Mais uma contribuição
Em mais um texto o Daniel Doku volta a pôr em causa algumas ideias de Elósio Macamo:
Amor à Liberdade: Mais Reflexões
No seu artigo intitulado “Amor à liberdade” (http://ideiasdebate.blogspot.com, 7 de Março de 2006) Elísio Macamo reflecte sobre o que significa a vida em sociedade e lembra-nos da importância, na verdade, da necessidade de coexistência pacífica em sociedade. Contudo, reclama ainda que a religião não se coaduna bem nem com a liberdade de pensar por si próprio, nem com o dever moral de se assumir responsabilidade pelos seus próprios actos. Parece que a sua reclamação se baseia na forte influência que alguns clérigos exercem sobre os crentes. Influência essa que Elísio considera ascender à interferência na liberdade individual dos crentes. Cito-o: “esta interferência na liberdade individual constitui, para mim, um perigo muito grande à possibilidade de convivência sã numa sociedade plural como a nossa.” No que se segue, aventarei que a reclamação de Elísio é exagerada e que não está adequadamente fundamentada. O meu objectivo é abrir ainda o debate.
Diz-nos ele: “A religião não pode proporcionar uma base moral à sociedade porque ela, na sua forma institucional, é inimiga da maior liberdade a que o homem tem direito: a liberdade de pensar por si próprio e assumir responsabilidade pelos seus actos. O exemplo mais claro deste efeito insidioso da religião é o dístico içado em Maputo a instar os crentes a confundir a sua vida pessoal com a ideia que alguns clérigos gostariam de transmitir do Profeta Maomé.”
Antes de mais, gostaria de fazer uma breve referência a um desequilibro na análise de Elísio quanto ao que se vê a seguir à religião. Concordo com Manuel Mangue quando ele nos aponta que do texto de Elísio não só fica a impressão mas torna-se evidente que, para ele, o problema moral é exclusivamente um problema religioso. Assim, ignora os excessos das outras formas de organização humana e a sua contribuição para o problema em questão. Ainda Elísio, com razão, nos aponta opressão, servidão e superstição na história da religião, mas deixa de lado, por exemplo, os esforços (heróicos em alguns casos) de líderes religiosos na mediação de conflitos sérios, incluindo guerras em diferentes partes do mundo, e até em Moçambique, num passado recente.
Não há dúvida (tal como diz Elísio) que se encontra opressão, servidão e até superstição na história da religião. Mas tudo isto não implica necessariamente qualquer incongruência entre a religião e a referida “maior liberdade a que o homem tem direito”. Assim digo pois parece pouco plausível que todos os líderes religiosos, incluindo moçambicanos, nem pensem por si próprios nem assumam responsabilidade pelos seus actos. O mesmo se pode dizer dos outros crentes religiosos. Mas talvez Elísio se refira a alguns dos crentes religiosos. Quer dizer, aqueles que se diz serem manipulados por alguns clérigos. Mas, se aceitarmos esta qualificação, verificaremos que se deve diferenciar a religião como tal dos fins para que alguns clérigos a empregam. Portanto, mesmo que alguns crentes estivessem “privados”, por assim dizer, da sua liberdade de pensar, etc., falar-se-ia de charlatanismo e não necessariamente de religião. Quer dizer, a questão é o abuso de outrem para auferir algum benefício e não a religião como tal. Acrescenta-se ainda que o charlatanismo não se limita à religião, mas propaga-se por outras áreas da nossa vida.
Mesmo assim, quais são os fundamentos que Elísio nos apresenta para a sua reclamação? Encontro três. Primeiro, ele chama a nossa atenção para um dístico que traz os seguintes dizeres: “AMAMOS MAIS O NOSSO PROFETA MUHAMMAD S.A.W. DO QUE A NOSSA PRÓPRIA VIDA.” (Chamemo-lo dístico D1). Era um dos dísticos exibidos nas ruas de Maputo por alguns muçulmanos numa manifestação contra o jornal Savana porque este publicara as controversas caricaturas do Profeta. Segundo, apoia-se também em algumas ideias do iluminismo, especificamente nas ideias do filósofo escocês David Hume e do filósofo alemão Immanuel Kant. (O Iluminismo foi um movimento secular e filosófico que emergiu na Europa nos séculos XVII e XVIII e que, em geral, dava ênfase ao papel da razão relativamente à questão do conhecimento do mundo). Terceiro, Elísio assenta ainda os seus argumentos no que considera serem problemas particulares da religião. Tomemos nessa ordem os seus fundamentos.
Em primeiro lugar, parece-me que não é prudente basear-se na interpretação de um dístico numa manifestação para se pronunciar de modo tão forte contra a religião em geral. Pois tais dizeres não são, normalmente, uma fonte segura para uma análise crítica. Por um lado, um dístico pode ser susceptível a diferentes interpretações e, por outro, diferentes dísticos podem apresentar aspectos diferentes e até contrários de uma questão.
Por exemplo, Elísio lê “neste dístico [D1] uma renúncia preocupante ao dever de raciocinar e um convite à submissão.” Mas, poder-se-ia argumentar que este dístico não representa nem nenhuma renúncia, nem nenhum convite a ninguém. Pelo contrário, dir-se-ia que representa uma afirmação sublinhando a força da dedicação dos muçulmanos ao Profeta. Note-se que ter uma causa pela qual se esteja pronto a dar a vida pode ser nobre, dependendo da causa. No caso presente, havia um outro dístico (chamemos a este dístico D2) com os dizeres seguintes: “PROFETA MUHAMMAD S.A.W. SIMBOLO DA LIBERDADE E HONRA” (Veja Manifestação, por Machado da Graça, http://ideiasdebate.blogspot.com, 25 de Fevereiro de 2006). Portanto, considerando os dois dísticos juntos, pode-se concluir que os muçulmanos têm um compromisso forte para com a liberdade e a honra. Devo salientar desde já que não defendo nem os muçulmanos nem a religião, mas pretendo, sim, dizer apenas que as conclusões de Elísio com base no dístico D1 não estão adequadamente fundamentadas.
Em segundo lugar, não está bem claro em que sentido é que Elísio afirma que se apoia em alguns dos filósofos mais sólidos que o mundo conheceu, referindo-se a David Hume e a Immanuel Kant. Elísio invoca o iluminismo e escreve: “Existe um momento na história da humanidade que é tido por muitos estudiosos como o momento da emancipação do Homem do obscurantismo religioso. (...) Na verdade, o iluminismo significou a vitória da razão sobre a irracionalidade.” Note-se que nem uma nem a outra destas afirmações são incontroversas. Lembremo-nos de que no fundo do debate entre o iluminismo e a religião está a questão do que constitui conhecimento do mundo. Assim, enquanto o iluminismo enfatiza o papel da razão em tudo o que se considera conhecimento verdadeiro do mundo, os fideístas, incluindo os religiosos, defendem a fé relativamente às questões da religião revelada. (Encontra-se o fideísmo, desde os tempos antigos, no Judaísmo, no Cristianismo e no Islão. Esta doutrina filosófica atribui, relativamente ao conhecimento de algumas verdades, maior importância à fé do que à razão). Os religiosos, portanto, não rejeitam a razão como tal, mas sim, limitam o papel dela e, em particular, insistem em que não se pode avaliar a fé e a religião revelada em termos de razão. Talvez esta peculiaridade da fé torne a religião a área mais fértil da nossa vida para os charlatães. Mas isto já é um outro assunto.
Tendo esta diferença em mente, poder-se-ia dizer que a expressão “obscurantismo religioso” não representa nada mais do que uma polémica pretendendo menosprezar a reclamação dos religiosos. O mesmo se poderia dizer da expressão “irracionalidade”. É claro que antepor a fé ou o sentimento à razão é ser não racional, sim, mas isso não equivale necessariamente a ser ou obscurantista ou irracional. Não esqueçamos também o facto de o iluminismo não ser homogéneo, ou seja, ter diferentes tendências de óptica filosófica. Na verdade, quer-me parecer que as afirmações de Elísio representam a posição de uma tendência forte dentro do iluminismo que insiste na primazia da razão com vista ao conhecimento do mundo. Estes são os filósofos racionalistas, onde não se encontram nem Hume nem Kant, pois ambos põem limites firmes ao papel da razão no que diz respeito ao conhecimento do mundo.
Hume é céptico quanto aos racionalistas. Na verdade, ele subordina a razão ao sentimento e argumenta que não se pode justificar as nossas crenças com base na razão. Ele argumenta ainda que mesmo a moralidade é mais uma questão de sentimento do que de razão. É verdade que Hume rejeita as reclamações religiosas. Contudo, isto não é nem por estas estarem contra a razão nem por não estarem baseadas nela, mas sim, porque as reclamações religiosas não são justificadas com base no sentimento.
Por sua vez, Kant também rejeita as reclamações religiosas (tal como diz Elísio). Mas, uma vez mais, isto não é nem por estas estarem contra a razão nem por não estarem baseadas nela. Segundo ele, não se pode fazer reclamações substantivas de conhecimento do mundo independentemente de experiência. Quer dizer, nem tudo pode depender exclusivamente da razão. Para Kant, as formas da nossa compreensão são prescritas pela nossa própria natureza como seres humanos. Isto faz com que haja três coisas de que não podemos ter conhecimento nenhum para além do que é possível através do espaço e do tempo. Mesmo assim, especular sobre elas é inevitável. Kant chama-lhes “Ideias transcendentais” e são Deus, a Imortalidade e a Liberdade. Portanto, pode-se concluir que ele rejeita as reclamações religiosas porque tal conhecimento é simplesmente impossível. Contudo, segundo Kant, as “Ideias transcendentais” só podem dar corpo a uma espécie de fé racional.
Em terceiro lugar, Elísio levanta ainda duas questões. Mas, embora estas questões sejam importantes, a meu ver não ajudam muito a sua tese principal. Diz-nos ele: “O problema de qualquer religião baseada na revelação é a fidelidade da escritura.” Este é, sem dúvida, um problema real. Mas não nos podemos pronunciar definitivamente sobre a fidelidade da escritura pois simplesmente não sabemos da sua fidelidade ou não. Portanto, não é necessariamente o caso de a escritura não ser verdadeira. O máximo que podemos dizer é que tal escritura é susceptível a alterações não autorizadas. Na verdade, podemos até dizer que a religião não é imune ao charlatanismo. Mas tudo isto nada nos diz sobre qualquer comportamento pontual dos crentes no tocante a agir de acordo com a escritura em vez de agirem de acordo com o que certas pessoas dizem ser o espírito da escritura. E isso é assim apesar do facto de tais pessoas serem intérpretes da escritura ou da doutrina. Quer dizer, para se afirmar que os crentes põem em prática ideias erradas ou ideias idiossincráticas de alguns clérigos, precisa-se de mais informações do que as relativas a fidelidade ou não da escritura.
Relativamente à segunda questão, Elísio escreve o seguinte: “O problema que se coloca para estas religiões é de saber qual é o verdadeiro objecto de fé por parte do crente. É o que a sua consciência lhe diz ou o que o sacerdote ou imam dizem?” e assim apresentar uma dicotomia falsa. Se não estou enganado, parece que Elísio entende mal a relação entre fé, consciência e o que o sacerdote diz, pois essa relação não é uma questão de escolha, mas contextual. Por exemplo, o verdadeiro objecto de fé por parte do crente pode ser a esperança de salvação, ou seja, a vida eterna (pelo menos no caso do Cristianismo). Enquanto a consciência, entendida como a faculdade com a qual se fazem escolhas morais, e as palavras do sacerdote são meios pelos quais se espera atingir o objecto da fé.
Para quem acredita em Deus mas não pertence a nenhuma religião organizada, a consciência é o seu principal guia, talvez o seu único guia, para atingir o objecto da sua fé. Mesmo no caso dos crentes, aponte-se que não é necessariamente uma escolha entre o que a consciência lhes diz e o que o sacerdote diz, pois estes imperativos podem coincidir. Mas, mesmo que estes imperativos fossem divergentes e o crente “escolhesse” o que o sacerdote ou a doutrina lhe diz, isso não seria necessariamente uma prova de que o crente nem pensa por si próprio nem assume responsabilidades pelos seus actos, pois poderia ser simplesmente uma escolha por conveniência. (Note-se que nada disto quer dizer que a doutrina não pode influenciar a consciência dos crentes.) Portanto, a afirmação de Elísio de que “em princípio é a consciência que devia orientar o muçulmano, na realidade, contudo, é a obediência à interpretação que certas pessoas fazem do Alcorão” não está também adequadamente fundamentada.
Ademais, gostaria de fazer uma outra breve referência, desta vez ao que me parecer uma ligeira contradição interna no texto de Elísio. Por um lado, diz-nos ele “respeito o direito que cada pessoa tem de acreditar em seja o que for que lhe permitir dar sentido à sua existência.” E concordo com ele uma vez que isso reflecte o verdadeiro espírito de tolerância religiosa. Por outro lado, ele afirma que “a liberdade religiosa só faz sentido (...) se ela é exercida por gente consciente e capaz de assumir responsabilidades pelos seus actos.” Neste caso, contudo, discordo dele pois parece que argumenta a favor de se limitar a liberdade religiosa de uma forma inaceitável. Quer dizer excluir as pessoas inconscientes e incapazes de assumir responsabilidades pelos seus actos. É verdade que a liberdade religiosa não é absoluta. Contudo, os limites de liberdade religiosa deveriam ser negociados apropriadamente em termos de acções das pessoas e não se basearem em personalidades, ou seja, em quem pode ou não pode usufruir de liberdade religiosa. Realce-se que a liberdade religiosa é um direito humano básico e, portanto faz sempre sentido independentemente de quem o exerça. Não obstante o facto de se ter de a exercer dentro da lei e com a devida consideração pelos outros direitos humanos.
Aponte-se que, na área política, o iluminismo que Elísio cita com aprovação argumenta muito fortemente a favor dos direitos humanos básicos, incluindo a tolerância religiosa. Portanto, a tendência de Elísio para restringir a liberdade religiosa não só trai uma tendência contrária ao espírito do “Amor à liberdade” como também é contra os ideais do iluminismo.
Em conclusão, aventei que a reclamação de Elísio de que a religião, na sua forma institucional, é inimiga da liberdade de pensar por si próprio, de assumir responsabilidade pelos seus actos e até ascender à interferência em liberdade individual é exagerada. E assim é pois, primeiro, ele atribui o comportamento indesejável de alguns crentes só à religião em geral e, segundo, a sua observação é mais relacionada com o charlatanismo do que com a religião como tal. Argumentei ainda que os seus fundamentos para a sua reclamação são fracos. Ou seja, que dizeres num dístico numa manifestação não são, em geral, uma fonte segura para uma análise crítica; que as ideias do David Hume e do Immanuel Kant não o servem para justificar, de qualquer modo significativo, a sua reclamação; e que nem a verdade ou não da escritura nem a relação entre a fé, a consciência e o que o sacerdote diz o ajudam a justificar a sua reclamação. Nada disto quer dizer que as questões levantadas por Elísio não sejam importantes, mas apenas que são tão importantes que se precisa de argumentos muito mais sólidos para as fundamentar. Caso contrário, poderão ser rejeitadas como mero preconceito.
Maputo
12/06/06
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