativa.
O evento, do qual se editaria depois um disco, hoje raríssimo, foi realizado (1962) em duas sessões, sob vigilância pidesca reforçada, tendo constituído, apesar disso, assinalável sucesso, principalmente porque ninguém fazia ideia daquele inesperado submundo de literatos e artistas, nos quais se incluíam ainda o arquitecto Pancho Miranda Guedes, os pintores João Aires, o Malangatana, o Obdias, o Zé Julio, Eugénio Lisboa, Augusto Cabral, o Rui Calçada Bastos, o Antero, e o Freire, os escultores Alberto Chissano, e Zé Lobo Fernandes, os contistas Luís Bernardo Honwana, a Lina Magaia, e outros rebaldecos (alguns nem tanto…) Foi uma revelação! O Zé Craveirinha passou a ser uma referência específica. Para o bem, e para o mal. No geral, mesmo entre os que o conheciam, temiam-no mais do que o apreciavam. Sempre assim foi, sempre assim seria.
Mas o submundo de então não era constituído apenas por artistas e diletantes. Moçambique projectava-se igualmente no mundo da bola, através do Matateu e do irmão Vicente, do Coluna, do Costa Pereira e do Eusébio. Mas sobretudo por uma população catalizadora, de recalcitrantes, dos perseguidos e injustiçados, discriminados, muitos deles, legalmente, pelo famigerado Acto Colonial de 1939.
Vilipendiados em Lisboa, perseguidos pela Pide, louvados e respeitados na ONU, esse “areópago de bandidos sob influência, e soldo de Moscovo apostados em destruir Portugal!” E muitos foram presos, e muitos morreram, e outros fugiram, para organizar a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). A certa altura do campeonato, aparece em Lourenço Marques, vindo da Tanzânia, um tal Joel Monteiro, ex-estivador da ponte-cais, para instalar a quinta região militar da Frelimo. Até que a Pide o apanhasse, ao fim de mais de um mês de buscas e perseguições, o Joel promoveu diversas reuniões, das quais ficaria o embrião de um sentimento global mais generalizado de recalcitrantes e contestadores. Com a detenção do Joel – a Pide prendeu, de seguida, (1964) indiscriminadamente, centenas de pessoas, entre as quais o Malangatana, o Rui Nogar e muitos outros, e até o subscritor destas linhas.
O Zé Craveirinha conseguiria fugir para o país vizinho da Suazilândia. Três meses depois, a PIDE faz-me uma proposta “generosa”: libertavam-me imediatamente, sem processo, na condição de eu ir à Suazilândia, e trazer o Craveirinha, que até já estava arrependido de haver fugido, aliás, sem razão, etc., e tal - e queria agora regressar….
Respondi que não. Nanja eu!
Então o agente sub-chefe, ensimesmado, mostra-me uma carta em que o Craveirinha, efectivamente, me pedia que o fosse buscar, porque a família estava a passar mal, tinha saudades de casa, desejava entregar-se, e se fosse necessário, juntar-se, assim, solidariamente, aos seus amigos encarcerados.
Continuei a dizer que não. Nem com promessas, ou ameaças me prestaria a isso. Não por altruismo, ou calculismo... não era nesse tipo de “libertação” que eu pensava para mim próprio. Se queriam prendê-lo, que fossem eles lá buscá-lo. Foram eles que tiveram de lá ir. E assim porque não o fiz eu, por isso paguei o meu preço, ficando mais três meses à sombra. Por castigo, na solitária. Mas também por isso tive oportunidade saber, em directo, da bizarria de um tal Lord Russel de Liverpool, homem de Esquerda, como se acentuava, que um dia foi a Lourenço Marques para tomar conhecimento das condições em que se encontravam os presos políticos, especialmente, os agora já mundialmente conhecidos, José Craveirinha e o Malangatana, que por manhosa intencionalidade dos carcereiros, se encontravam juntos, e com o Rui Nogar, na mesma cela 1. O Craveirinha perguntaria: porquê ele? Encontravam-se ali enjauladas centenas de pessoas, e até “dois brancos” não via razão nenhuma para ser privilegiado pela visita de um Lord, e portanto, recusava terminantemente em ser “visto” pelo britânico de sotaque socialista. Ele não conhecia nenhum Lord nem de esquerda, nem de direita.
Tudo isto me contaria ele num rolo de papel higiénico, que me foi trazido por um guarda moçambicano, o Ricardo, guarda-auxiliar, naturalmente, e que era o nosso correio, mal disso desconfiavam os carcereiros de carreira, e ainda menos os agentes encarregados do processo. Foi um bom amigo, o Ricardo, generoso, e corajoso, sabendo muito bem os riscos que corria naquela solidariedade com os renegados. Foi pelas mãos dele que um dia recebi um rolinho de papel higiénico a comunicar-me laconicamente que: O Joel morreu! – acompanhado de um poema, da Cela 1 para a (minha) cela 4. É – tinha morrido o Joel. Provavelmente de indigestão. Iòé, iòé, que o Joel moreu!
E agora, iòé, morreu o Craverinha! Iòé! Iòé!
Obra publicada de José Craveirinha:
-Chigubo – 1964
-Karingana wa Karingana - 1994
-Cela 1 – 1980
-Babalaze das Hienas - 1992
-Hamina e Outras Histórias - 1997
Macau, 2003
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