Ideias para Debate

Saturday, April 16, 2005

Os Langas

Raio de família esta dos Langas que nos entra pela casa dentro com um pensar profundo sobre a nossa realidade.
Agora é o Quitério, irmão do Patrício, e devo dizer que há muito tempo não lia um texto sobre Moçambique que me desse tanto prazer:

UMA REFLEXÃO CRÍTICA SOBRE A MORAL NA HISTÓRIA DE MOÇAMBIQUE

Uma das qualidades que muito aprecio na geração da revolução moçambiana, é o facto de ter sido uma geração com fortes convicções, uma geração que seguiu um ideal pelo qual muitos foram capazes até de pôr em causa as suas próprias vidas. Não pretendo avaliar, muito menos julgar as razões históricas e contextuais que orientaram o surgimento desses ideais e convicções, realço apenas que o facto de ser uma geração com convicções e ideais é por sí significativo.

Constitui não apenas moral da história, como um facto presente nas diversas narrativas que constituem a história oficial deste país, que os ideais pelos quais esta geração se empenhou e dedicou grande parte da sua vida, envolvia como elemento fundamental a busca da liberdade. A busca da liberdade como projecto orientador dos ideais desta geração pressupunha em primeiro lugar acabar com o sistema de dominação colonial e, consequentemente o assumir do poder de Estado como garantia para a sua consolidação.

Sob o ponto de vista da moral, o projecto deste movimento libertador era moralmente aceitável, rementendo assim a dominação colonial na qual viviam milhões de moçambicanos residentes neste espaço geo-político para uma condição imoral. Ainda que assim se possa concluir, é preciso considerar que sob a imoralidade da colonização subjaz o projecto da moral civilizacional como projecto libertador. A questão que pretendo aqui discutir, é se serão estas duas dimensões da moral contraditórias?

Numa análise simples podem até ser, mas vejamos antes de que substrato de valores nos referimos quando falamos da moral e quais os interesses subjacentes a cada projecto libertador, mas talvéz seja necessário considerar em primeiro lugar que se existe algum princípio que possa servir de indicador dos valores da moral, este enquadra-se na ordem simbólica de distinção entre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, entre outros.

A busca da liberdade foi o ideal que orientou a geração da revolução moçambicana a empreender variadas acções com maior destaque para a luta armada, sob o desígnio moral de combaterem uma imoralidade: a dominação colonial. Todas as acções encetadas sob este desígnio encontravam a justificativa moral para a sua legitimação.

Antes porém, durante a vigência do domínio colonial, a acção civilizacional fundamentava-se sob a mesma justificativa e aí encontrava espaço de legitimação, ou seja, a colonização visava a acção moral de civilização. Sob o princípio civilizacional, esta acção era também um mecanismo de libertação dos povos do atraso cultural e tecnológico. É interessante notar que a moral foi usada pelos dois projectos libertadores como uma forma de produzir as questões fundamentais da vida quotidiana, e fundamentalmente como uma regra de justificação de um projecto que se pretende legítimo para a sociedade.

Tanto a geração da revolução moçambicana, quanto o colonialismo agiram todos sob um legado moralista e libertador, o que os diferencia é que os primeiros procuraram “libertar os povos” da dominação de um poder imposto por homens, enquanto que os segundos procuraram “libertar os povos” da dominação de um poder imposto por sua própria condição existencial. Certamente que de acordo com o ângulo de observação poder-se-á considerar um ou outro dos dois projectos libertadores mais ou menos dignos, mas não procuremos julgar nada nem ninguém, olhemos apenas para os factos e analisemo-los objectivamente.

Na sequência da acção do movimento libertador orientado por uma visão política, os empreendimentos revolucionários foram a princípio estimulados e cultivados tendo sido requeridos para salvar a sociedade do domínio colonial, e sob esse desígnio as acções revolucionárias como um meio de defesa contra os inimigos foram tomados como sendo moralmente correctas e por conseguinte necessárias. Do mesmo modo, mas numa época anterior, na sequência da acção dos movimentos libertadores orientados por uma visão cultural, os empreendimentos civilizacionais foram estimulados e cultivados, tendo também sido requeridos para salvar a sociedade do atraso cultural e tecnológico, e sob esse desígnio, as acções civilizacionais como um meio de defesa foram também tomadas como sendo moralmente correctas e por conseguinte necessárias.

Vemos assim que a moral foi usada em primeiro lugar como uma expressão da vontade de conquista da liberdade, tanto política como cultural, e é sob esse princípio que encontramos tanto nos ideais revolucionários, como nos ideais civilizacionais uma convicção que degenerou num ideal de luta e de produção de valores que orientaram suas acções. No fundo verifica-se sobretudo que a moral não é mais do que uma expressão dos valores superiores que devem ser seguidos por uma sociedade.

O que este pressuposto não explicita tanto na acção revolucionária, quanto na acção civilizacional, é por um lado quem emana esses valores, e por outro, qual o seu substrato ontológico. Ainda assim, observa-se que a busca da liberdade não foi mais do que um mecanismo de liquidação de uma sociedade fraca, porque dominada, e doente, porque atrasada, sob o ideal da criação de um homem novo e livre. Outro aspecto que este pressuposto não explicita é que a moral da sociedade tem uma orientação diametralmente oposta da moral dos homens da vanguarda tanto revolucionária quanto civilizacional, pois enquanto para a sociedade a moral é um meio de aperfeiçoamento do homem, para os homens da vanguarda a moral não é mais do que a expressão da vontade de dominio[1], ou seja, um meio de produção de um homem independente dos contrangimentos da moral popular, um homem cujo objectivo fundamental é o alcance do poder.

Ocorre por consequência questionar qual é o protótipo de homem novo e livre que se pretendeu erigir pelos dois empreendimentos libertadores? Por consequência dos factos, verifica-se que pretendeu-se erigir um homem livre da dominação colonial e um homem livre do atraso cultural e tecnológico, ou seja, um homem politicamente revolucionário e um homem culturalmente civilizado. Ainda assim, se se fizer uma análise um pouco mais cuidadosa verifica-se que tanto os empreendimentos revolucionários, como os civilizacionais, longe de erigirem um homem livre como pretenderam postular nos seus ideais, desenvolveram-se como um instrumento perfeito de dominação.

Orientando-se pela lógica e princípio libertador, e com a cumplicidade da sociedade[2], pela cega obediência aos projectos libertadores ligados aos preceitos da moral popular, rejeitaram os valores da dominação colonial e do existencialismo cultural, e em seu lugar estabeleceram um conjunto de valores vinculativos dos interesses dos homens da vanguarda, estabeleceram um código de conduta para o homem comum, tanto revolucionário quanto civilizado, e deles exigiu-se como virtude que algemassem as forças ascendentes da vida e que mortificassem seus desejos espirituais, de acordo com os princípios que orientam a moral popular.

Vê-se assim que o empreendedorismo, a temeridade, a astúcia e principalmente a luta pela conquista da liberdade, foram a princípio estimulados e cultivados como meios de defesa contra a dominação colonial por um lado e o atraso cultural e tecnológico por outro, mas em seguida, depois de vencido o inimigo, ou seja depois de vencido o colonialismo e conquistada a civilização, estes mesmos valores foram considerados como práticas imorais e perigosas e foram sendo gradualmente estigmatizadas.

Se a princípio a moral libertadora estava associada a luta pela conquista da liberdade, porque o homem revolucionário e o homem civilizado devem abdicar-se de prosseguir com os seus ideais libertadores como meio de conquista contínua da sua liberdade e de seu bem estar? A expressão da vontade de domínio faz parte da moral dos homens da vanguarda, dos homens cujo status lhes permite lutar por sua perfectibilidade, e não da moral popular, esta pelo contrário remete os homens para a pura e cega obediência, para o purgatório, para a sua real condição de servidores dos interesses dos homens de vanguarda e por sí definidos. É razão para questionar, que alcance tem na actualidade o projecto da moral libertadora formada pela geração da revolução moçambicana?

DESAFIOS PARA UMA MORAL DEMOCRÁTICA

“ O individuo só se torna sujeito, cidadão, se opuser à lógica de dominação social em nome de uma lógica da liberdade, da livre produção de si próprio”
(Tourainne, 1994: 277)

Um dos discursos comuns na actualidade é que estamos numa sociedade que perdeu os seus valores morais. A ideia da perda dos valores morais está associada a perda dos valores da moral popular, da moral como um espaço de produção do homem obediente aos valores normativos da sociedade. Todos temem o despertar dos espíritos virtuosos, empreendedores, espíritos dispostos a desvelar os caminhos da virtuosidade humana.

Qual o receio que existe da emergência deste modelo de homem? É que o empreendedorismo, a perda da temeridade, e principalmente a luta pela busca contínua da liberdade aproxima os homens do poder e isso é visto como uma acção perigosa e é assim combatida decididamente, afinal a revolução já triunfou e já fazemos parte da civilização.

Por esse facto os homens da vanguarda revolucionária estabeleceram mecanismos de controlo social cujo objectivo fundamental é evitar que se materialize o ideal de cidadania proposto por Touraine e, perpectuar deste modo o seu projecto de libertação, transfigurado num projecto de dominação. Neste âmbito, configuraram-se na minha análise sobre a realidade moçambicana, certos macanismos de controlo social orientados a deter a emergência dos espíritos libertadores tais como: o controlo sobre a pobreza e o controlo sobre a tradição.

Controlo sobre a pobreza:

No controlo sobre a pobreza, o mecanismo recentemente adoptado foi desenhado pelo PARPA, (Programa de Alívio e Redução da Pobreza Absoluta do governo da Frelimo), e configura-se em duas linhas fundamentais: Primeiro tornar a pobreza um fenómeno de natureza oficial e de domínio público, e segundo traçar os contornos da sua génese.

Para cumprir com o primeiro pressuposto, era necessário que a pobreza passasse a obedecer a alguns critérios de reconhecimento e validação universal tais como a objectividade científica, a empiricidade e a conceptualização. Com uma garantia de legitimação científica, a objectividade da pobreza ultrapassa hoje os limites da ciência e tornou-se um senso comum cujo consenso a evidência não deixa margens de dúvida.

Mas porque não bastava o cunho de legitimidade científica para que a pobreza tivesse um reconhecimento oficial e social, era necessário complementá-lo com a definição que fundamentasse a sua génese. Para tal os homens da vangurada revolucionária insistem no seu discurso sobre o legado histórico colonial como factor determinante e inquestionavel da génese da pobreza. Se se quiser concordar com esta tese devemos antes separar os diversos momentos históricos e procurarmos situar a época em que se regista uma descontinuidade económicamente negativa que terá levado o país a tornar-se pobre.

A história oficial ensina-nos de entre várias razões que Moçambique tornou-se pobre fundamentalmente por duas razões. Primeiro pelo saque secular da riqueza económica e segundo pela pobreza económica de seu colonizador. Estas teses são problemáticas, porque ainda hoje se considera, pelo menos ao nível interno que Moçambique goza de uma vasta gama de recursos naturais que o tornam num país rico nesse aspecto, e por outro verifica-se que nem todos os países se tornaram ricos por serem detentores de recursos naturais. Mais ainda, observa-se que muitos países cujo colonizador tinha melhores vantagens económicas em relação a Portugal são ainda pobres hoje, ou seja, a detenção de recursos naturais e o estatuto económico do colonizador não determinam o estado económico de suas colónias. O mais interessante destas teses é o facto dos historiadores começarem por criticar o sistema de dominação colonial para depois exigirem do colonizador que tivesse assumido a responsabilidade sobre suas colónias sob o ponto de vista económico, sabido qual é o interesse do colonizador. Passados 30 anos de independência a tese do legado colonial como factor determinante da génese da pobreza não faz sentido.

É porque esta tese deixou de fazer sentido que os homens da vanguarda abriram espaço para a participação de vários outros sectores na luta contra a pobreza, destacando-se de entre vários o domínio religioso que para validar a sua acção produziu a sua elaboração sobre a génese da pobreza. Proclamando uma sociedade em crise, cujos desaires atribui-se ao afastamento de Deus, o domínio religioso vai construir a sua adesão e um compromisso em primeiro lugar com o poder político, dentro do novo quadro político por forma a que não se veja cerceada de seguir com a sua missão.

Na sequência da abertura do discurso político, e verificando a sua incapacidade em promover acções com uma eficácia económica real, o que este domínio faz é definir a pobreza como sendo resultado da corrupção, mas não de qualquer corrupção, senão daquela que se apoderou da alma dos moçambicanos, da corrupção espíritual, ela é neste domínio produto do afastamento de Deus, resultado de décadas de descrença.

A geração dos homens da vanguarda ao abrirem espaço para a participação de diferentes sectores na definição e combate contra a pobreza, conseguiram vincular com habilidade o seu projecto político na legitimação do seu discurso sobre a pobreza, porquanto esta está para além de um recurso discursivo, ela é produto de uma elaboração científico-religiosa com vista a demonstrar a evidente condição sub-humana de vida dos moçambicanos.

A face perfeita deste domínio de controlo é garantida assim pelo projecto científico-religioso, no qual a geração dos homens da vanguarda constitui o seu núcleo, configurando-o num projecto político que define o seu modelo de dominação jamais superado, e aqui a pobreza não é mais do que o seu mecanismo eficaz de controlo social porquanto o combate à pobreza é sobretudo um processo através do qual a sociedade outorga ao Estado a sua liberdade e garante obediência, e em troca espera como retribuição a sua segurança e assistência.

Pode ser mais fácil governar pobres, limitando as suas liberdades, alimentando-os à míngua e incutindo-lhes a ideologia de que a sua condição sub-humana de vida é produto do pecado original, seja ele o colonialismo, sob o qual se deixaram dominar, ou a descrença à qual seguiram sob o impulso revolucionário. Por maior objectividade que a ciência possa determinar sobre a pobreza, por mais convincente que seja a definição da sua génese, não bastará para deter o curso histórico da liberdade, caminho irreversível para a sua real superação, pois a verdadeira liberdade que um Estado pode garantir aos seus cidadãos é permitir o culto da liberdade.

Controlo sobre a tradição:

O controlo sobre a tradição obedece a duas dimensões temporais, a primeira que se situa no período de supressão da tradição movida pelos ventos da revolução, e a segunda que se situa no período de reabilitação da tradição, movida pelos ventos da democracia donde a mobilização popular requer uma nova estratégia política de acção, dado que a ascenção ao poder passa a depender de um processo eleitoral num sistema multipartidário.

Neste novo processo político, o campo da tradição que mais interessa aos homens da vanguarda não são os artefactos culturais como tal, ou seja, a esfera a que poderemos denominar de cultura material que é a fonte dos valores sociais e da moral popular, mas o seu nível de controlo mais elevado, o nível no qual é possivel influenciar a principal acção política da sociedade: o líder tradicional. Como nas lições básicas da antropologia se aprende que para se converter uma comunidade basta converter o seu líder que a comunidade se converterá, os homens da vanguarda muito cedo aprenderam esta lição e reabilitaram a autoridade tradicional, inseriram-na na esfera do poder do Estado como garantia de obediência da sociedade ao poder metassocial do Estado que está na sua posse.

Hoje o líder tradicional, todos os símbolos representativos da sua autoridade, assim como os artefactos culturais, ou seja, os valores que orientam a vida das suas comunidades, não são mais do que a confirmação da presença do controlo do Estado sobre cada uma das comunidades, porquanto estando o líder tradicional sob controlo do Estado, a sua legitimidade deixa de ser de nível horizontal da comunidade, passando para o vertical do Estado, pois os interesses em questão são exógenos à comunidade e tornaram-se fundamentalmente de natureza política. Podemos então questionar se estamos em presença da autoridade tradicional ou de um tentáculo do poder do Estado como garantia da eficácia dos mecanismos de controlo social?

POR FIM A MORAL DOS PRINCÍPIOS SEM FINS

Sintese do caminhar de um povo, foi assim que uma vez na academia me foi dado a entender que poderia significar a história. Na verdade a história oficial de Moçambique, por muito que seja difícil de entender, não se resume a isso, ela explicitamente apresenta-nos a sintese do caminhar de um movimento tornado partido e seguidamente governo-Estado. Provavelmente o que desta história pouco ou nada se deixa entender é que ela na realidade está fundamentalmente ligada ao princípio básico das forças propulsoras da história: a luta pelo poder.

O projecto da moral libertadora que é o elemento básico que está subjacente a esta história, é o manto de véu que a encobre, mas na realidade o que dela hoje nos poderemos aperceber, se a desvelar-mos, é que este nunca foi o ideal que alimentou aos homens da vanguarda, nunca e jamais foi a luta pelo bem estar do povo, o princípio orientador dos projectos libertadores na história, e na de Moçambique em particular está fundamentalmente ligado à moral como vontade de domínio, à luta pela detenção do poder, político.

Qualquer reflexão sobre a complexa problemática das relações de poder na história de Moçambique, não pode prescindir de um exame crítico desta realidade, trazer à luz as profundas implicações da intranquila relação que liga o poder político ao resto da sociedade na esfera das relações do poder, pode ajudar a esclarecer aspectos importantes sobre esta problemática. O persistente controlo do Estado sobre a sociedade vem do período colonial, e parece decidido a prolongar-se, reafirmando-se hoje com a acção direccionada nos planos político, económico, social e legislativo.

É um debate em aberto.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BARBALET, J.M 1989 A Cidadania. Lisboa: Estampa
BOURDIEU, P 1994 O Poder Simbólico. Lisboa: Difel
NEWITT, M 1997 História de Moçambique. Mira- Sintra: Europa-América
FREDERICK COPLESTON, S. J 1972 Nietzsche. Filósofo da cultura. Porto: Livraria Tavares Martins.
TOURAINNE, A 1994 Crítica da Modernidade. Lisboa: Instituto Piaget.
Lei orgânica do Ultramar. Lei nº 2066 de 27 de Junho de 1953


[1] Frederick Copleston, S. J: 1972. pp 148-149.
[2] Bourdieu, P: 1994. pp 11

1 Comments:

  • Se há mais Langas venham eles, que, como sugere o bloguista, há algo genéticamente especial nesta família. É como comenta o jpt, para imprimir e ler com a atenção que num blogue não é possível. Sinceros parabéns pela qualidade, enquanto vocês/Langas por cá andarem saiu a sorte grande ao "I&D"

    By Blogger Carlos Gil, at 11:49 AM  

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