25 de Abril (1)
Embora o 25 de Abril de 1974 seja um acontecimento português, as suas causas próximas estão de tal forma ligadas, directa e indirectamente, às guerras que Portugal desenvolvia em Angola, Guiné e Moçambique, que se pode afirmar que, sem os levantamentos armados nas antigas colónias, provavelmente nunca teria havido um 25 de Abril.
Até onde me apercebo as forças armadas portuguesas eram, até ao inicio das guerras africanas, formadas por oficiais de carreira (o chamado Quadro Permanente), provindos de uma certa aristocracia, com tradições militares, e de uma burguesia conservadora e formados numa Academia Militar onde as entradas eram rigorosamente seleccionadas. Um quadro permanente de sargentos ajudava a enquadrar os soldados que, anualmente, entravam para cumprir o seu serviço militar obrigatório.
Eram forças armadas de pequena dimensão, apropriadas para um país pequeno e sem graves riscos de conflito armado com o único vizinho europeu.
Tudo isto se vai alterar com o início da guerra, em Angola e, depois, na Guiné e em Moçambique, no início da década de 60.
De um momento para o outro Portugal viu-se forçado a aumentar de forma explosiva o número dos integrantes nas suas forças armadas. A área a defender deixou de ser apenas o território europeu e uma presença sem grande significado nas colónias, para passar a ser um território enorme, muitas vezes superior ao do Portugal Europeu.
Isso implicava a mobilização de muitíssimos mais recrutas mas, essencialmente, de muito mais oficiais e sargentos, para enquadrar esses recrutas.
E a Academia Militar não se mostrava capaz de fornecer oficiais em número e qualidade capazes de responder às solicitações. Pelo contrário, com o iniciar das guerras nas colónias o número de candidatos a entrar na Academia foi descendo de forma cada vez mais acelerada. A carreira militar, que era encarada como prestigiante e bem paga, antes das guerras, passou a ser considerada de alto risco e grandes perturbações de vida, depois que ficou claro que as guerras iam durar por tempo indeterminado. Isto levou à queda nas inscrições na Academia e, consequentemente, à baixa progressiva dos critérios de exigência à entrada. A Academia deixou de ser destino de uma elite conservadora e passou a ser a possibilidade de jovens sem grandes possibilidades económicas tirarem um curso superior com equivalência às outras universidades.
Temos aqui já uma primeira alteração importante na situação. Os oficiais do quadro permanente do exército passam a sair de uma camada social substancialmente diferente da que prevalecia anteriormente.
Mas, mesmo assim, as quantidades de oficiais que saiam da Academia e de sargentos que saiam das escolas de sargentos não chegavam para nada. À medida que as guerras prosseguiam os oficiais do quadro permanente iam envelhecendo e sendo promovidos a postos mais altos sem serem substituidos em quantidade e qualidade suficientes aos niveis mais baixos, os níveis que entravam directamente em combate, isto é os alferes, tenentes e capitães.
Esta situação obrigou à fabricação acelerada de oficiais a partir dos civis que eram chamados a cumprir o serviço militar. Primeiro para preencher as vagas ao nível de alferes. E são os estudantes universitários que vão servir para este objectivo. Incorporados em números cada vez maiores, passam por um Curso de Oficiais Milicianos acelerado e são mandados comandar pelotões combatentes para as colónias.
E aqui assistimos a outro ponto da maior importância. As universidades portuguesas, durante toda a década de 60 e princípios da de 70 foram-se tornando cada vez mais em centros de politização radical contra o regime. A agitação política era permanente e os confrontos frequentes e, muitas vezes, violentos. E são os estudantes saídos destas universidades que vão ser chamados a dirigir tropas nos teatros de guerra. Estudantes cada vez em maior número mais identificados com as aspirações dos movimentos de libertação das colónias do que com o seu governo. Eram, portanto, oficiais desmotivados e mal preparados tecnicamente que eram enviados para a guerra.
E, com o decorrer dos anos, a situação vai-se agravando cada vez mais. A partir de certa altura não são já apenas os alferes que fazem falta. Passam a ser os tenentes e, mais tarde, os capitães. A isso voltaremos mais adiante.
Entretanto, a vida dos oficiais e sargentos do quadro permanente entra num caos total. A vida de um oficial típico pode ser descrita pelo seguinte exemplo esquemático:
- Jovem oficial, recém casado, vive em Leiria.
- Começa a guerra e é mobilizado para Angola. Enquanto está em Angola nasce o
primeiro filho. Passa dois anos em Angola.
- Volta a Portugal e, apesar dos protestos, é colocado em Bragança onde a família vai ter e onde fica mais dois anos. Compra e começa a pagar uma casa.
- É mobilizado para a Guiné. Deixa a família e vai para a guerra. Ao fim de um ano consegue ser transferido para Bissau e a família vai ter com ele. Passa mais um ano em Bissau.
- Volta a Portugal e é colocado em Faro. Protesta, por causa da casa que está a pagar em Bragança, mas não adianta nada. Vai para Faro onde, ao fim de um ano, o filho começa a ir à escola.
- É mobilizado para Moçambique. Ao fim de algum tempo a mulher vai ter com ele e o filho fica com familiares para não perder as aulas.
- Ao fim de dois anos em Moçambique volta a Portugal e é colocado em Santarém. Tem que transferir o filho, arranjar outra casa, etc…
E este esquema vai-se repetindo ano após ano, desgastando completamente a estabilidade de vida desses homens que, em África, enfrentam uma guerra e, em Portugal, não conseguem ter paz.
Homens que, cada vez mais, são levados a conviver, nos quartéis, com os seus camaradas milicianos, politizados e espalhando uma politização anti-guerra.
A gota de água que fez transbordar o copo foi um diploma legal que, face à necessidade de um maior número de capitães, permitia que milicianos que já tinham feito a guerra fossem, de novo, incorporados e reenviados para a guerra como capitães. Enquanto os oficiais do quadro permanente tinham que cumprir prazos e condições para a sua promoção, esses milicianos acabavam por os ultrapassar na subida hierárquica e, pior ainda, poderem transitar para o quadro permanente.
É este diploma legal o detonador do chamado Movimento dos Capitães, que viria a estar na origem do 25 de Abril.
Ao longo do processo o Movimento vai-se politizando cada vez mais, mas, na sua origem, está a guerra e tudo quanto ela significou para as forças armadas profissionais portuguesas.
Há quem afirme que os movimentos de libertação africanos venceram a guerra. Há quem negue isso, com base na situação real nas frentes de combate em 1974, desigual se pensarmos nas posições relativas na Guiné, em Moçambique e em Angola.
Eu penso que venceram a guerra, sim, mas mais nas cabeças e nos corações dos militares portugueses. E, para isso, os progressistas portugueses foram aliados fundamentais.
Mas, volto a dizer, sem as guerras nas colónias a sobrevivência do regime português seria muito mais prolongada. A democracia não teria chegado quando chegou nem, muito provavelmente, da forma e com a dimensão que chegou.
No fundo acabámos todos por ganhar com o 25 de Abril: Portugal ganhou a paz e a democracia e as colónias ganharam um caminho mais rápido e menos traumatizante para a Independência.
O que, depois, cada um fez do seu respectivo país, já é outra história.
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