Ideias para Debate

Saturday, January 22, 2005

Governos Provinciais

Dentro da série de textos do sociólogo Elisio Macamo com o título geral O Que a Campanha não Discutiu, aqui vai o terceiro texto. Polémico e a merecer debate, como vão ver:

(3) Abolir os governos provinciais

Apesar de estar ainda longe, um dia o nosso País vai ter mais chefes do que povo. Muitos chefes, poucos índios. Um jornalista camaronês fez uma contagem exaustiva dos chefes que o seu País possui e chegou à alarmante conclusão de que quase metade dos camaroneses eram chefes duma ou doutra coisa. Se, em Moçambique, tivermos em conta o facto de que cada família, juridicamente, tem um chefe esse dia pode, afinal, não estar assim tão distante.
Um tipo de chefe que temos e que, em minha opinião, não precisamos, é o governador. Há razões que explicam a existência deste chefe. Ele – e é sempre “ele” – representa o chefe de Estado na província. Através dele a nação faz-se presente ao nível local. Para um País tão extenso como o nosso e com o tipo de dificuldades que temos em estabelecer a comunicação entre nós, a ideia de reproduzir o chefe de Estado em miniatura, mas sem cachimbo, nos escalões mais baixos da hierarquia do nosso Estado não parece má. O problema, contudo, é que só a função ceremonial não justifica as despesas que este cargo acarreta para o orçamento do Estado. Mas há mais. A existência deste chefe fustiga as esporas do debate étnico, torna o sistema administrativo desnecessariamente pesado e ignora o tipo de dinâmica estrutural em que nos encontramos.
De cada vez que a tômbola das nomeações chega levanta-se sempre a questão de saber se o governador duma província deve ser oriundo da mesma ou não. Muito boa gente pensa que deve ser assim, pois, argumentam, as províncias representam, pelo menos na imaginação dos que defendem esta tese, uma certa coerência étnica. Mesmo nas províncias do sul, que do ponto de vista étnico são mais homogéneas, não me parece pacífica a questão de saber se alguém que é oriundo de “Gaza” é necessariamente representativo da população dessa província. Já que o substracto desta discussão é sempre a etnia, um governador completo de Gaza tinha que ser xangan-chopi-ronga, tudo numa única pessoa.
Há também o problema da redundância administrativa. O governo provincial é uma cópia fiel do governo nacional que se reproduz ao nível distrital e na localidade. Parece uma boneca russa. É um sistema muito fácil de representar graficamente, mas de difícil operação na prática. O director provincial tem praticamente dois chefes, o ministério e o governador, número este que, nalguns casos, subiu com a introdução das autarquias. Que utilidade tem um esquema burocrático tão pesado como este? É muito provável que se perca mais tempo a coordenar actividades do que realmente a desenvolver essas actividades.
Finalmente, os governos provinciais não se afiguram como sendo os instrumentos mais adequados para responder aos desafios do desenvolvimento tal e qual são enfrentados pelo País. Num momento em que precisamos de estruturas dinâmicas, mais autonomia para as comunidades e flexibilidade no processo de decisão, os governos provinciais funcionam muitas vezes como um impecilho que dificulta a articulação de necessidades e actividades destinadas a prover por essas necessidades. Mesmo governos provinciais conduzidos por gente aparentemente hábil como é o caso de Nampula e Sofala não lograram ainda activar o potencial que as suas províncias detêm. E isto não é por culpa dos governadores, é sim porque a própria estrutura, portanto os governos provinciais, não é a melhor resposta aos desafios do desenvolvimento.
Abole-se os governos provinciais e fica-se com o quê? O momento que atravessamos exige maior flexibilidade, mais criatividade e mais responsabilização do indivíduo e da comunidade. Desenvolver o País não deve continuar a ser só tarefa do governo, tem que ser tarefa de cada um de nós. A nossa divisão administrativa reflecte ainda as zonas militares dos portugueses, portanto, não tem nada a ver nem com a economia, nem com a etnia. Parece-me que uma estrutura mais adequada ao momento seriam gabinetes regionais de fomento – melhor do que “desenvolvimento” – que reuniriam apenas técnicos com a tarefa de identificar as potencialidades de cada região, elaborar planos de exploração dessas potencialidades e assessorar as comunidades e indivíduos interessados em tirar proveito do que a região tem para dar. O gabinete de desenvolvimento do vale do Zambeze é um bom exemplo disso. Estes gabinetes teriam também a vantagem de atrair as pessoas formadas para fora de Maputo e, dessa maneira, dar aos muitos defensores da identidade étnica e regional a oportunidade de ir servir a sua etnia directamente na sua região de origem.
Há, porém, limites à realização dum projecto desta natureza. Certos procedimentos burocráticos como o registo civil, a garantia da segurança interna e externa bem como os impostos vão continuar a precisar dum certo nível de centralização. Na verdade, é nesses procedimentos que se reproduz o chefe do Estado, não na figura do governador. Bom, pelo menos devia ser assim. Igualmente, um projecto desta envergadura não é possível sem um processo consequente e implacável de descentralização. A descentralização não deve ser entendida apenas como a satisfação de condições impostas do exterior. É uma oportunidade de responsabilização de cada um de nós e respectivas comunidades pelo seu próprio fomento. É à comunidade que compete explorar os potenciais da sua zona; é a ela que compete livrar-se do lixo, trazer infraestruturas, etc.
O novo presidente pode fazer muito pelo País lançando as bases para um debate sobre este assunto. É verdade que não é fácil enveredar por esse caminho. No fundo, os governos provinciais não estão apenas para representar a nação. São também um meio de alimentar redes clientelares. Ajudam ao chefe de Estado a acalmar os ânimos dos desapontados; com tantos lugares de chefia por distribuir, sempre sobra algum para reestabelecer equilíbrios étnico-regionais ou saldar dívidas por favores prestados. Colocar-se acima dessa tentação podia ser um bom pretexto para entrar no panteão histórico nacional. Pode ser que não seja necessário abolir completamente os governos provinciais, mas nesse caso, seria necessário pensar seriamente na oportunidade de eleger o governador para que ele responda directamente às pessoas que deve servir, não à pessoa que quer satisfazer.

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