Ideias para Debate

Saturday, November 11, 2006

Académicos e Talentos

Aqui vai mais um dos textos que o Afonso dos Santos me mandou:

Banalização

Parece que há palavras que estão a perder o seu significado original, para passarem a designar qualquer caso banal. Este é o caso das palavras “académico” e “talento”.

Uma academia pode designar duas coisas. Pode ser simplesmente um local de ensino. Mas também designa uma agremiação constituída por um grupo de cientistas. E, neste caso, académico é equivalente a investigador científico.

Mas actualmente são designados como académicos pessoas das quais não se conhece qualquer tipo de trabalho científico. Tanto quanto se sabe, são simplesmente “doutores”, ou seja, completaram um curso superior. Daqui se pode inferir que a palavra “académico” se tornou uma pomposa e fraudulenta substituição da palavra “licenciado”. Mas se um académico é qualquer um que tenha completado o grau de escolaridade da licenciatura, então torna-se necessário substituir esta designação (licenciatura) por “academiatura”. Assim já se entenderá que quem conclui uma “academiatura” é um académico.

E se a palavra “académico” pretende designar simplesmente aquele que exerce actividade docente, então todos os professores primários também são académicos. E, já agora, também todos os alunos do ensino primário, pois todos eles frequentam uma academia. E, deste modo, Moçambique torna-se um país do século XXII, porque todo o país passa a ser uma academia. Resultado: assim se amplia ainda mais o significado da palavra “académico”, porque cada cidadão passa a ser um académico.

Geralmente, aqueles a quem chamam académicos são, na realidade, professores universitários e (outros) quadros superiores, e isso não é nenhum desprestígio.

Quanto ao talento, parece que, actualmente, cada principiante que se apresenta num palco ou frente às câmaras de televisão, ou que escreve umas linhas de texto banal, é logo designado como sendo um talento. Se em qualquer actividade profissional existe gente competente e gente incompetente, como é que é possível que isso não aconteça na área artística? Do mesmo modo que existe um estudante talentoso, enquanto o seu colega ao lado é um estudante medíocre, também há artistas talentosos, enquanto outros são banais, e outros são simplesmente artistas falhados.

E, porque existem diferenças individuais, resulta daí que nem sempre uma pessoa tem a aptidão para aquilo que mais gostaria de ser. Alguém pode desejar muito ser escritor e não ter a mínima imaginação, sensibilidade e domínio da técnica para sê-lo; entretanto, talvez tenha alguma aptidão especial para o desenho. Alguém pode desejar muito ser um cantor, e não ter o mínimo talento para isso, mesmo que grave quantos discos quiser, e, entretanto, talvez tenha aptidões para ser um escultor. Mas, como o escultor não actua num palco nem na televisão, então ele só quer ser cantor. Enquanto talvez pudesse ser um excelente mecânico, um talentoso chefe de cozinha ou um desportista excepcional.

Mas porque é que acontece esta banalização do sentido destas (e doutras) palavras? Isto acontece sempre que a classe social detentora do poder político e económico é uma classe dominante inculta, que adquiriu esse poder não como resultado da sua capacidade de produção de bens materiais e culturais, mas sim por via do tráfico de influências e da utilização do Estado para o seu enriquecimento pessoal. Como ela é uma classe inculta, então, para exibir a sua obtusa vaidade, precisa de criar artificialmente uma casta de falsos académicos e falsos talentos que são tão incultos como essa classe que os inventa artificiosamente. Com esse objectivo, essa classe social usa o seu poder financeiro para organizar seminários, galas, concursos, votações e prémios.

E é por causa disso que os ditos “académicos” se esforçam tanto para serem bons serviçais do poder político e económico, e procuram distorcer o saber científico, para tentarem fazer deste um instrumento de propaganda política do seu respectivo partido.

Quando se fala de talento, este significa uma habilidade especial, fora do vulgar, ou seja, fora do banal, e está associado à ideia de perícia, competência invulgar, mestria. Ora, isso só se obtém através de muita aprendizagem e muita prática.

A propósito, Robert Solso, no seu livro Cognitive Psychology, conta a pequena história que se segue. “Há alguns anos atrás, o falecido Bill Chase [investigador na área da Psicologia do Conhecimento] deu uma palestra para peritos, na qual prometeu dizer à audiência o que seria necessário para ser um grande mestre de xadrez. A resposta dele: ‘Prática’. Depois da palestra, eu perguntei a Chase quanta prática. ‘Eu esqueci-me de dizer quanta?’, perguntou ele zombeteiramente. ‘Dez mil horas’.”

Qualquer um pode fazer as contas sobre quantos anos são necessários para se tornar um perito ou um talento em alguma arte ou ciência. No caso de se dedicar à prática duma arte ou à pesquisa numa área científica durante somente três horas por dia, sem falhar nenhum dia, incluindo sábados, domingos e feriados, precisará de cerca de nove anos. E, se descansar nos fins-de-semana, então são necessários doze anos.

Assim, cada candidato a “talento” ou a “académico”, se fizer a contagem de quantas horas por dia dedica ao estudo e à prática pessoal da sua arte ou área de pesquisa científica, poderá calcular quantos anos ainda lhe faltam para poder lá chegar.

A partir daí talvez se possa ter uma ideia de quantos anos ainda faltam para se conseguir criar “um Moçambique evoluído, próspero e democrático” (Programa da Frente de Libertação de Moçambique, 1968). Mas com falsos académicos e talentos nunca lá se chegará.

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FIM DO TEXTO

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