Ideias para Debate

Monday, January 17, 2005

Testamento político

Nos finais do ano passado chegou-me às mãos um texto do falecido Leite de Vasconcelos.
Pelos meus cálculos deve ser de entre 1992 e 1994. Penso que é um bom texto para inaugurar este blog:

Se chegaram a ser muitos, são hoje cada vez menos os iludidos. Um partido que cai rebolando pela escada da inépcia e um Governo atolado na mais abjecta corrupção só podem conservar na ilusão os que se esforçam em permanecer nela.

A questão não está apenas em desmascarar um partido que perdeu a vergonha há vários anos. O “Ã direita volver” do VI Congresso, a cantilena desafinada do “partido de todo o povo”e a fantástica tese de que a eclosão do capitalismo selvagem em Moçambique correspondia à “extensão e aprofundamento” da “democracia popular” eram já, mais do que uma apressada actualização, o descalabro do Partido Frelimo como representante das trabalhadores.

A questão está em recusar a inexistência de alternativas a este colocar o país acocorado agradecendo que o pacifiquem à custa da sua venda a retalho.

O Partido Frelimo representou um projecto social que foi derrotado. Isto não é novo. Outras forças sofreram revezes e derotas pesadas. O que é novo é a direcção do partido bandear-se em bloco para o lado dos vencedores e arrastar atrás de si o partido. O que é novo é a identificação dos dirigentes dos vencidos com os vencedores, a sua súbita assimilação de tudo quanto antes combatiam, a ponto de serem os mais ávidos na partilha dos despojos da guerra, os mais convictos, ainda que incompetentes, defensores do capitalismo.

Ou seja: sob a influência dos seus dirigentes, o Partido Frelimo não se reformou – decalcou-se do seu contrário, usando um papel químico gasto e esgaçado que torna ainda mais insensatos os contornos do capitalismo.

Este processo foi apresentado como a única solução possivel para a guerra, como a única plataforma que podia assegurar a paz em Moçambique. É nisto que os dirigentes da Frelimo mais se identificam com os seus anteriores adversários. Como eles, apresentam a aceitação passiva da exploração e do neo-colonialismo como condição essencial da paz. E procuram afanosamente ser os melhores agentes internos dos novos patrões.

Na realidade, o jogo viciado que a direcção da Frelimo pratica, longe de assegurar a paz, conduz o país para a desagregação e conflitos ainda mais devastadores e prolongados do que a guerra que se afirma ter terminado. Antes o imperialismo tinha apenas um peão em Moçambique – a Renamo. Hoje tem dois e poderá jogá-los um contra o outro, quando e sempre que lhe convier fazê-lo.

Um partido revolucionário, quando sofre uma derrota, deve analisar o que a provocou e fazer o exame crítico dos seus erros. Eis o que a Frelimo não fez. Os seus dirigentes preferiram render-se e fizeram-no alegre e apressadamente – com a pressa de quem não quer perder o comboio dos exploradores.

Muitos ficaram, até agora, amarrados à convicção de que, apesar de tudo, a Frelimo é o menor de dois males. É hoje evidente que a direcção da Frelimo contou com a paralisia da maioria dos militantes, para os quais qualquer enfraquecimento do Partido era um ganho para a Renamo.

Mas, hoje, é também evidente que os trabalhadores moçambicanos foram colocados entre duas hastes da mesma pinça.

Nenhum partido representa hoje os trabalhadores moçambicanos. A Frelimo, exceptuando uma simbologia cada vez mais vaga e mais negada pela sua política, alijou o seu património revolucionário. A festiva “oposição não armada” não é apenas inepta: oscila entre casos comprovadamente psiquiátricos e o mais descarado oportunismo, sendo que todos pretendem atrelar-se a um “plano Marshall” que só uma completa imbecilidade permite esperar. A Renamo tem o terror por vocação, é o agente da chantagem imperialista.

A Tão desejada transformação da Renamo num partido nacional, mesmo de extrema direita, é mais do que improvável. Os seus dirigentes são criminosos por formação e instrumentos por ambição. A ideia de construir um regime democrático com a Renamo é uma aberração, cuja única virtude é mostrar os extremos a que pode chegar a hipocrisia das “grandes democracias” que dominam o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

O projecto que a Frelimo procurou realizar foi alvo da agressão implacável do imperialismo, conduzida pelo regime racista da África do Sul. A situação catastrófica em que se encontra o país foi provocada por essa agressão.

Não é demais repetir isto porque o coro dos bem pensantes ocidentais e dos “democratas” africanos, embora saiba perfeitamente a quem cabe a responsabilidade, não se cansa de a atribuir ao “governo marxista da Frelimo”, coisa também afirmada pela Renamo, que foi o agente directo das destruições e massacres. Há mesmo uma equivocada “crítica de esquerda” , também localmente presente, que está tão empenhada em procurar razões do desmoronamento dos sistemas socialistas nos erros destes que parece esquecer a acção do imperialismo.

A Frelimo cometeu erros, cometeu mesmo erros graves. Mas só a cegueira mais imbecil pode querer encontrar nesses erros a causa da agressão imperialista. É inaudito acreditar que o imperialismo agrediu Moçambique porque o projecto socialista se revelou irrealizável devido aos erros da Frelimo. O passo seguinte seria pensar que o imperialismo queria rectificar os erros da Frelimo para que o projecto socialista se pudesse realizar!

Moçambique foi implacavelmente agredido porque, apesar dos erros que a Frelimo cometeu, o projecto socialista era realizável e estava a ser realizado. Os erros enfraqueceram a capacidade de resistência popular e facilitaram a tarefa do agressor. Mas não devemos confundir o agressor com o agredido, mesmo que a direcção da Frelimo esteja hoje de braço dado com os agressores, mesmo que sintamos ser essencial fazer a crítica dos erros, porque a política e a atitude actuais da direcção da Frelimo germinaram neles.

Os trabalhadores moçambicanos estão hoje indefesos face à extrema violência que caracteriza a imposição do sistema capitalista no país. Nenhum partido os representa e não devemos ter ilusões acerca da possibilidade de recomposição rápida dum movimento político que articule os seus interesses e os exprima através de processos de luta política, social e económica coerentes e eficazes.

Foram postos em marcha poderosos factores de desagregação das classes trabalhadoras, da sociedade e do próprio país. O multipartidarismo, tal como está sendo imposto, de forma artificial e apresentado como panaceia universal, é o maior e o mais perigoso dos logros políticos. O etnicismo transporta consigo o reacender dos conflitos tribais e a mistificação de que edificar uma sociedade moderna implica o regresso às formações tradicionais, mistificação que só serve para que o imperialismo não encontre nenhuma resistência séria à sua acção. (Quando eram jovens e vigorosas, a resistência das formações tradicionais ao colonialismo foi ineficaz. Como se pode esperar que, sendo agora anacrónicas e débeis, possam resistir à dominação imperialista? A “esquerda”que incautamente anda por aí transformando a antropologia em ideologia faria melhor em procurar resposta a esta pergunta antes de saudar o regresso do poder tradicional como a marca da “democracia africana”).

As formas selvagens de capitalismo tornam-se ainda mais selvagens num país que, não produzindo mais do que dez por cento das suas necessidades, não produz certamente o que poderia permitir uma acumulação primitiva de capital. Como consequência, a acumulação particularmente ávida e apressada que alguns sectores estào a fazer assenta nos desvios dos bens do Estado, da ajuda humanitária e de créditos, que não são aplicados sob a forma de investimentos produtivos.

A maioria numérica dos nossos candidatos a empresários são dirigentes e quadros do aparelho de Estado e das Forças Armadas que dirigem a sua acumulação para a importação (geralmente ilegal) de bens sumptuários e de mercadorias para o sector informal, que gera um gigantesco lumpen-proletariado, capaz de explodir erraticamente a qualquer momento, mas incapaz de ser sujeito dum processo coerente de luta pela realização de direitos económicos.

Nas zonas rurais, a dispersão e a produção familiar dificultam enormemente o surgimento de formas de organizaçào dos camponeses que lhes permitam lutar eficazmente contra a pilhagem das terras e a desvalorização dos excedentes que comercializam.

Tudo isto nos indica que a recomposição dumj movimento político que represente e articule os interesses das classes trabalhadoras não será um processo fácil e rápido. O que é uma excelente razão para não se perder tempo em começar.

Há uma outra tendência de “esquerda” que, sendo sem dúvida generosa e partindo duma constatação inegável, executa um grande salto no tempo e propõe soluções que, aplicadas hoje, não fariam mais do que facilitar uma recolonização do país.

É espantosa a ingenuidade com que essa “esquerda” considera o vistoso slogan da “cooperação regional”, sem se interrogar a quem ela serve e que objectivos visa. É ainda mais espantoso que, neste particular, todos os quadrantes pareçam estar de acordo, ou seja, todos pareçam estar convictos de poderem utilizar a cooperação regional a seu favor.

O raciocínio das potências capitalistas é bastante claro e inteiramente lógico. Trata-se de integrar mercados cuja dependência está assegurada. É uma simples operação de racionalização e só fica por discutir que grupos multinacionais exercerão maior influência na zona.

O raciocínio da “esquerda” é bastante confuso e inteiramente desprovido de lógica. Parece partir da ideia de que, não sendo possível criar uma resistência efectiva ao imperialismo em cada um dos países da região, ela pode ser efectiva no quadro do conjunto dos países da zona. Isto assemelha-se a uma boa ideia até notarmos que se trata duma união entre Estados extremamente dependentes e duma cooperação que, precisando de ser financiada pelas potências capitalistas, se terá de conter nos limites que elas fixarem. É absurdo pensar que financiarão uma cooperação regional que tenha por objectivo libertar economicamente os países da região. Aparentemente, há na “esquerda” quem acredite neste absurdo. Outra coisa seria a cooperação regional entre movimentos políticos que representem as classes trabalhadoras. Mas para isso é necessário que eles existam e se desenvolvam em cada país. O que nos remete sobriamente para as tarefas da fase actual, a menos que desejemos fazer mera ficção política.

Uma outra tese do optimismo de esquerda é a do “arrastamento”. Ela postula que o desenvolvimento da luta operária pelo proletariado mais forte e organizado da região, o da África do Sul, exercerá um efeito poderoso sobre a organização e a luta dos trabalhadores nos restantes países. O estreito mecanicismo desta concepção é suficiente para que a olhemos com a maior desconfiança, principalmente se o corolário for devermos esperar até que os efeitos da luta dos operários sul-africanos se façam sentir em Moçambique.

Recompor uma força política que articule e defenda os interesses das classes trabalhadoras, sem ilusões em relação à actual direcção do Partido Frelimo e aos caminhos que escolheu, é a única via para resistir à recolonização do país. É, simultaneamente, um objectivo de classe e um objectivo patriótico.

4 Comments:

  • Então benvindo a este mundo tão peculiar e interessante. Haverá, deixe-me incluir a mim própria, muitos que lhes faltarão o extenso e erudito colóquio e que lhe é tão particular, tente não nos perder das suas leituras. Um abraço. Passada

    By Blogger Passada, at 1:38 PM  

  • Abra lá esse álbum.
    Estamos aqui para o combate!
    Força!!!

    By Blogger RjL, at 2:46 PM  

  • Este texto deixou-me com um nó na garganta. Obrigado por divulgá-lo (julgo ser inédito, não é?). E bem vindo ao maior quiosque que alguma vez conheci. Força na caneta, pois aqui tem mais um leitor.

    By Blogger Carlos Gil, at 2:50 PM  

  • Como os links não funcionam, informo que o meu pasquim é o "Xicuembo".

    By Blogger Carlos Gil, at 2:52 PM  

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