Publico hoje o segundo texto da nova série de Elisio Macamo, sobre as regras do debate de ideias. Aproveito para chamar a atenção para uma nova série que Macamo iniciou no Notícias de ontem. O título é "Presentes Envenenados" e vem, como os anteriores, na penúltima página.
Aqui vai o texto:
Definições ou o poder das palavras (2)
Quem tem crianças sabe o que palavras verdadeiramente significam. Uma criança pode estar a brincar com uma panela. Nessa brincadeira ela chama carro à panela. E faz os ruídos correspondentes. Lembro-me dum vizinho no Xai-Xai que pensava que era motorista de longo curso. Sempre que chegasse a hora de se cozinhar tinham que o procurar por todo o bairro. A criança chama carro à panela, portanto, mas no momento em que um adulto aceita essa designação a criança pode, repentinamente, dizer que a panela é uma panela. Nessas situações ficamos, no mínimo, confusos. Sentimo-nos também ridicularizados.
Mas estas situações são interessantes por duas razões contraditórias. Primeiro, elas revelam a nossa crença na ideia de que as palavras designam objectos claros. Panela é panela. Carro é carro. Quando alguém viola essa regra, deixa-nos confusos. Segundo, a confusão não dura muito tempo, pois sabemos que podemos usar a língua de forma figurativa. Confirmamos, através da linguagem figurativa, que a palavra é um sinal arbitrário. Não há nada na natureza das próprias coisas que nos obrigue a chamar uma panela panela e um carro carro. Podíamos muito bem chamar à panela lanepa e ao carro rorca.
A contradição entre as duas razões é evidente. Não obstante, é também evidente que as duas razões têm algo em comum. Em ambos os casos as palavras que empregamos procuram transmitir um sentido. Isso é o que justifica o emprego de palavras. Com elas queremos descrever o mundo, estados emocionais e muitas outras coisas. A nossa expectativa é que o que queremos dizer seja entendido pelos outros. O que os outros entendem serve de base para a nossa comunicação. Noutros termos, a comunicação é mais fácil se as pessoas envolvidas partilham o mesmo sentido. Sem esta condição satisfeita é difícil imaginar como é que as pessoas podem discutir assuntos seriamente. Se eu digo “panela” e uma outra pessoa insiste em perceber “carro” é evidente que a comunicação não será possível. É inútil.
Para tornar isto claro podemos pegar numa noção aparentemente inofensiva do nosso vocabulário político: unidade nacional. Toda a gente parte do princípio de que sabe o que isto significa. Não só, muitos estão convencidos de que estão a falar da mesma coisa quando falam de unidade nacional. Na realidade, é uma noção que tanto pode ser usada para criticar ou louvar as mesmíssimas coisas. Nos anos imediatamente a seguir à independência a unidade nacional – escrita até em letras maíusculas – serviu, nos extremos ideológicos do seu uso, para eliminar a diferença e arrancar a conformidade das pessoas com a orientação política dominante. Unidade nacional significava então estar de acordo com várias coisas: o papel de vanguarda da Frelimo, a irrelevância de tradições étnicas ou linhageiras, o objectivo final duma sociedade socialista, etc.
Durante a guerra civil da Renamo – e mesmo agora na sua continuação parlamentar – a noção de unidade nacional – sem letras maíusculas – serviu – e serve – para indiciar o projecto político da Frelimo: como artimanha política, como subterfúgio de elites desenraizadas, como conspiração dos do sul, etc. Ou por outra, a mesma noção produziu em sectores diferentes significações e sentidos diferentes. Para complicar as coisas ainda mais faço referência a uma ideia uma vez exposta pelo ex-ministro da cultura, José M. Katupa, durante uma palestra sobre o panorama linguístico nacional.
Nessa palestra ele demonstrou, com base em dados estatísticos do recenseamento demográfico de 1980, que as línguas africanas eram mais faladas no campo e na cidade mais do que a língua portuguesa. Concluiu, a partir daí e com muita razão, que, nessas circunstâncias dificilmente se poderia considerar a língua portuguesa de língua da unidade nacional. Note-se de passagem que ele entendia a unidade nacional como algo já consumado, não como um projecto.
Nenhuma destas interpretações está errada. Antes pelo contrário, todas elas são legítimas. O que elas trazem à superfície é uma característica importante do debate. Para que ele seja possível é necessário que haja acordo sobre o significado das palavras que empregamos. Sem esse acordo não pode haver debate ou, na pior das hipóteses, não há nenhuma maneira de nos entendermos. As palavras que usamos podem ser ambíguas ou vagas. Unidade nacional como noção é ambígua porque tanto pode significar conformismo quanto patriotismo. É vaga porque é difícil perceber em que sentido deve ser entendida: não criticar a ideia dum estado centralizado? Nunca levantar a questão duma federação?
Um momento particularmente interessante desta ambiguidade foi a discussão sobre a repescagem de estudantes do norte no processo de admissão à universidade Eduardo Mondlane. A repescagem foi vista como um contributo para a unidade nacional pelos seus defensores e como um atentado à essa ideia pelos seus críticos. Para além de que no processo se levantaram outras questões como, por exemplo, se ser do norte significa fazer o ensino pré-universitário no norte, nascer lá, de pais de lá, etc., a discussão toda tornou claro que estávamos envolvidos numa discussão sobre coisas completamente diferentes.
Uma condição essencial do debate, portanto, é a definição das palavras centrais que usamos. O que queremos dizer com “unidade nacional”, “pobreza”, “norte, sul, centro”, “oposição”, “participação”, “democracia”, “desenvolvimento”, “corrupção”, etc.? O significado não é evidente e sem o esclarecimento desses preliminares podemos até discutir coisas sobre as quais concordamos.
Mas o pior não é não partilhar o mesmo sentido. O pior é quando alguém muda de sentido ao sabor da discussão. Alguém que diga “homens e mulheres são diferentes por isso a nossa lei não devia andar a falar de igualdade entre os sexos” não está a ser honesto. Está a usar o que os lógicos chamam de equivocidade: usar uma palavra com vários sentidos. A palavra “diferente” tem dois sentidos nesta afirmação. Primeiro, diferença biológica, segundo diferença perante a lei. São coisas completamente diferentes! O facto de haver diferenças biológicas não implica que homens e mulheres não tenham os mesmos direitos e obrigações perante a lei. Pode-se, naturalmente, defender a ideia de que as diferenças biológicas devem ser determinantes para a atribuição de direitos e obrigações, mas se esse é o caso, a conclusão deve ser exposta claramente.
Aqui vai o texto:
Definições ou o poder das palavras (2)
Quem tem crianças sabe o que palavras verdadeiramente significam. Uma criança pode estar a brincar com uma panela. Nessa brincadeira ela chama carro à panela. E faz os ruídos correspondentes. Lembro-me dum vizinho no Xai-Xai que pensava que era motorista de longo curso. Sempre que chegasse a hora de se cozinhar tinham que o procurar por todo o bairro. A criança chama carro à panela, portanto, mas no momento em que um adulto aceita essa designação a criança pode, repentinamente, dizer que a panela é uma panela. Nessas situações ficamos, no mínimo, confusos. Sentimo-nos também ridicularizados.
Mas estas situações são interessantes por duas razões contraditórias. Primeiro, elas revelam a nossa crença na ideia de que as palavras designam objectos claros. Panela é panela. Carro é carro. Quando alguém viola essa regra, deixa-nos confusos. Segundo, a confusão não dura muito tempo, pois sabemos que podemos usar a língua de forma figurativa. Confirmamos, através da linguagem figurativa, que a palavra é um sinal arbitrário. Não há nada na natureza das próprias coisas que nos obrigue a chamar uma panela panela e um carro carro. Podíamos muito bem chamar à panela lanepa e ao carro rorca.
A contradição entre as duas razões é evidente. Não obstante, é também evidente que as duas razões têm algo em comum. Em ambos os casos as palavras que empregamos procuram transmitir um sentido. Isso é o que justifica o emprego de palavras. Com elas queremos descrever o mundo, estados emocionais e muitas outras coisas. A nossa expectativa é que o que queremos dizer seja entendido pelos outros. O que os outros entendem serve de base para a nossa comunicação. Noutros termos, a comunicação é mais fácil se as pessoas envolvidas partilham o mesmo sentido. Sem esta condição satisfeita é difícil imaginar como é que as pessoas podem discutir assuntos seriamente. Se eu digo “panela” e uma outra pessoa insiste em perceber “carro” é evidente que a comunicação não será possível. É inútil.
Para tornar isto claro podemos pegar numa noção aparentemente inofensiva do nosso vocabulário político: unidade nacional. Toda a gente parte do princípio de que sabe o que isto significa. Não só, muitos estão convencidos de que estão a falar da mesma coisa quando falam de unidade nacional. Na realidade, é uma noção que tanto pode ser usada para criticar ou louvar as mesmíssimas coisas. Nos anos imediatamente a seguir à independência a unidade nacional – escrita até em letras maíusculas – serviu, nos extremos ideológicos do seu uso, para eliminar a diferença e arrancar a conformidade das pessoas com a orientação política dominante. Unidade nacional significava então estar de acordo com várias coisas: o papel de vanguarda da Frelimo, a irrelevância de tradições étnicas ou linhageiras, o objectivo final duma sociedade socialista, etc.
Durante a guerra civil da Renamo – e mesmo agora na sua continuação parlamentar – a noção de unidade nacional – sem letras maíusculas – serviu – e serve – para indiciar o projecto político da Frelimo: como artimanha política, como subterfúgio de elites desenraizadas, como conspiração dos do sul, etc. Ou por outra, a mesma noção produziu em sectores diferentes significações e sentidos diferentes. Para complicar as coisas ainda mais faço referência a uma ideia uma vez exposta pelo ex-ministro da cultura, José M. Katupa, durante uma palestra sobre o panorama linguístico nacional.
Nessa palestra ele demonstrou, com base em dados estatísticos do recenseamento demográfico de 1980, que as línguas africanas eram mais faladas no campo e na cidade mais do que a língua portuguesa. Concluiu, a partir daí e com muita razão, que, nessas circunstâncias dificilmente se poderia considerar a língua portuguesa de língua da unidade nacional. Note-se de passagem que ele entendia a unidade nacional como algo já consumado, não como um projecto.
Nenhuma destas interpretações está errada. Antes pelo contrário, todas elas são legítimas. O que elas trazem à superfície é uma característica importante do debate. Para que ele seja possível é necessário que haja acordo sobre o significado das palavras que empregamos. Sem esse acordo não pode haver debate ou, na pior das hipóteses, não há nenhuma maneira de nos entendermos. As palavras que usamos podem ser ambíguas ou vagas. Unidade nacional como noção é ambígua porque tanto pode significar conformismo quanto patriotismo. É vaga porque é difícil perceber em que sentido deve ser entendida: não criticar a ideia dum estado centralizado? Nunca levantar a questão duma federação?
Um momento particularmente interessante desta ambiguidade foi a discussão sobre a repescagem de estudantes do norte no processo de admissão à universidade Eduardo Mondlane. A repescagem foi vista como um contributo para a unidade nacional pelos seus defensores e como um atentado à essa ideia pelos seus críticos. Para além de que no processo se levantaram outras questões como, por exemplo, se ser do norte significa fazer o ensino pré-universitário no norte, nascer lá, de pais de lá, etc., a discussão toda tornou claro que estávamos envolvidos numa discussão sobre coisas completamente diferentes.
Uma condição essencial do debate, portanto, é a definição das palavras centrais que usamos. O que queremos dizer com “unidade nacional”, “pobreza”, “norte, sul, centro”, “oposição”, “participação”, “democracia”, “desenvolvimento”, “corrupção”, etc.? O significado não é evidente e sem o esclarecimento desses preliminares podemos até discutir coisas sobre as quais concordamos.
Mas o pior não é não partilhar o mesmo sentido. O pior é quando alguém muda de sentido ao sabor da discussão. Alguém que diga “homens e mulheres são diferentes por isso a nossa lei não devia andar a falar de igualdade entre os sexos” não está a ser honesto. Está a usar o que os lógicos chamam de equivocidade: usar uma palavra com vários sentidos. A palavra “diferente” tem dois sentidos nesta afirmação. Primeiro, diferença biológica, segundo diferença perante a lei. São coisas completamente diferentes! O facto de haver diferenças biológicas não implica que homens e mulheres não tenham os mesmos direitos e obrigações perante a lei. Pode-se, naturalmente, defender a ideia de que as diferenças biológicas devem ser determinantes para a atribuição de direitos e obrigações, mas se esse é o caso, a conclusão deve ser exposta claramente.
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