Ideias para Debate

Tuesday, April 26, 2005

Como debater

Continuo hoje a publicar os textos teóricos de Elisio Macamo sobre a forma de debater ideias:


Papo, paleio, testemunho (7)

Os três artigos anteriores mostraram, espero, o que fazemos quando debatemos. Fazemos essencialmente uma de três coisas: descrevemos o mundo, defendemos opiniões e motivamos os outros. O mais simples, como deve ser evidente, é descrever o mundo. É mais difícil defender opiniões e muito mais difícil ainda motivar outras pessoas. Facilita a vida interiorizar algumas regras simples que nos ajudem a alcançar os nossos objectivos. Na verdade, não só facilita a vida como também melhora a qualidade do debate público.
É simples descrever o mundo porque, em princípio, partilhamo-lo da mesma maneira. Se eu disser que está a chover, está a fazer frio ou está calor muitos vão concordar comigo. Podemos não estar de acordo sobre o que é muita chuva, muito frio e muito calor. Alguns até podem dizer que chuvisco não é chuva, que 15 graus não é frio e que 35 graus não é calor. Podem. Mas temos a mesma referência e, em princípio, a probabilidade de estarmos de acordo sobre isso é muito forte.
Quando descrevemos o mundo servimo-nos das bases desse acordo. Referimo-nos ao senso comum para fundamentar as nossas observações. Como vimos em ocasiões anteriores podemos, até, recorrer à autoridade de certas pessoas ou instituições para confirmar a validade das nossas observações. Uma boa descrição é uma descrição que apresenta claramente os seus critérios de validade. Se quero descrever a situação de pobreza no país tenho que fazer referência aos dois terços de moçambicanos em situação de pobreza absoluta, tenho que falar das coisas de que estão privadas, tenho que falar das condições vulneráveis em que vivem. Recorro a relatórios e estatísticas oficiais, à opinião de peritos na matéria e, talvez, ao próprio testemunho dos “pobres”.
O mais difícil é, conforme já dito, tentar convencer. Convencer significa levar as outras pessoas a abandonarem as suas próprias crenças ou, no caso de não terem nenhuma, a adoptar as nossas. Impomos, portanto, a nossa opinião aos outros. Isso não é fácil, sobretudo numa democracia. Como todos nós sabemos nos outros períodos da nossa história a coerção sempre conseguiu fazer isso. Acreditando ou não, muitos de nós exaltaram os valores do socialismo. Há, é claro, certas democracias que convencem também coercivamente. Nos EUA, por exemplo, um dos efeitos nefastos da guerra contra o terrorismo é a limitação da liberdade de expressão que se manifesta numa profunda hostilidade aos espíritos críticos. Nessas circunstâncias só mesmo os corajosos é que ousam criticar.
O acto de convencer envolve, em lógica, dois passos. O primeiro é normal e já conhecido: é preciso proporcionar as razões que fundamentam uma conclusão. Por exemplo, porque é que a pobreza é um problema sério? O segundo passo é que produz as dificuldades. A maioria das pessoas relaciona-se com o mundo e com as outras pessoas usando valores como intermediários. Pessoas com convicções religiosas, por exemplo, veem o mundo como algo feito por Deus. Isso influencia a maneira como eles o apreendem. Outros acham que o mundo foi feito para beneficiar os homens. Isso tem um efeito na forma como eles usam os recursos naturais. Há pessoas que têm opiniões assentes sobre a relação que as pessoas devem manter entre si: o amor ao próximo, o fim da exploração do homem pelo homem, o benefício individual, etc. Quando queremos convencer temos que apelar a estes valores que as pessoas têm. Temos que demonstrar às pessoas que com base nos seus próprios valores é incoerente não aceitar as conclusões que tiramos.
Por exemplo, se os nossos interlocutores são um grupo de tribalistas que acham que só um machangana é que pode ser governador de Gaza e nós queremos convencer essas pessoas a aceitarem a ideia de que um macua possa também ser um bom governador de Gaza podemos recorrer a esta estratégia. Podemos começar por identificar os valores dos tribalistas. Suponho que eles dêm muita importância à preservação da identidade cultural, ao uso da língua local, bem como ao trabalho em prol das populações locais. Se eu puder demonstrar que um governador macua é muito bem capaz de satisfazer estes critérios, se calhar até melhor do que um governador machangana, será difícil aos tribalistas não se deixarem convencer. Podem continuar a fazê-lo, mas essa atitude já não terá nada a ver com debate racional.
O que é mais difícil ainda é motivar as pessoas, “bater política” como se dizia no exército. Aqui a dificuldade reside essencialmente no facto de que não só é preciso fundamentar conclusões com base em factos e valores, como também mover as pessoas a fazerem determinadas coisas. A publicidade faz isto muito bem. É um dos melhores argumentos motivadores. Ela consegue fazer isso porque satisfaz uma boa parte dos critérios que esse tipo de argumentos deve reunir. É sólido no sentido de fornecer razões válidas e pertinentes; é moralmente correcto porque apela directamente aos valores dos seus interlocutores; finalmente, e mais importante neste tipo de argumentos, penhora a própria idoneidade. Ninguém se deixa convencer pela publicidade duma empresa com má imagem.
Quando queremos motivar, portanto, temos que satisfazer estes critérios. Um exemplo oportuno é convencer o eleitorado a votar em eleições locais. Para conseguir isto não basta demonstrar a importância do voto, nem convencer o eleitorado que não votar é contra os seus próprios valores. A mensagem tem maiores probabilidades de ser aceite se o eleitorado reconhece idoneidade na pessoa que faz o apelo. Um político que não se distinguiu pelo trabalho em prol dos seus próprios eleitores dificilmente conseguirá motivá-los.
Quem sabe, se calhar os altos níveis de abstenção têm mesmo a ver com a idoneidade dos que conduzem os orgãos locais.

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