Ideias para Debate

Sunday, May 08, 2005

O fantasma do exótico

Conjecturo que Elísio Macamo vem ensaiando o conceito de 'lógica situacional' para dar conta de alguns fenómenos da vida quotidiana na nossa sociedade. Com este conceito explica, por exemplo, a fraqueza das nossas instituições. Ou, pelo menos, a propensão que os Moçambicanos têm de tirar partido das fraquezas das suas instituições.
No debate sobre as "acções concertadas" este é o principal argumento. Pessoalmente, tenho ainda, algumas, reservas quanto ao sentido que lhe atribui naquele debate, na medida em que tal lógica implica-nos a todos enquanto cidadãos deste país.Com efeito, para Macamo a "lógica que parece dominar a nossa sociedade não se reduz apenas às elites do poder. Se fosse esse o problema a solução não seria assim tão difícil de encontrar: podíamos mudar os políticos ou qualquer coisa assim".Macamo acha que o problema é ainda mais generalizado, estamos quase todos implicados e, por causa disso mesmo, é tão difícil encontrar saídas. "Cada um de nós aproveita-se como pode.". O entendimento que tive da lógica situacional sugere que lá onde cada um nota alguma possibilidade de tirar proveito, para si, de uma fraqueza institucional nenhum principio ético ou moral o impedirá de o fazer.Isso se explica por uma certa falha no processo civilizacional da nossa sociedade. Os comportamentos passíveis de serem domesticados através de processos civilizacionais não são peculiares dos Moçambicanos, ou africanos. São da natureza humana. Podemos imaginar uma situação em que tirássemos todos os Moçambicanos para uma ilha e trouxéssemos outras pessoas. Desde que se mantivessem os princípios e factores conjunturais ou estruturais que determinam a lógica situacional que rege o relacionamento entre os indivíduos na nossa sociedade o país seria idêntico a si mesmo.Apenas instituições fortes poderão constituir uma barreira ao desenvolvimento de comportamentos incompatíveis com as exigências de uma vida urbana, por exemplo. O desenvolvimento dessas instituições reflecte um processo civilizacional.
Em algum lugar Macamo refere-se ao sentido que atribui ao conceito 'processo civilizacional', tomado de empréstimo do sociólogo, alemão,Norbet Elias. Para aquele sociólogo, esse conceito referia-se à forma gradual como os indivíduos alcançaram o auto-controlo. A capacidade que temos, alguns, de apertar o xixi até a próxima casa de banho pública, que sintomaticamente escasseiam nas nossas cidades, evitando deste modo fazer das árvores, que deveriam embelezar e purificar o oxigénio das cidades, mictório público é um exemplo desse auto-controlo. Não tem nada de exótico ou tradicional nisso. Neste exemplo singular, o móbi lque orienta a acção de apertar o xixi é civilizacional na medida em que representa a incorporação dos outros, respeito e consideração, na orientação da acção social.
Quando uso o relógio, em primeiro lugar, deveria ser para evitar chegar atrasado aos encontros que marcamos em sociedade. O relógio ajuda a controlar o instinto para usar o tempo 'natural', mas acima de tudo, envolve-me numa relação societal no sentido de que a acção, subjectivados individuos, respeito e consideração, toma em consideração as expectativas dos outros.
Na colectânea de textos intitulada "presentes envenenados", publicada, recentemente o Jornal Notícias, o conceito de lógica situacional volta a ser fundamental para perceber o sentido que subjaz todos os textos. A"lógica situacional" explica a tratamento perverso que damos aos produtos da modernidade.
Se percebi o argumento exposto nos textos, enfatiza-se a ideia de que não existe nada inerente á nossa origem africana, nenhuma essência biológica ou cultural, que dita o nosso relacionamento perverso com os produtos da modernidade, sejam eles: o automóvel, o relógio, a medicina, a democracia ou, até mesmo, a ciência.
Não há nada na nossa africanizada condição que determine essa lógica pervertida. Existe sim "a lógica situacional". Penso que esta é a questão ainda por explorar. Outrossim, parece-me que Macamo tratou de alertar para o erro que constituiria uma leitura que privilegiasse a ideia de "projecto civilizacional" para povos primitivos. Aqui, entendo por 'projecto civilizacional' o fenómeno que geralmente se considera iniciar com as 'descobertas' dos 'outros' no século XV.
O Quiterio trata este aspecto de uma forma que considero brilhante no seu primeiro texto aqui no Blogao, comparar o projecto civilizacional colonial com o revoluconário-independestista.
Esse sentido, sim, pretende civilizar o bárbaro. Não me parece ser este o sentido que Macamo usa nos textos sobre os presentes envenenados.Considero o cuidado de Macamo suficientemente apurado para não se deixar sucumbir pela ligeireza daquele argumento e tentar ressuscitar o exótico, que hoje tanto incomoda , alguns, antropólogos. É como se quisessem fugir da sua própria sombra! "Não há, em minha opinião, nada de africano, absolutamente nada de cultural - ou telúrico, como diria Mia Couto - na nossa incapacidade patente de domesticar os produtos da modernidade"(EM). Eu acrescentaria: nada de exótico.Posto isto gostaria de me debruçar sobre algumas críticas encetadas no texto sobre a ciência como presente envenenado.Achei interessante, e pertinente, a reacção do Quitério Langa aos argumentos que sustentam a ideia de que a ciência pode ser mais um dos presentes envenenados. Eu próprio ainda não estou convencido, apesar de achar o argumento aliciante. Mas acho problemática, ainda que apreciável a ideia da dúvida metódica, a recusa de admitir o alerta de se evitar um certo sentido na interpretação dos textos. Penso que a crítica assenta em algumas premissas, justamente, naquela leitura para a qual Macamo tentou alertar-nos.
Devo deixar claro que não se trata de partir em defesa de uma visão, sociológica, de classe.A velha figura antropológica, do exótico, como a designa QL e que diz Macamo recuperar, só pode ser entendida assim se assentarmos a interpretação dos textos na visão clássica e antropológica do exótico.Isto é, mencionar problemas no processo civilizacional não implica ir a busca do exótico.
Não é tudo que não cabe no civilizado que se constitui no exótico. O Mal-educado não é exótico!Parece que o fantasma do exótico ainda atormenta os antropólogos.Sintetizo em três, no texto do Q L, as ideias que sugerem essa persistente ressurreição do exótico.A primeira ideia, a de ver a escola como a entrada para um mundo diferente, não nos obriga a estabelecer a relação entre o tradicional e o moderno. Existem outros eixos e/ou dimensões de oposição possíveis. O diferente pode significar um arbitrário cultural diferente, mas000 não necessariamente tradicional. Por exemplo, o arbitrário cultural do filho do operário, de classe média baixa, é diferente daquele do filho de um profissional liberal de classe media alta. A divisão de mundo veiculada, no meio escolar, pode ser mais próxima da das classes dominantes de uma sociedade e não das dominadas. Existem mais possibilidades que não nos remetem necessariamente ao tradição versus modernidade. Isso não implica negar que a escola é uma consequência da modernidade, muito menos, sugerir que há algo de exótico nisso.
A segunda ideia da escola, como porta de entrada para um mundo distante,também não nos obriga a demarcá-la numa distância histórica delineada entre a tradição e a modernidade. A modernidade, expressa através dos diferentes produtos mencionados nos textos de Macamo, é- nos, presente,vivemo-la. O uso que fazemos desses produtos é presente, não tem nada a ver com a ideia do homem primitivo tentando engolir a relógio por não saber qual a sua utilidade. Nós sabemos qual é a serventia do relógio.Sabemos que nos permite domesticar o tempo. Simplesmente, por alguma razão, resolvemos dar-lhe outros sentidos de utilidade, por exemplo, ostentá-lo. Não tenho nada contra esse lado fiteiro. Contudo, ao agirmos desse modo, simplesmente, desrespeitamos aqueles que acham que o relógio ajudaria a acertar as horas do encontro.
O Carlos Serra, em brincadeira,costuma dizer que nos guiamos pela hora antropológica. Marcamos um encontro, um espectáculo, ou outro evento característico duma vida urbana e simplesmente é o que todos sabemos... atrasos incríveis. Assim entendo o sentido da perversão.
A terceira ideia, da escola, como porta de entrada para um mundo hostil,também admite outros possíveis, que não sejam o des-enquadramento na cultura "tradicional africana". Estou de acordo com a sugestão de que não reside no carís científico o suposto carácter violento da socialização. Pierre Bourdieu é dos sociólogos que mais se interessou pelo fenómeno cultural de "violência simbólica" que a escola pode representar para aqueles arbítrios culturais mais distantes daquela instituição.
Com efeito, seu argumento não é de que a socialização em si seja um processo violento, ela se torna uma empresa simbolicamente violenta na medida em que o arbítrio cultural, veiculado na escola e tomado como universal, é imposto a todos sem dar conta de suas desigualdades sociais. O discurso escolar, língua, conteúdo, o exercício pedagógico é, por uns, herdado e por outros adquirido com muito esforço.
Tomemos a língua como um exemplo: Duas crianças moçambicanas: uma socializada desde a nascença em Português e outra emShangane. A primeira terá herdado o Português num processo de socialização, enquanto a segunda, que só se inicia no Português, na primeira classe, terá que adquiri-lo a todo o custo com todas as implicações que isso poderá representar para o sucesso. A língua portuguesa, neste caso, é valorizada como o veículo para a ciência. Se isso é justo, se o Shangane pode ou não veicular conteúdos científicos,esse é outro assunto que não vamos trazer ao debate. No caso, estudado por Bourdieu, a sociedade francesa, os alunos até falavam todos a mesma língua, o francês. Mesmo assim a sua origem social e de classe foi tomada como variável fundamental para explicar esse processo de violência para aqueles grupos distantes do arbitrário cultural veiculado e adoptado como universal pela escola francesa.
Neste sentido a escola pode ser vista como um meio hostil. Em que medida a nossa relação perversa com os produtos resulta de uma certa lógica situacional? Penso que esta é a questão de fundo.Macamo refere-se a problemas no decurso do nosso processo civilizacional." Na verdade, os nossos problemas com a modernidade revelam graves dificuldades no nosso processo civilizacional. Encontramo-nos numa situação forçada de interacção com um número infinito de pessoas e não conseguimos estabelecer regras básicas de intercâmbio. (EM").No meu entender essas regras básicas de intercâmbio não se resumem a leis e regulamentos no sentido positivo. São, sim, princípios, valores morais e éticos de convivência em sociedade.
Termino com a frase característica dos textos do Quitério Langa. "É um debate aberto".
Patrício Langa
Cape Town,
7/05/05

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