Ideias para Debate

Thursday, January 25, 2007

Frelimo 2

Aqui vai o segundo texto do Elisio Macamo:

O poder da Frelimo: De quem beneficia (2)

Por E. Macamo

O principal problema na abordagem da nossa situação política é saber como fazer a análise. A qualidade do debate na e sobre a nossa esfera pública tem revelado continuamente que, salvo raras excepções, a preferência analítica é por conclusões alicerçadas na procura de quem beneficia de uma situação. Invariavelmente, analisamos os nossos problemas partindo do pressuposto de que quem beneficia do resultado está por detrás de tudo quanto nos levou até lá. É uma versão da teoria de conspiração que encontra sustento metafísico nas nossas crenças supersticiosas. Em Gaza diz-se que “la kunga fiwa kuni noyi” (onde há falecimentos, há um feiticeiro). O verdadeiro alcance destas crenças – em conspiração e na superstição – é a aversão generalizada ao que não tem explicação. Temos que explicar tudo – o que até não é mau – mesmo se para o efeito tiramos conclusões erradas – o que já é mau.

O quadro geral analítico que privilegiamos no nosso País funda-se na convicção de que Moçambique é coisa da Frelimo. Já escrevi em tempos que expressões como “a Frelimo não brinca”, “a Frelimo é macaco-velho”, “a Frelimo não quer isso” documentam esta convicção. Criou-se, no nosso imaginário, uma ideia impossível e fantástica da Frelimo que faz de tudo quanto acontece no País uma espécie de apoteose da sua vontade. É uma ideia que, curiosamente, explica o que é mau, mas não consegue dizer porque um partido tão coeso, forte, firme e visionário como a Frelimo o é no nosso imaginário, não consegue acabar imediatamente com o espírito do deixa-andar, pobreza absoluta, conflitos internos, crime e tentativas de fuga de Anibalzinho.

Na verdade, a explicação é simples na perspectiva da teoria da conspiração. As coisas que a Frelimo não “consegue” resolver são aquelas cuja existência é do seu interesse. Assim, o espírito do deixa-andar continua para Guebuza poder continuar a criticar Chissano; a pobreza absoluta continua para a Frelimo poder se apresentar como único partido com soluções; os conflitos internos continuam para a Frelimo poder mostrar que é mais democrática do que a Renamo; o crime reina em Maputo para a Frelimo distrair as atenções do público da corrupção ao nível mais alto; finalmente, Anibalzinho é encorajado a fazer tentativas de fuga para a Frelimo poder mostrar que é séria na sua intenção de o manter na prisão. Isto, conforme disse mais acima, é superstição.

O que este tipo de análises revela é uma falta de interesse no que realmente conta para se descrever e analisar fenómenos sociais. O que conta em minha opinião é a própria realidade social, as pessoas que agem dentro dela e os efeitos do que elas fazem. Os estudos aludidos mais acima bem como a opinião generalizada no País revelam, no fundo, uma incompreensão assustadora da realidade social moçambicana, dos seus actores e dos efeitos da sua acção. Sem essa compreensão é difícil encontrar explicações que não se alimentem das teorias de conspiração. Mas pior do que isso, e espero não ser demasiado denso na minha explanação, a prioridade que damos à conspiração é que é responsável pelo poder da Frelimo. Dito de outro modo, as nossas explicações são profecias auto-poéticas, isto é vaticínios que por força da nossa própria crença se tornam verdade. De tanto acreditarmos no poder da Frelimo atribuímos a ela tudo quanto acontece no País e, por via disso, transformamos as nossas próprias crenças na prova da realidade. Os nossos receios, digamos, são a prova dos nove do que não entendemos. Mas há mais. As nossas profecias não só são auto-poéticas como também nos condenam à paralisia. De tanta omnipotência para que vale a resistência? Muitos resignam-se. Os estrangeiros que nos vêm ajudar agitam-nos com outras profecias, nomeadamente a profecia de que a única saída é a guerra. Espero estar a conseguir transmitir quão perigosos são os hábitos de pensar mal. O líder da Renamo tem se desdobrado perigosamente com ameaças de um retorno à guerra caso a “Frelimo” continue a fazer as suas “brincadeiras”.

Não me parece útil analisar a nossa situação política a partir do pressuposto segundo o qual o que anda mal seria no interesse da Frelimo. Por acaso, até, existe um livro dos anos noventa escrito por Patrick Chabal e Jean-Pascal Daloz com o título eloquente “Africa works – disorder as instrument” (A África funciona – A desordem como instrumento), que dá respeitabilidade académica a esta forma de pensar. Os autores defendem, na verdade, a tese de que a desordem característica dos sistemas políticos africanos é funcional aos interesses dos que a produzem. A desordem, por assim dizer, é propositada.

Ora, esta é uma abordagem problemática porque reduz a complexidade dos fenómenos sociais africanos a um conluio que só tem existência nos quadros de referência teórica que se usam para apreender o continente. Precisamos de maneiras de perceber que circunstâncias, interesses, acções e processos sociais se aliam para produzirem situações que tornam a desordem ou mesmo o conluio possíveis. A mera suposição de que a Comissão Política da Frelimo se sente para discutir como subverter a justiça não é suficiente para fazer isso. Precisamos de maior sofisticação, maior distância analítica e, naturalmente, de coragem para resistirmos ao canto sedutor da explicação supersticiosa.


Sunday, January 21, 2007

O Poder da Frelimo

O Elisio Macamo publicou, há pouco tempo, mais uma série de textos no NOTICIAS, cujo tema central foi O Poder da Frelimo. Textos em algum sentido alimentados pelo recente congresso do partido no poder.

Vou reproduzi-los aqui para quem não teve a eles acesso no jornal e para que possam ser comentados, na medida em que me parece que contêm muita matéria para comentário.
Aqui vai o primeiro:

O poder da Frelimo (1)

Por E. Macamo

A Frelimo é tão poderosa quanto Deus. Ou melhor: tal como a omnipotência e omnipresença de Deus, o poder da Frelimo é tão grande e permeia tanto a sociedade quanto maior for a nossa crença nele. O pior nisto é que esta crença conduz a duas situações curiosas. Por um lado, ela leva muitos de nós a agirem de acordo com o que pensamos ser a vontade dessa Frelimo poderosa; alguns podem chegar ao ponto de violar normas e regras por pensarem que assim estão a respeitar a vontade dessa Frelimo todo-poderosa. Por outro lado, e igualmente mau, as pessoas que se consideram como sendo a Frelimo – em oposição, digamos, aos que são da Frelimo – também começam a acreditar que são mesmo poderosas.

Alguns estudos recentes realizados por encomenda de organizações internacionais como a Swisspeace (da Suíça), pela DFID (Grã Bretanha) e pela USAID (EUA) levantaram o espectro de uma democracia falhada em Moçambique, vítima da omnipotência e omnipresença da Frelimo. Moçambique, conclui-se algo apressadamente nesses relatórios, está a regressar ao tempo do partido único. O aparelho do Estado está nas mãos ciumentas da Frelimo; o mundo de negócios está fortemente manietado pelo chamado partido da maçaroca e batuque; e mesmo a sociedade civil está num processo de transformação em braço prolongado do partido no poder. Moçambique, vaticina-se nesses estudos, está a caminhar a passo seguro rumo à guerra.

A oposição sucumbiu às investidas da Frelimo, tendo sido vergada à vontade de ferro deste poderoso partido com sede na Pereira de Lagos. Os erros que a liderança da Renamo comete, as cisões e a sua atrapalhação geral são vistas como sendo o resultado de maquinações orquestradas pela Frelimo. Este estado de coisas constitui um mau agoiro para a saúde da democracia e da paz no País; os descontentes, diz-se com uma ponta de esperança, vão se erguer, pegar em armas e comprometer para sempre a luta contra a pobreza absoluta.

A situação objectiva do País não encoraja, na verdade, nenhum outro tipo de leitura. De facto, desde que Guebuza tomou as rédeas do partido e, depois, do Estado, a Frelimo tem sido mais agressiva na afirmação da sua identidade, na confrontação com a oposição e na definição do seu papel no Estado. Ao mesmo tempo, pelo menos a julgar pela letra e espírito das teses ao Nono Congresso bem como pela forma como esse evento decorreu, a Frelimo dá a impressão de ter redescoberto um dos seus mitos fundadores, nomeadamente a crença na ideia de que ela é o legítimo e único representante do povo moçambicano e que o que é bom para ela é bom para todo o povo moçambicano. Os sinais, de facto, não são muito bons e as fanfarras que estudos apressados vão tocando oferecem-nos uma bela oportunidade de analisarmos o que se está a passar ao nosso redor.

A independência que nos foi servida de bandeja por homens e mulheres de espírito intrépido reunidos em torno da Frelimo constitui um bem muito valioso. É responsabilidade de todo o moçambicano, mesmo daqueles que não simpatizam com a Frelimo, honrar os sacrifícios consentidos pelos seus membros pela liberdade de que hoje desfrutamos. As fraquezas humanas que uma e outra vez alguns veteranos dessa epopeia revelam não retiram o valor ao que eles fizeram, nem devem servir para lhes negar o lugar que merecem no nosso panteão histórico. Os excessos do período imediatamente a seguir à independência também não são razão suficiente para questionar o papel preponderante que a Frelimo desempenhou no nosso devir histórico. Não obstante, honrar a Frelimo e valorizar a liberdade significa também prestar atenção ao que pode colocar em perigo esses ganhos. Significa, de forma mais profunda ainda, aprender da história e dar valor à segunda liberdade que os erros e excessos do pós-independência tornaram necessária por via da instrumentalização de moçambicanos em torno da Renamo.

O último congresso deste partido, que veio na esteira de inquietações emitidas pelas agências acima citadas, tornou claro que a opinião pública moçambicana precisa de chegar a um consenso sobre o que a Frelimo é e em que consiste o seu poder. Tenho a impressão de que mais do que a opinião pública nacional, muitos membros da Frelimo precisam deste consenso. Na verdade, a simples suposição de que todos sabemos do que estamos a falar quando evocamos a Frelimo ou o seu poder tem constituído, em minha opinião, uma das razões para os receios dos que vêem o perigo da monopartidarização e, sobretudo, tem sido a fonte a partir da qual a confusão entre partido e Estado tende a não ser vista como um problema grave da evolução política recente do País. Nos artigos que se seguem vou debruçar-me sobre o “poder da Frelimo” tentando partilhar com os leitores outras formas de ler a nossa situação política sem o recurso às teorias de conspiração que são o apanágio das nossas abordagens.

Vou também abordar aspectos relacionados com o próprio partido, nomeadamente a sua filosofia, o papel dos académicos, dos técnicos e, de uma forma geral, a impressão que alguns dos seus estrategas dão do que pensam sobre a democracia, lugar da oposição e sobre o papel do seu próprio partido no contexto geral das coisas da vida. Estou a tentar fazer um exercício de reflexão crítica em resposta a um instinto animal muito mais forte do que a recomendação da modéstia intelectual de falar pouco. A esperança continua a ser de falar muito até acertar.