Argumentos
No texto de hoje Elísio Macamo fala-nos do que é argumentar, coisa que muitos de nós ignoramos, como se pode ver em alguns textos de polémicas nos nossos jornais:
Argumentar (3)
Argumentar é tirar conclusões. Uma conclusão é uma afirmação para a qual temos razões. Conclusão: Está a chover. Razões: está a jorrar água de cima; não posso ir à praia hoje; a esteira no quintal está a ficar molhada.
Conclusão: A Frelimo ganhou as autárquicas. Razões: os resultados eleitorais mostram que ela teve mais votos que a oposição; a comissão nacional de eleições declarou-a vencedora. Conclusão: Alguém me enfeitiçou. Razões: não sou promovido no serviço; os médicos não conseguem descobrir a doença que tenho.
Conclusão: o ministro fulano de tal é corrupto. Razões: leva um estilo de vida incompatível com o seu salário de ministro; a cooperação sueca decidiu cortar o seu apoio a projectos do seu ministério. Etc.
No fundo, qualquer pessoa pode tirar conclusões. Mesmo os que argumentam mal. Por isso não basta dizer que argumentar é tirar conclusões. Deve-se acrescentar a isso a capacidade de fundamentar as suas conclusões. Como é sabido há conclusões fundadas e conclusões infundadas. A diferença entre um bom argumento e um mau argumento é exactamente a diferença entre uma conclusão fundada e uma conclusão infundada. É a diferença entre apoiar a conclusão em razões fortes ou não.
Muitas vezes tiramos conclusões sem precisarmos de tornar explícitas as razões. Isso é normal. De resto, partilhamos o mesmo mundo e, em princípio, existe entre nós um certo consenso sobre o material de que esse mundo é feito. Seria extremamente estranho se, por exemplo, sempre que dissesse a alguém que ontem tinha chovido tivesse que acrescentar que sei isso porque os serviços metereológicos o disseram, porque certas coisas ficaram molhadas, etc. Depois de algumas intervenções desse género as pessoas fartavam-se e passavam-me um atestado informal de desequilíbrio mental.
As pessoas fariam isso porque há coisas que são evidentes.
Há muitas outras que não são evidentes. Sobretudo no campo político. Mas justamente no campo político deparamos constantemente com conclusões problemáticas que ninguém julga necessário fundamentar porque, aparentemente, são “evidentes”. As acusações de corrupção fazem parte dessas conclusões não fundamentadas. Qual é, por exemplo, a base da acusação segundo a qual um determinado ministro é corrupto? O facto de viver acima do seu salário como ministro? O facto de “toda a gente saber” que ele é corrupto? Que tal se a base do seu estilo de vida for uma lotaria que ganhou numa viagem fora do país? Que tal se “toda a gente” for apenas um grupo de pessoas que tem um interesse especial em manchar a imagem desse ministro ou do governo?
Atenção. Estas interrogações não querem pôr em causa a realidade da corrupção no nosso país. É bem possível que ela seja mesmo tão séria quanto se diz ser. O que se pretende dizer aqui é simplesmente que quem tira uma conclusão tem a obrigação de verificar se as razões que tem para a sustentar são suficientemente fortes.
Em lógica as razões têm o nome de “premissas”. Há essencialmente dois tipos de argumentos. Os argumentos dedutivos em que as conclusões são válidas por força da solidez das premissas. Ou por outra, se as premissas são fortes a conclusão não pode estar errada. Os argumentos indutivos em que as conclusões são plausíveis. As premissas só precisam de substanciar uma especulação. Nos dois últimos artigos desta série analisaremos esses tipos de argumento mais de perto.
A arte de argumentar reside essencialmente na capacidade de proporcionar razões para sustentar conclusões. Isso implica também que a análise dum argumento não consiste na rejeição duma conclusão, mas sim, tecnicamente falando, na rejeição de premissas, isto é razões. Se alguém diz que foi enfeitiçado a minha preocupação como arguente não é de dizer “não, tu não foste enfeitiçado”. É sim de perguntar que razões lhe levam a dizer isso. Se ele me disser que é porque não é promovido no serviço ou os médicos não descobrem a doença que tem, então analiso essas razões. Se calhar a falta de promoção tem a ver com o facto de ele ser mau trabalhador, não ter as qualificações necessárias, etc. Da mesma maneira, a incapacidade dos médicos em diagnosticar a sua doença pode estar ligada à própria incapacidade dos médicos, aos nossos meios exíguos e, também, à sua incapacidade de comunicar claramente o que lhe dói.
Este exemplo não é dos melhores. Casos de feitiçaria são difíceis porque pressupõem tipos de realidade difíceis de captar. Têm também uma estrutura argumentativa diferente. Pela negativa. São circulares. Para qualquer das interpelações feitas no parágrafo anterior a pessoa podia sempre dizer (i) “sou mau trabalhador porque alguém me enfeitiçou”, (ii) “não tenho qualificações porque alguém me enfeitiçou”, (iii) “os médicos são incapazes porque alguém me enfeitiçou”. Com gente que argumenta assim o debate não é possível. Há um mínimo de consenso necessário.
Se não queremos enveredar pelos caminhos sinuosos da feitiçaria temos que aprender a defender melhor as nossas conclusões. Um filósofo britânico, Stephen E. Toulmin, publicou um livro bastante famoso – “The Uses of Argument”, 1964 – em que identificava três passos importantes numa argumentação. Ele identificou primeiro as conclusões, que já expusemos aqui. Identificou também aquilo que chamou de “provas” e “implicações”. As provas são idênticas às premissas de que também já falámos. A parte mais interessante do seu modelo são as implicações. Elas estabelecem a ponte entre conclusões e provas.
Por exemplo, numa entrevista recente um político nacional respondeu a uma pergunta dum jornalista sobre se o seu partido tinha filosofia política ou não dizendo que mais de 60 por cento do eleitorado tinha votado nele. A implicação que sustenta este raciocínio é a ideia de que as pessoas só votam em alguém se estão convencidas de que ele tem filosofia política. Não é um bom argumento, como se poderia facilmente demonstrar, mas ilustra a ideia por detrás da noção de implicação. Seria, por exemplo, necessário provar que as pessoas só votam por uma filosofia política, que esses 60 por cento fizeram-no mesmo por isso, etc. Seria também necessário explicar a noção de “filosofia política” e se o eleitorado consegue reconhecer uma filosofia política quando a vê.
Argumentar (3)
Argumentar é tirar conclusões. Uma conclusão é uma afirmação para a qual temos razões. Conclusão: Está a chover. Razões: está a jorrar água de cima; não posso ir à praia hoje; a esteira no quintal está a ficar molhada.
Conclusão: A Frelimo ganhou as autárquicas. Razões: os resultados eleitorais mostram que ela teve mais votos que a oposição; a comissão nacional de eleições declarou-a vencedora. Conclusão: Alguém me enfeitiçou. Razões: não sou promovido no serviço; os médicos não conseguem descobrir a doença que tenho.
Conclusão: o ministro fulano de tal é corrupto. Razões: leva um estilo de vida incompatível com o seu salário de ministro; a cooperação sueca decidiu cortar o seu apoio a projectos do seu ministério. Etc.
No fundo, qualquer pessoa pode tirar conclusões. Mesmo os que argumentam mal. Por isso não basta dizer que argumentar é tirar conclusões. Deve-se acrescentar a isso a capacidade de fundamentar as suas conclusões. Como é sabido há conclusões fundadas e conclusões infundadas. A diferença entre um bom argumento e um mau argumento é exactamente a diferença entre uma conclusão fundada e uma conclusão infundada. É a diferença entre apoiar a conclusão em razões fortes ou não.
Muitas vezes tiramos conclusões sem precisarmos de tornar explícitas as razões. Isso é normal. De resto, partilhamos o mesmo mundo e, em princípio, existe entre nós um certo consenso sobre o material de que esse mundo é feito. Seria extremamente estranho se, por exemplo, sempre que dissesse a alguém que ontem tinha chovido tivesse que acrescentar que sei isso porque os serviços metereológicos o disseram, porque certas coisas ficaram molhadas, etc. Depois de algumas intervenções desse género as pessoas fartavam-se e passavam-me um atestado informal de desequilíbrio mental.
As pessoas fariam isso porque há coisas que são evidentes.
Há muitas outras que não são evidentes. Sobretudo no campo político. Mas justamente no campo político deparamos constantemente com conclusões problemáticas que ninguém julga necessário fundamentar porque, aparentemente, são “evidentes”. As acusações de corrupção fazem parte dessas conclusões não fundamentadas. Qual é, por exemplo, a base da acusação segundo a qual um determinado ministro é corrupto? O facto de viver acima do seu salário como ministro? O facto de “toda a gente saber” que ele é corrupto? Que tal se a base do seu estilo de vida for uma lotaria que ganhou numa viagem fora do país? Que tal se “toda a gente” for apenas um grupo de pessoas que tem um interesse especial em manchar a imagem desse ministro ou do governo?
Atenção. Estas interrogações não querem pôr em causa a realidade da corrupção no nosso país. É bem possível que ela seja mesmo tão séria quanto se diz ser. O que se pretende dizer aqui é simplesmente que quem tira uma conclusão tem a obrigação de verificar se as razões que tem para a sustentar são suficientemente fortes.
Em lógica as razões têm o nome de “premissas”. Há essencialmente dois tipos de argumentos. Os argumentos dedutivos em que as conclusões são válidas por força da solidez das premissas. Ou por outra, se as premissas são fortes a conclusão não pode estar errada. Os argumentos indutivos em que as conclusões são plausíveis. As premissas só precisam de substanciar uma especulação. Nos dois últimos artigos desta série analisaremos esses tipos de argumento mais de perto.
A arte de argumentar reside essencialmente na capacidade de proporcionar razões para sustentar conclusões. Isso implica também que a análise dum argumento não consiste na rejeição duma conclusão, mas sim, tecnicamente falando, na rejeição de premissas, isto é razões. Se alguém diz que foi enfeitiçado a minha preocupação como arguente não é de dizer “não, tu não foste enfeitiçado”. É sim de perguntar que razões lhe levam a dizer isso. Se ele me disser que é porque não é promovido no serviço ou os médicos não descobrem a doença que tem, então analiso essas razões. Se calhar a falta de promoção tem a ver com o facto de ele ser mau trabalhador, não ter as qualificações necessárias, etc. Da mesma maneira, a incapacidade dos médicos em diagnosticar a sua doença pode estar ligada à própria incapacidade dos médicos, aos nossos meios exíguos e, também, à sua incapacidade de comunicar claramente o que lhe dói.
Este exemplo não é dos melhores. Casos de feitiçaria são difíceis porque pressupõem tipos de realidade difíceis de captar. Têm também uma estrutura argumentativa diferente. Pela negativa. São circulares. Para qualquer das interpelações feitas no parágrafo anterior a pessoa podia sempre dizer (i) “sou mau trabalhador porque alguém me enfeitiçou”, (ii) “não tenho qualificações porque alguém me enfeitiçou”, (iii) “os médicos são incapazes porque alguém me enfeitiçou”. Com gente que argumenta assim o debate não é possível. Há um mínimo de consenso necessário.
Se não queremos enveredar pelos caminhos sinuosos da feitiçaria temos que aprender a defender melhor as nossas conclusões. Um filósofo britânico, Stephen E. Toulmin, publicou um livro bastante famoso – “The Uses of Argument”, 1964 – em que identificava três passos importantes numa argumentação. Ele identificou primeiro as conclusões, que já expusemos aqui. Identificou também aquilo que chamou de “provas” e “implicações”. As provas são idênticas às premissas de que também já falámos. A parte mais interessante do seu modelo são as implicações. Elas estabelecem a ponte entre conclusões e provas.
Por exemplo, numa entrevista recente um político nacional respondeu a uma pergunta dum jornalista sobre se o seu partido tinha filosofia política ou não dizendo que mais de 60 por cento do eleitorado tinha votado nele. A implicação que sustenta este raciocínio é a ideia de que as pessoas só votam em alguém se estão convencidas de que ele tem filosofia política. Não é um bom argumento, como se poderia facilmente demonstrar, mas ilustra a ideia por detrás da noção de implicação. Seria, por exemplo, necessário provar que as pessoas só votam por uma filosofia política, que esses 60 por cento fizeram-no mesmo por isso, etc. Seria também necessário explicar a noção de “filosofia política” e se o eleitorado consegue reconhecer uma filosofia política quando a vê.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home