Ideias para Debate

Tuesday, May 02, 2006

Ainda a Música

Do Daniel Doku recebi o seguinte texto:

Música e Identidade: Esclarecimentos

No seu artigo “A Marrabenta, das cordas que se arrebentam!” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 29 de Março de 2006), Patrício Langa tenta esclarecer o que considera serem zonas de penumbra no seu texto anterior “Ritmos locais e músicas globais: reflexão sobre a música e identidade moçambicana” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 30 de Janeiro de 2006). É uma resposta ao meu comentário “Música e Identidade: Mais Reflexões” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 27 de Março de 2006), ao seu texto anterior. Agradeço muito as palavras calorosas de Patrício aos meus esforços e aceito de bom grado as suas últimas observações. No entanto, pelo que consta na sua última intervenção, é claro que persistem diferenças de opinião relativamente aos significados dos termos “raiz”, “essência” e “identidade nacional” neste debate sobre a música e identidade. Patrício culpa-me, ainda, de essencialismo, sofisma e circularidade na argumentação. No que se segue, tentarei diminuir as diferenças de opinião entre nós e responder, o melhor que puder, às suas acusações.

Na sua resposta à minha intervenção, Patrício escreve: “segundo o Daniel, a RAIZ nasce, cresce e (medra!) eventualmente morre (...). Pois bem, o que é que isso tem a ver com a música?” (destaque meu). É importante que fiquemos claros desde já que foi Patrício, na sua ânsia de fazer pouco caso de qualquer referência à palavra “raiz” no contexto da música, que introduziu a comparação entre a música e a raiz. Talvez ele pudesse responder que só estava a verbalizar o que os que ele chama de “essencialistas” pensam. Não obstante, fora Patrício que afirmara que a “raiz da planta com a qual ela assenta e fixa na terra donde suga os sais minerais para a sua própria existência é fixa, imutável, inerte, pois caso contrário morreria.”

Eu respondi, meramente, com dois reparos. Em primeiro lugar apontei que esta última afirmação de Patrício era patentemente falsa pois a raiz de uma planta cresce, desenvolve-se, até medra e eventualmente morre. Na verdade, foi por isso que eu caracterizei a passagem em que se encontrava aquela afirmação como uma passagem muito peculiar. Em face de tudo isto, é mesmo muito mais peculiar, penso eu, até estranho, que Patrício esteja a colocar agora a questão retórica acima destacada. Contudo, para que conste e para bem de Patrício diria que a raiz de uma planta não tem nada a ver com a música.

Em segundo lugar, Patrício mantém que quando se fala de “música de raiz” está-se necessariamente a apelar para o essencialismo em música, a excluir e a menosprezar o resto da música moçambicana. Não creio em essencialismo em música, apesar do que Patrício diz e, portanto, discordaria com quem afirme o que Patrício receia. Até lá espero que concordemos.

Contudo, notei que uma referência à raiz da música não poderia ser nada mais do que uma alusão à origem de uma música específica. Este sentido alternativo da palavra “raiz” parece-lhe aceitável. Segundo ele “A segunda alternativa [de Daniel] parece-me mais correcta, até pela explicação que ele adianta para a fraqueza do meu argumento”. Eis, quer-me parecer, a primeira diferença entre nós. Pois, a questão que se coloca é: Qual seria a consequência se aceitássemos este sentido da palavra “raiz”?

Aventaria que, se nos despojarmos da obsessão com o essencialismo, verificaremos que se pode falar de “música de raiz” significando simplesmente o emprego de sons e ritmos específicos (originais, se se quiser) como recursos na produção e no desenvolvimento da música e sem nenhuma reclamação de superioridade da música resultante. Portanto, precisa-se de um argumento separado para se poder ignorar esta possibilidade. No meu entender, excluí-la, sem justificação, como Patrício faz, é ter uma óptica estreita. Ademais, legislar contra o uso de tal matéria, sob pena de ser rotulado de “essencialista”, é um tipo inaceitável de censura. Assim, não estou a defender ninguém, mas sim a chamar a atenção para juízos irreflectidos quando se vê a palavra “raiz” empregue no contexto da música.

Patrício perguntara ainda: “o que é que faz a música de MC Roger uma música ‘desenraizada’?”. Agora, diz ele que não é um argumento seu embora admita que isto é o que ele supõe os que ele chama de “essencialistas” dizerem. Muito bem. O meu ponto é que o comentário de Patrício presume essencialismo. Contudo, se, por outro lado, ao invés de presumir essencialismo se interpretar “raiz” como emprego de sons e ritmos específicos como recursos, o comentário de Patrício revelar-se-á inútil, emotivo e ininteligível.

A segunda diferença entre nós tem a ver com o significado da palavra “essência”. Segundo o dicionário “Reader’s Digest Great Illustrative Dictionary, 1984, Vol.1”, no qual consultei esta palavra, há dois significados relevantes. Na verdade, aproveito-me desta oportunidade para incluir abaixo, em parênteses, os verbetes correspondentes no “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea: Academia de Ciências de Lisboa, 2001”

O primeiro é o inerente e imutável carácter de uma coisa (ou classe de coisas) percebido como distinto dos seus atributos ou da sua existência. Reconhece-se esta ideia vulgarmente como essencialista.

(“Aquilo que uma coisa é, no sentido real, lógico ou conceptual.”)

O segundo significado é o conjunto das qualidades pelas quais um ser ou uma coisa se define, ou seja, pelas quais se caracteriza a sua identidade. Quer dizer, um grupo indispensável de características de um ser ou de uma coisa.

(“Conjunto das características que definem um ser.”)

Diz Patrício comentando as minhas afirmações: “Não sei se concordo com os dois significados do termo essência apresentados pelo Daniel. Subscrevo, no entanto, o primeiro sentido. (...) O segundo parece reproduzir de forma, sofística, camuflada o essencialismo do primeiro sentido. Penso que esse problema deve se a dificuldade que o Daniel tem de enquadrar conceptualmente a MUDANÇA, o processual no seu raciocínio”. Diria eu que apesar da incerteza de Patrício há estes dois significados da palavra “essência” e que qualquer bom dicionário os discrimina. Portanto, as alegações de sofisma e camuflagem apresentadas por Patrício são infundadas.

Patrício ainda alega: “Ao usar o meu exemplo de Bourdieu que o Daniel traz para sustentar a existência da marrabenta, acaba por me atribuir um argumento que na realidade é seu”. Esta afirmação de Patrício é simplesmente falsa como procurarei mostrar adiante.

Quando eu disse: “Segundo Patrício, parafraseando o sociólogo francês Pierre Bourdieu, ‘Falantes de uma língua subscrevem-se num sistema geral; enquanto que o uso individual varia, os indivíduos estão conscientes das fronteiras do sistema que prescreve limites aceitáveis sobre as variações. A produção e a recepção do trabalho criativo de arte musical obedecem à mesma lógica’” (destaque meu) não estava a atribuir nenhum argumento a Patrício. Estava, sim e meramente, a reconhecer a fonte da citação pois não li o texto de Bourdieu. Na verdade, pensava, e ainda penso, que Patrício citou Bourdieu aprovando-o. Além disso, foi por isso mesmo que tomei de empréstimo a citação, e fi-lo porque, no meu entender, tem relevância para o nosso debate, quer dizer, Bourdieu está a dar corpo ao segundo sentido da palavra “essência”. Sentido esse que Patrício finge não existir.

Eu interpreto um “sistema geral cujas fronteiras prescrevem os limites aceitáveis” como “um grupo indispensável de características” pelas quais se reconhece uma língua específica como francesa, por exemplo, ou uma música específica como marrabenta. O ponto-chave, aqui, é que o “sistema geral” ou o "grupo de características” não é fixo, mas mutável. E é por isso mesmo que tudo isto não tem nada a ver com essencialismo como Patrício afirma. Note-se, também, que o “sistema geral” ou o “grupo de características” é indispensável, pois sem ele não se consegue reconhecer uma língua ou um género musical específico. Aliás, creio que este é precisamente o ponto de Gabriel Muthisse quando ele diz a Patrício: “Há música moçambicana sim, assim como existe música cubana, portuguesa, angolana, russa, indiana, egípcia e por aí fora. Reconhecer isto é ser essencialista?” Assim, fazer comentários como “Talvez [estas características] existam, e eu não as conheça”, como Patrício faz, é compreender mal estas ideias. Em todo o caso, esta é a minha interpretação das frases em destaque acima. Afirmo desde já que a minha interpretação pode não ser a única possível e talvez Patrício nos pudesse dar a sua.

Relativamente à terceira diferença de opinião, note-se que Patrício perguntara ainda: “o que faz uma produção musical – a criação harmónica de ritmos e sons e voz – merecer uma identidade nacional? Em outras palavras, em que reside a moçambicanidade da música?”. Ele persiste na sua opinião de que estas são uma mesma questão. Segundo ele, “Se entendemos que por moçambicanidade nos referimos a identidade nacional dos moçambicanos, então, não há diferença nenhuma nas questões: são, semanticamente, idênticas! Por isso, não há por que tratá-las como se fossem diferentes”.

Parece-me que Patrício confunde o emprego da expressão “a identidade nacional dos moçambicanos”. Explico-me. É verdade que com “moçambicanidade” nos referimos à identidade nacional dos moçambicanos, o que também fazemos usando “moçambicano/a”. Só que enquanto moçambicanidade implica o nominativo (que é a identidade cultural dos moçambicanos), moçambicano/a não o implica necessariamente. O último pode ser adjectival.

Por exemplo, um carro com o número de matrícula MMH-18-35, na fronteira de Ressano Garcia na África do Sul, poderia ser descrito como um carro moçambicano. Esta descrição meramente indicaria que o carro está registado em Moçambique. Mas seria seguramente ridículo supor que tal carro (talvez produzido na Dinamarca) tivesse alguma coisa a ver com a identidade cultural dos moçambicanos.

É por isso mesmo que vejo duas questões na pergunta de Patrício. No meu artigo tentei responder às duas. Na verdade, dei um sinal da minha intenção no subtítulo do meu texto: “identidade da música”, indicando a vertente adjectival, e “identidade em música”, a vertente nominativa. Assim, quando Patrício escreve “O Daniel diz que só vejo uma questão onde ele identifica duas, e por isso acaba ele mesmo caindo em contradição na busca do pretenso segundo sentido. (...) Acabou de falar de hip-hop americano, marrabenta moçambicana etc., não são essas identidades nacionais em música, como sugeriu?” (destaque meu) é claro que ele leu mal o meu artigo pois a minha convicção é que hip-hop americano e marrabenta moçambicana são identidades nacionais da música. A isso voltaremos mais adiante.

Ademais, no meu artigo, e comentando a vertente adjectival, escrevi o seguinte:

“Num sentido geral, quase trivial e não muito interessante, música moçambicana seria a soma de todas as músicas produzidas pelos moçambicanos. Mas, num sentido mais relevante para a nossa análise, identificar uma música como música moçambicana significa uma atribuição particular àquela música. É também um efeito significativo e, para merecer esta identificação, aventaria que a música, de entre outras coisas, há-de ter uma forma musical identificável; ser razoavelmente distinta das outras formas musicais, quer nacionais quer estrangeiras (embora possa ter influências musicais destas); ter sido desenvolvida e aperfeiçoada pelos moçambicanos; e ser aceite pelo seu público, ou seja, os próprios moçambicanos e os estrangeiros, como tal. Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.”

Patrício, por sua vez, descreve as frases em destaque do seguinte modo: “Esta circularidade do argumento do Daniel só documenta a dificuldade que enfrenta para satisfazer o desejo ‘essencialista’ da busca do fixo e imutável”. Parece-me, relativamente ao comentário de Patrício, que há dois aspectos a considerar: o que significa circularidade em argumentação e: Qual é a relevância do essencialismo neste contexto? Tomemos um e depois o outro.

Primeiro, não vejo nenhuma circularidade na passagem em destaque pois, quando eu digo que “para merecer esta identificação... a música, de entre outras coisas, há-de ter uma forma musical identificável”, estou, simplesmente, a afirmar o óbvio e não, como Patrício supõe, a apresentar um argumento circular. E faço-o porque estou a enumerar características necessárias e acho que é apropriado incluí-lo para acabamento.

Então, o que é circularidade em argumentação? Circularidade já é uma coisa bastante diferente. É tomar como certo o que está em questão, quer dizer, um argumento da seguinte forma:

A porque B

B porque A.

Por exemplo, uma pessoa diz-nos que “segundo a Bíblia Deus existe”. Nós perguntamos-lhe como sabe que a Bíblia é verdadeira e ela responde-nos: “Porque a Bíblia é a palavra de Deus”. Neste caso, uma das coisas que está em questão é a existência de Deus, mas, na sua resposta, o nosso interlocutor toma como certo precisamente este ponto. Portanto, ele apresenta um argumento circular. Nada disto se encontra na passagem em destaque razão pela qual o que Patrício alega é, no meu entender, falso.

Segundo, se aceitarmos que não há nenhuma circularidade, como Patrício alega, verificaremos ainda que a sua referência ao essencialismo neste contexto é não só gratuita mas também infundada. Pelo que venho dizendo, parece-me que Patrício está obcecado com a ideia de essencialismo, obsessão essa que o impede de analisar com o devido cuidado os argumentos dos outros. Dever-se-ia ter cuidado com a acusação apressada de essencialismo pois, muitas vezes não serve para nada senão para asfixiar um debate sério sobre a identidade.

Voltando à música e identidade nacional, Patrício, supostamente numa tentativa de esclarecer a sua posição, diz: “Não estou a negar que exista música moçambicana, estou, simplesmente, a tentar dizer que não são apenas, os ritmos e sons que se têm evocado como genuinamente moçambicanos que fazem música moçambicana ser moçambicana”. Mas, em exame minucioso, descobrimos que esta afirmação é ambígua, vaga e de pouca ajuda.

Por um lado, não fica claro se Patrício acredita na existência da música moçambicana. Pois, tanto quanto sabemos, ele pode ser agnóstico em relação ao assunto. Noutra passagem, diz ele: “em nenhum momento eu recusei que Marrabenta, por exemplo, fosse música moçambicana. Estou cansado de repetir isso.” Muito bem, mas escusado será dizer que tal evasiva não leva o debate adiante. Por outro lado, não está claro se ele emprega “moçambicano/a” no sentido adjectival ou no sentido nominal. Talvez Patrício pudesse esclarecer isto se ele respondesse à sua própria “uma só questão”.

Nesta contribuição, reiterei que se pode falar da raiz até da essência de uma música específica sem pressupor necessariamente essencialismo em música. Reiterei, também, que a ideia de identidade nacional tanto pode ser empregue no sentido adjectival como no sentido nominal. Portanto, dever-se-ia distingui-los, ou pelo menos tê-los em mente, neste debate para, no mínimo, evitar confusão. Argumentei ainda que, pelo que eu disse até à data, neste debate sobre música e identidade, não se pode acusar-me, como Patrício tenta fazer, nem de essencialismo, nem de sofisma, nem mesmo de circularidade em argumentação.

Daniel Doku

Maputo

02/05/06