Futebol e identidade
Em resposta ao meu texto "Futebois" o José Teixeira mandou-me este:
A paixão de cá sobre a bola lá. (1)
Surpreendes-te com a paixão futebolística. Essa que atravessa "fronteiras". E que, "confusionista", aparenta dissolver razões e certezas por via das suas erupções. Também a mim, português aqui residente, sempre me chamou a atenção o vínculo futebolístico entre os nossos países - acho-o mesmo O vínculo.Coisa a estudar dizes, e bem. Mas passível de ser conversada com algum tino, ainda que sem estudo prévio. Não por ela própria, mas pelo seu significado. Abordá-la, assim insuficientemente, exige-me regressar às minhas anteriores entradas neste Ideias para Debate, num breve texto e alguns comentários (que já tiveram remoque da F. Ribeiro). Conversar esse vínculo sem estudo prévio? Então é mero texto aberto, talvez curto se me ajudar a retórica, e nada fortificado. Não académico, para simplificar. E nunca escolástico, para moralizar. Apenas pelo prazer do conversar. E picar.Em meu entender, em meu conversar, esta paixão levanta questões múltiplas. Uma, que não posso desenvolver, pois exigiria mesmo andar questionando adeptos, será a da adopção de modelos de sucesso: os futebolistas são riqueza, saúde e fama e, na sua esmagadora maioria, vêm dos estratos mais pobres da sociedade (um Dani ou um Figo são excepções). Mais, "sobem" pelo talento próprio, pelo trabalho "livre" (atlético) e pela sorte. São ídolos mas assim são também "manos", ali não há protegidos, filhos-família. Acho que isso é importantissimo. E estes "manos" falam uma língua comum (os que a falam, no meio da globalização futebolística actual. Mas essas diferentes origens são "traduzidas" pelos clubes), são assim mais próximos - e tu saberás que esta minha chamada da língua não traz "lusofonias" ideológicas atrás, mas mais vale dizê-lo do que remediar. Mas a questão é insuficiente, pois não tem equivalente na relação com o hiper-belo e poderoso futebol brasileiro. Portanto não é suficiente, as razões para tal adesão têm que ser buscadas (também) alhures, noutras questões.Na minha opinião são essas questões identitárias. As da aproximação e separação relativas. Essas que cruzam as "fronteiras" que tão desejadas e estipuladas foram ou são (desculpar-me-ás o remoque, mas é imprescindível). Essas que são um contínuo ambivalente de relacionamentos. Muito menos encaixáveis do que aparentam. E de muito difícil encerramento.Uma pequena etnografia, uma história (abomino o pós-neologismo estória), para começar. Em 1997 tinha acabado de chegar a Maputo, a casa ainda nua, e claro que sem TV. Em certa quarta-feira fui jantar (à Tasquinha, muito aprazível) com amigo de Lisboa, então por cá a trabalhar. Eu do Sporting, ele do Belenenses, já agora. Depois fomos a um whisky no Piri-Piri, instituição então mais sonante num Maputo com menos neons do que hoje. Casa cheissima, clientes a assistirem o Manchester- Porto para a Liga dos Campeões. Estava no intervalo (e já 2-0 para o MU, logo nos informaram para nosso contentamento), e nós ficámos em pé, desagradável numa casa sem balcão. Gentis, nessa solidariedade de adeptos, os clientes de uma mesa convidaram-nos para a mesa, foi só arranjar as cadeiras e lá nos aconchegámos. Mesa corrida, para aí uns vinte amigos, não era coisa para menos. O jogo recomeçou e logo veio o 3-0 para nossa alegria e tristeza de toda a sala. Rimo-nos e mais um trago, aliás, venham mais dois... E muito pouco tardou o (humilhante) 4-0! Aí levantámo-nos, saudando a derrocada portista, braços no ar, como se no estádio. Os únicos assim em todo o Piri-Piri! E logo os "donos da mesa", até incomodados, desiludidos, a invectivarem "parece impossível, a torcerem contra a equipa nacional" (sic, juro). E fui eu, entre o divertido e o sportinguista, que os contra-invectivei num qualquer coisa como "ora bolas, nós somos os únicos portugueses aqui", que o éramos. Pois era uma mesa totalmente moçambicana, e um Piri-Piri quase assim também, quase nesse dia, e isso coisa rara como sabes. Risos e sorrisos então.Ah, primeiro ponto. Necessário porque num país encerrado num racialismo constante, esse aqui tão siamês do racismo, o racialismo urbano que não gosta do estrangeiro. O racialismo, quantas vezes racista, da elite ou pequena burguesia que resmunga ou invectiva o "branco" e o "monhé" (e o "china" que está aí a chegar). O racialismo, tantas vezes racismo invertido, do mundo rural que ainda sobrevaloriza o "branco", em modos que muito para além vão da hospitalidade camponesa. Ah, primeiro ponto, dizia. Era uma mesa corrida, vinte pessoas para aí, e todos integráveis nesse termo horrível e historicamente poluído: "originários". Pois a pureza "racial" é aqui muito gostada, um tenebroso exemplo de como os instrumentos intelectuais da opressão foram apropriados pelos oprimidos (no decurso do processo da sua diferenciação interna?). Sim, eram "originários" a protestar o nosso anti-portismo, o nosso desapego à equipa "nacional".Desviei-me do assunto? Talvez. Mas acho que não, o futebol aqui apenas serve para falar de identidades. E como é difícil falar de identidades sociais em Moçambique sem referir as omnipresentes (e omnipotentes?) categorias raciais, aliás aqui ainda acreditadas com denodo.A paixão da bola portuguesa tem também um aspecto de identidade nacional. O seu ecoar colectivo aqui também me parece aflorar outros pontos: creio normal que no decurso do colonialismo e no percurso da luta anti-colonial o projecto de construção de uma identidade nacional (ainda em curso, como é "natural" num processo histórico), de uma "moçambicanidade", tenha sido assumido como em parte anti-portuguesa, anti-colono, anti-exploração. E que esse anti-portuguesismo tenha sido parte importante, mas não única, atenção, do tecido intelectual do movimento de libertação e influenciado determinantemente as mentes nos tempos subsequentes. Esse anti-portuguesismo surgiu-me com recorrência, aqui chegado vinte anos após a independência. Não agressivo, não particularmente persecutório. E acima de tudo ambivalente, tantas vezes contextual, tão contextual que súbito invertido. Não estou a falar de políticas estatais nem económicas. Estou a falar das relações sociais, do que ressalta da interacção, do "branco/tuga de merda" até ao "albino", um eixo de locuções que por vezes até tem o mesmo locutor. Não estou a falar de "afectos" (esse lusotropicalismo de pacotilha que nunca mais morre) mas de uma matriz de oposição que, porventura, se vai esbatendo com o tempo, face a outros polos de oposição, polos constitutivos de identidade por via de serem "outros", e "outros" pouco amigos ou pouco similares.Mas é um anti-portuguesismo muito vincado em alguns estratos sociais (atenção referi-lo não é injustificá-lo, denunciá-lo. É apenas referi-lo). Objectivamente encontrei-o explícito em estratos médios da elite urbana e em basta percentagem dos lusodescendentes (e neste estrato social a associação de razões sociológico-ideológicas têm que ser cruzadas com os percursos biográficos, a perenidade da ruptura como estruturante conceptual). Este complexo sociológico foi o produtor ideológico de Moçambique, por razões históricas que serão óbvias e estão referidas (o peso da população letrada, inacreditavelmente (melhor dizendo, acreditavelmente) diminuta ao tempo da independência).
(continua)
A paixão de cá sobre a bola lá. (1)
Surpreendes-te com a paixão futebolística. Essa que atravessa "fronteiras". E que, "confusionista", aparenta dissolver razões e certezas por via das suas erupções. Também a mim, português aqui residente, sempre me chamou a atenção o vínculo futebolístico entre os nossos países - acho-o mesmo O vínculo.Coisa a estudar dizes, e bem. Mas passível de ser conversada com algum tino, ainda que sem estudo prévio. Não por ela própria, mas pelo seu significado. Abordá-la, assim insuficientemente, exige-me regressar às minhas anteriores entradas neste Ideias para Debate, num breve texto e alguns comentários (que já tiveram remoque da F. Ribeiro). Conversar esse vínculo sem estudo prévio? Então é mero texto aberto, talvez curto se me ajudar a retórica, e nada fortificado. Não académico, para simplificar. E nunca escolástico, para moralizar. Apenas pelo prazer do conversar. E picar.Em meu entender, em meu conversar, esta paixão levanta questões múltiplas. Uma, que não posso desenvolver, pois exigiria mesmo andar questionando adeptos, será a da adopção de modelos de sucesso: os futebolistas são riqueza, saúde e fama e, na sua esmagadora maioria, vêm dos estratos mais pobres da sociedade (um Dani ou um Figo são excepções). Mais, "sobem" pelo talento próprio, pelo trabalho "livre" (atlético) e pela sorte. São ídolos mas assim são também "manos", ali não há protegidos, filhos-família. Acho que isso é importantissimo. E estes "manos" falam uma língua comum (os que a falam, no meio da globalização futebolística actual. Mas essas diferentes origens são "traduzidas" pelos clubes), são assim mais próximos - e tu saberás que esta minha chamada da língua não traz "lusofonias" ideológicas atrás, mas mais vale dizê-lo do que remediar. Mas a questão é insuficiente, pois não tem equivalente na relação com o hiper-belo e poderoso futebol brasileiro. Portanto não é suficiente, as razões para tal adesão têm que ser buscadas (também) alhures, noutras questões.Na minha opinião são essas questões identitárias. As da aproximação e separação relativas. Essas que cruzam as "fronteiras" que tão desejadas e estipuladas foram ou são (desculpar-me-ás o remoque, mas é imprescindível). Essas que são um contínuo ambivalente de relacionamentos. Muito menos encaixáveis do que aparentam. E de muito difícil encerramento.Uma pequena etnografia, uma história (abomino o pós-neologismo estória), para começar. Em 1997 tinha acabado de chegar a Maputo, a casa ainda nua, e claro que sem TV. Em certa quarta-feira fui jantar (à Tasquinha, muito aprazível) com amigo de Lisboa, então por cá a trabalhar. Eu do Sporting, ele do Belenenses, já agora. Depois fomos a um whisky no Piri-Piri, instituição então mais sonante num Maputo com menos neons do que hoje. Casa cheissima, clientes a assistirem o Manchester- Porto para a Liga dos Campeões. Estava no intervalo (e já 2-0 para o MU, logo nos informaram para nosso contentamento), e nós ficámos em pé, desagradável numa casa sem balcão. Gentis, nessa solidariedade de adeptos, os clientes de uma mesa convidaram-nos para a mesa, foi só arranjar as cadeiras e lá nos aconchegámos. Mesa corrida, para aí uns vinte amigos, não era coisa para menos. O jogo recomeçou e logo veio o 3-0 para nossa alegria e tristeza de toda a sala. Rimo-nos e mais um trago, aliás, venham mais dois... E muito pouco tardou o (humilhante) 4-0! Aí levantámo-nos, saudando a derrocada portista, braços no ar, como se no estádio. Os únicos assim em todo o Piri-Piri! E logo os "donos da mesa", até incomodados, desiludidos, a invectivarem "parece impossível, a torcerem contra a equipa nacional" (sic, juro). E fui eu, entre o divertido e o sportinguista, que os contra-invectivei num qualquer coisa como "ora bolas, nós somos os únicos portugueses aqui", que o éramos. Pois era uma mesa totalmente moçambicana, e um Piri-Piri quase assim também, quase nesse dia, e isso coisa rara como sabes. Risos e sorrisos então.Ah, primeiro ponto. Necessário porque num país encerrado num racialismo constante, esse aqui tão siamês do racismo, o racialismo urbano que não gosta do estrangeiro. O racialismo, quantas vezes racista, da elite ou pequena burguesia que resmunga ou invectiva o "branco" e o "monhé" (e o "china" que está aí a chegar). O racialismo, tantas vezes racismo invertido, do mundo rural que ainda sobrevaloriza o "branco", em modos que muito para além vão da hospitalidade camponesa. Ah, primeiro ponto, dizia. Era uma mesa corrida, vinte pessoas para aí, e todos integráveis nesse termo horrível e historicamente poluído: "originários". Pois a pureza "racial" é aqui muito gostada, um tenebroso exemplo de como os instrumentos intelectuais da opressão foram apropriados pelos oprimidos (no decurso do processo da sua diferenciação interna?). Sim, eram "originários" a protestar o nosso anti-portismo, o nosso desapego à equipa "nacional".Desviei-me do assunto? Talvez. Mas acho que não, o futebol aqui apenas serve para falar de identidades. E como é difícil falar de identidades sociais em Moçambique sem referir as omnipresentes (e omnipotentes?) categorias raciais, aliás aqui ainda acreditadas com denodo.A paixão da bola portuguesa tem também um aspecto de identidade nacional. O seu ecoar colectivo aqui também me parece aflorar outros pontos: creio normal que no decurso do colonialismo e no percurso da luta anti-colonial o projecto de construção de uma identidade nacional (ainda em curso, como é "natural" num processo histórico), de uma "moçambicanidade", tenha sido assumido como em parte anti-portuguesa, anti-colono, anti-exploração. E que esse anti-portuguesismo tenha sido parte importante, mas não única, atenção, do tecido intelectual do movimento de libertação e influenciado determinantemente as mentes nos tempos subsequentes. Esse anti-portuguesismo surgiu-me com recorrência, aqui chegado vinte anos após a independência. Não agressivo, não particularmente persecutório. E acima de tudo ambivalente, tantas vezes contextual, tão contextual que súbito invertido. Não estou a falar de políticas estatais nem económicas. Estou a falar das relações sociais, do que ressalta da interacção, do "branco/tuga de merda" até ao "albino", um eixo de locuções que por vezes até tem o mesmo locutor. Não estou a falar de "afectos" (esse lusotropicalismo de pacotilha que nunca mais morre) mas de uma matriz de oposição que, porventura, se vai esbatendo com o tempo, face a outros polos de oposição, polos constitutivos de identidade por via de serem "outros", e "outros" pouco amigos ou pouco similares.Mas é um anti-portuguesismo muito vincado em alguns estratos sociais (atenção referi-lo não é injustificá-lo, denunciá-lo. É apenas referi-lo). Objectivamente encontrei-o explícito em estratos médios da elite urbana e em basta percentagem dos lusodescendentes (e neste estrato social a associação de razões sociológico-ideológicas têm que ser cruzadas com os percursos biográficos, a perenidade da ruptura como estruturante conceptual). Este complexo sociológico foi o produtor ideológico de Moçambique, por razões históricas que serão óbvias e estão referidas (o peso da população letrada, inacreditavelmente (melhor dizendo, acreditavelmente) diminuta ao tempo da independência).
(continua)
1 Comments:
É lógico que não roubei parágrafo nenhum. Fiz copy-paste do texto que recebi.
Não percebo o que o JPT quer dizer com o seu comentário.
E este é um dos casos em que, ao não perceber, não gosto.
Machado
By Cine-clube Komba Kanema, at 11:44 AM
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