Ideias para Debate

Saturday, May 07, 2005

Textos de Elisio Macamo

Com os problemas informáticos e a chegada de novos textos interrompi a publicação dos textos de Elisio Macamo sobre as regras do debate.
Hoje retomo:


Não morreu por ser burro (9)

Uma vez acompanhei uma conversa entre amigos em que surgiu o tema do acidente de Mbuzini que vitimou Samora Machel e a sua delegação. Eles estavam a falar duma das pessoas que havia perecido nesse acidente e que tinha sido chefe dum deles. Lamentaram a sua morte e, num desabafo mal pensado, um deles comentou que teria sido melhor que tivesse sido uma outra pessoa – um outro chefe – que não fez parte da fatídica delegação presidencial, a perecer. A outra pessoa retorquiu secamente: “esse não morreu por ser burro”.
Precisei de alguns segundos para perceber a lógica por detrás desta afirmação. Não morreu por ser burro. Não percebi logo porque a cadeia de argumentação tinha sido rápida demais para mim. Na verdade, o argumento contém uma premissa escondida. Essa premissa é que dá sentido à conclusão. Para a pessoa em questão morrer no acidente tinha que ter acompanhado o presidente. Não o fez porque, aí vem a premissa escondida, não reunia as qualidades necessárias para fazer parte duma delegação presidencial. Só pessoas não-burras é que podiam acompanhar o presidente, logo, quem não o acompanhou, mas em princípio o podia ter feito, não o fez porque era burro.
O argumento pode ser exposto em três passos. Primeiro, podíamos ter uma premissa geral segundo a qual todos os membros duma comitiva presidencial são não-burros (inteligentes). Segundo, podíamos elaborar uma premissa mais particular do estilo, “fulano de tal não faz parte da comitiva presidencial”. Terceiro, tiraríamos a seguinte conclusão: Fulano de tal é burro. O resto é brincadeira de crianças: por ser burro não fez parte da comitiva presidencial e, por isso, não morreu.
Esta argumentação é dedutiva. Isto é, a pessoa que argumenta parte de premissas fortes e sólidas. Em virtude disso, a conclusão que tira tem que ser válida. Noutros termos, um argumento dedutivo é um argumento em que as premissas não podem estar certas e a conclusão estar errada. A conclusão tem que ser verdadeira. Se digo, por exemplo, que Arnaldo Salvado é um bom treinador de futebol posso me apoiar, para o efeito, em duas premissas. Primeiro, que todo o treinador que ganha títulos com várias equipas é bom treinador. Segundo, que Arnaldo Salvado ganhou muitos títulos com várias equipas. Logo, é um bom treinador. Para esta conclusão estar errada era necessário que uma das premissas fosse incorrecta. Por exemplo, que Arnaldo Salvado não fosse treinador de futebol, não tivesse ganho nenhum título e, porque não, que o número de títulos ganhos não fosse aceite como critério de qualidade.
O que esta breve discussão sugere é a importante ideia de que na maior parte das vezes é pura perca de tempo discutir conclusões. As pessoas podem dizer o que lhes vem na cabeça. Não vai ser por isso que o mundo vai deixar de ser o que é, muito embora a história registe casos de pessoas com fraca capacidade de argumentação que alteraram o mundo de forma radical. Mas isso leva-nos para muito longe do tema. Perante um argumento dedutivo, aliás perante qualquer argumento, o que temos a fazer é sempre questionar as premissas.
No nosso exemplo de partida, a saber escapar à morte por se ser burro, podíamos questionar várias coisas. Podíamos, por exemplo, questionar se, de facto, toda a gente que fez parte da comitiva presidencial era mesmo inteligente. E como medimos essa inteligência? Pelo grau de escolaridade? Pelo que nós sabemos dos critérios de selecção para a comitiva presidencial? Se no fim deste exercício constatamos que inteligência não era realmente o critério mais relevante teremos que abandonar a conclusão. Ela já não resulta das premissas. É inválida. Se calhar era preciso ser amigo do presidente ou partilhar as suas visões políticas para ser convidado a integrar a comitiva. Nesse caso, o dirigente burro não escapou à morte por ser burro, mas sim por não ser amigo do presidente.
A conclusão dum argumento dedutivo é válida ou inválida. Tudo depende das premissas. A nossa atenção tem que incidir sobre elas. Quem tiver lido os livros de Sherlock Holmes há-de estar familiarizado com este tipo de argumentação. Sherlock Holmes argumentou sempre de forma dedutiva. Como ele costumava dizer, depois de eliminar tudo quanto é impossível, o que sobra, mesmo que seja improvável, é a verdade. O argumento dedutivo exige muita informação. As premissas têm que ser intocáveis.
Uma vez estava sentado à mesa do almoço com dois colegas africanos. Um vinha de Burkina Faso e outro da Zâmbia. O de Burkina Faso trazia um penteado “rasta” e tinha um cheiro que ofendia o olfacto. Após o almoço, o zambiano cochichou-me no ouvido que o burkinabé estava drogado. O zambiano reflectiu de forma dedutiva. Partiu do pressuposto que uma vez que o burkinabé trazia penteado “rasta” e “todos” os rastas se drogam, o cheiro que ele sentiu era dum estupefaciente qualquer. A verdade, porém, é que o burkinabé trazia um perfume típico da África Ocidental que tresanda, mas é bastante popular na região. O zambiano não o conhecia.
Portanto, a premissa do cheiro não era suficiente para apoiar a conclusão segundo a qual ele estaria drogado. A conclusão, portanto, não podia ser válida. Mesmo a generalização sobre os “rastas” é problemática. Basta um caso dum “rasta” que não se droga para lançar dúvidas sobre a premissa.

3 Comments:

  • Gostei da forma como vc trabalhou o método dedutivo e indutivo e a questão das premissas - muito original - retirar exemmplos do dia-a-dia. Vou levar este texto para os meus alunos.

    Antuterpio - Brasil

    By Blogger NEGROS EM AÇÃO, at 7:20 AM  

  • Sem duvidas, o ProfDoutor Macamo apresenta boa estrategia argumantativa pra ensinar a estrategia dedutiva.Nos aprendemos. Vi este texto no ano em que ele publicou no jornal, guardei a pagina cultural em causa e so me desapareceu, nao sei como, em 2011. hoje recuperei...

    By Blogger Unknown, at 3:52 AM  

  • Sem duvidas, o ProfDoutor Macamo apresenta boa estrategia argumantativa pra ensinar a estrategia dedutiva.Nos aprendemos. Vi este texto no ano em que ele publicou no jornal, guardei a pagina cultural em causa e so me desapareceu, nao sei como, em 2011. hoje recuperei...

    By Blogger Unknown, at 3:55 AM  

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