Ideias para Debate

Wednesday, March 08, 2006

Macamo x Cahen

Na caixa de comentários do post Ideias Perigosas e Soberania, esboçou-se um debate entre o Elisio Macamo e o Michel Cahen.
O E. Macamo volta ao assunto mais desenvolvidamente:


CONTRA A INSINUAÇÃO COMO MÉTODO

Elísio Macamo

Introdução

Há sensivelmente dez anos, tive uma discussão com Michel Cahen. Eu criticava-o por abordar as questões moçambicanas de forma bastante normativa que não ajudava a perceber a história do país. Não nos entendemos. Eu reagia a muitos escritos dele em que reinterpretava a história política moçambicana das últimas décadas como uma espécie de degeneração. Ele recusava às pessoas que fizeram a luta armada de libertação nacional qualquer tipo de enraizamento social e cultural em Moçambique, rejeitava a genuidade do seu Marxismo e reduzia os esforços de construção de uma nação a uma economia política de um poder crioulo. Nessa discussão defendi a ideia de que não me parecia do âmbito de uma discussão científica procurar saber se o Marxismo da Frelimo era genuino ou não, e que esse tipo de questionamento só remetia à uma discussão política dificilmente susceptível de ser resolvida. Considerei essa posição normativa e, por isso, problemática. Noto com algum arrepio, na reacção de Michel Cahen à minha referência negativa ao seu livro no artigo “liberdades perigosas e soberania”, que ele mantém esta atitude normativa, sobretudo, quando procura entender a minha posição em termos do meu próprio alinhamento político.

Volvidos dez anos estamos na mesma. Um amigo comum ofereceu-me o seu livro “Os Outros – Um historiador em Moçambique, 1994, P. Schlettwein Publishing, Basileia, 2004”. Escrevi no artigo que desisti da leitura por considerar o livro medíocre para a estatura intelectual de Michel Cahen. Dada também a situação política de Moçambique considero o livro simplesmente irresponsável, embora não queira com isso limitar a liberdade que todos temos de emitir opiniões sobre seja o que for. Acho, contudo, que sobre nós académicos repousa uma grande responsabilidade no que diz respeito à coerência do que dizemos em público. Michel Cahen adverte no livro que se trata apenas de observações que ele fez durante a campanha eleitoral de 1994 junto do líder da Renamo. Pessoalmente, não me oponho a este tipo de procedimento desde o momento que essas impressões sejam apresentadas como tal, e não como se fossem resultados finais de uma investigação acabada. De resto, não há nenhum tipo de livro em que podemos suspender a obrigação de apresentar argumentos lógicos e consistentes. Aceito que jornalistas publiquem livros sobre a África e documentem neles o que não perceberam como se, de facto, estivessem na posse do conhecimento final. Não acho sensato que um académico faça o mesmo. E Michel Cahen fá-lo neste livro.

Inicialmente, queria ler o livro e depois escrever uma recensão crítica na revista que o próprio Michel Cahen dirige (Lusotopie), mas, conforme já indiquei, abandonei a ideia porque desisti da leitura. Tenho profunda admiração pelos que conseguiram ler até ao fim e encontraram o que elogiar, embora para seguir a lógica do próprio Michel Cahen nem um comentário positivo devesse ser feito já que se trata apenas de observações de campo. Fiz a referência que fiz no artigo em questão na expectativa de que o Michel Cahen reagisse e tornasse uma discussão possível fora de um fórum científico como a Lusotopie, onde o tipo de livro que ele escreveu não merece ser discutido. É essa discussão que eu gostaria agora de iniciar com os comentários que faço mais abaixo. Aproveito desde já para apelar aos leitores que não se limitem apenas ao que eu disser, mas que procurem eles próprios formar a sua opinião a partir da leitura do livro se conseguirem, é claro, chegar ao fim.

Três questões

Há vários aspectos problemáticos no livro que vou agrupar em torno de três questões, nomeadamente a interpretação da História de Moçambique, a interpretação da guerra da Renamo e, finalmente, a metodologia. Depois de apresentar as minhas inquietações em relação a estas questões vou também comentar brevemente alguns efeitos nefastos deste tipo de procedimento. Antes de entrar no assunto propriamente dito gostaria ainda de comentar algo que Michel Cahen repete com muita insistência.

Cahen diz que foi o único estrangeiro e académico que teve a coragem de acompanhar de perto a campanha eleitoral do candidato da Renamo. Tem garantido o meu respeito. No mesmo fôlego, contudo, atribui a essa coragem um peso argumentativo muito grande ao sugerir que os outros não o fizeram porque aceitam incondicionalmente a propaganda oficial da Frelimo e não querem por nada deste mundo abandonar o conforto desses preconceitos. A dado passo (na página 6) Cahen fala, inclusivamente, de “análises francesas que romperam com o paradigma do banditismo armado” que teriam, supostamente, uma abordagem completamente diferente (e, presumivelmente, mais equilibrada) das coisas. O facto de um funcionário das Nações Unidas ser desta opinião parece conferir estatuto especial a essa ideia, como se funcionários desta instituição fossem autoridade intelectual em seja o que fosse. Uns são, outros não, e o funcionário referido por Michel Cahen decididamente não é. É mais um que, graças aos problemas moçambicanos, apareceu no nosso país com o direito de setenciar as nossas coisas a coberto da instituição para a qual trabalha.

Acho esta insistência infeliz porque qualquer académico é livre de investigar seja o que for que lhe apetecer e, em princípio, nenhum de nós tem o direito de interpretar essas preferências de forma conspiratória como Michel Cahen o faz. O interesse por entender a Renamo de dentro é legítimo e suficiente para justificar o empreendimento do nosso historiador. Não há, portanto, nenhuma necessidade de fazer insinuações infundadas a respeito das opções dos outros. Em relação ao silêncio dos académicos moçambicanos é preciso também ter em conta o contexto político e material dentro do qual eles até então trabalharam. Para investigar é preciso dinheiro e um espaço intelectual propício que até pelo menos às primeiras eleições gerais não existia da forma como existe hoje. Carlos Serra entregou-se a este trabalho mais tarde quando as condições financeiras e políticas melhoraram.

Sobre as “análises francesas” ocorre-me apenas dizer que se trata, no fundo, de apenas duas pessoas, o próprio Michel Cahen e o malogrado Christian Geffray. Este último, cujo livro “a causa das armas” foi escrito na base de uma investigação encomendada pela Frelimo, não faz, em nenhum momento nesse livro (li-o repetidamente até ao fim na sua versão original) nada parecido com as ilações empiricamente infundadas tiradas por Michel Cahen. Suponho que isso se deva ao facto de Geffray ter realmente feito pesquisa com base em metodologia clara e coerente, mesmo se, pessoalmente, tenha reticências em relação aos instrumentos metodológicos por ele empregues. Apresso-me a dizer que se por “ruptura com o paradigma do banditismo armado” Michel Cahen quer dizer que as “análises francesas” deixaram de supor que a Renamo não agisse politicamente, não encontro no livro de Geffray nenhum argumento que sustente isso. Geffray caracteriza a Renamo como um “corpo social”, um conceito que segundo ele próprio recupera de Claude Meillassoux, mas reconhece na acção de alguns grupos populacionais um pano de fundo político que a Frelimo ignorou. Ao contrário de Cahen, Geffray não me parece fazer nenhuma confusão entre “base social” da Renamo e contexto da violência. De resto, quando analiso a fundo o que o próprio Michel Cahen escreve a respeito do conflito moçambicano não vejo nenhuma ruptura com o tal paradigma. Vejo a indicação de problemas que precisam de ser tomados em consideração, algo que muitos outros académicos (Joseph Hanlon, Otto Roesch, mesmo John Saul!) fizeram. A única ruptura é em termos de alinhamento político, opção que de nenhuma maneira vou negar a seja quem for. Mas de ciência isso não tem muito.

Aproveito, já agora, para fazer um breve comentário à nota da tradutora que aparece na página xi. Com todo o respeito que nutro por ela (Fátima Mendonça), não consigo perceber a que propósito ela pode considerar a tradução deste livro como um tributo ao poeta José Craveirinha. Penso que o desafio intelectual de traduzir uma obra não precisa de mais nenhuma justificação senão mesmo essa. Agora, dizer que “... teria de haver uma explicação racional, para a adesão, de uma boa parte de moçambicanos, a uma guerra tão absurda e desumana, como a que se travou no país, durante esse período” (p.xi) parece-me o cúmulo do alheamento em relação ao que estava a acontecer no país quando aconteceu. A guerra em Moçambique nunca foi “absurda”, nunca ninguém disse isso, nem mesmo o poder; foi desumana, mas todas as guerras são. A guerra foi racional. As explicações, incluindo as que o Michel Cahen proporciona no seu livro, é que continuam a ser absurdas!

Reescrever a história

A primeira questão que transparece logo no livro em discussão é um velho assunto do próprio Michel Cahen, nomeadamente a necessidade de reescrever a história recente de Moçambique. Para esse efeito, ele faz uma oposição entre elites e população e procura identificar uma lógica de acção dos primeiros que faz dos últimos vítimas inocentes de uma vontade de poder quase maquiavélica. Ele vai até ao ponto de aceitar sem reticências aparentes o questionamento, por alguns dos seus interlocutores, dos mitos fundadores da Frelimo. Assim, quando membros do Núcleo Negrófilo de Manica e Sofala consideram a “revolta de 1953” como a causa primeira da luta armada Michel Cahen acrescenta apenas que se tratou de um “protonacionalismo precoce” (não sei em referência a que nação uma vez que o próprio Michel Cahen rejeita a noção de “nação” para Moçambique...) e aceita os termos de reflexão usados pelos seus interlocutores (regionalismo, raça, etnicidade) sem nenhuma preocupação aparente de os integrar numa discussão mais distanciada. A única conclusão analítica e empírica que Michel Cahen tira disso é que há a necessidade de olhar para a história local para se perceber a guerra civil (p.xxv). Sim e não. Sim porque é óbvio que as dinâmicas locais determinam o curso dos acontecimentos e posicionamentos locais; não porque o recurso a eventos passados para legitimar posicionamentos actuais não estabelece necessariamente uma relação de causalidade. É verdade que a tendência natural de um historiador é de encontrar no passado a explicação do presente, sobretudo um historiador normativamente motivado. Mas é insuficiente.

Há nos trabalhos de Michel Cahen sobre Moçambique, e isso transparece nitidamente nas primeiras páginas deste livro, uma dificuldade real em fazer a análise científica sem o impulso de atribuição de culpas pelo que sucede. Ele transforma a historiografia num acto de responsabilização de actores. “J’accuse!”. É assim que tudo quanto correu mal no País se explica pelo protagonismo negativo das elites do sul em conluio com mestiços marxistas (o mesmo topos usado pelo biógrafo de Uria Simango). Esta forma de fazer história é tanto mais estranha quanto a vantagem que as ciências históricas levam sobre as outras disciplinas em ciências sociais consiste justamente na oportunidade que elas nos proporcionam de identificarmos processos mais abrangentes como a construção da nação em contexto colonial e pós-colonial, a formação de Estado em contexto pós-colonial, entre outros grandes assuntos.

Com a preocupação de atribuição de culpas o historiador Michel Cahen priva-nos dessa perspectiva e sugere, sorrateiramente, que os homens políticos da actualidade devem, a todo o custo, fazer o que é “certo”. Ele propõe uma história quase teleológica, o que, de resto, não é de estranhar em alguém que identifica a sua actividade científica com o cumprimento de ideais políticos (socialistas). As páginas do livro que eu li estão repletas de insinuações a este respeito, algo que quando muitas vezes repetido começa a ganhar o estatuto de verdade. Tudo o que correu mal (a ineficiência natural de um Estado fraco em formação) é visto pelo nosso historiador como propositado, como parte de uma agenda política clara e coerente do projecto modernizante da Frelimo. A Frelimo precisava mesmo de ter sido muito poderosa para poder ter feito as coisas de que é acusada por muitos observadores que olham apenas para a superfície.

Na página xv, por exemplo, quando explica a lógica do seu projecto de “investigação” revela os seus preconceitos em relação à história política de Moçambique. Simplifica a história partindo do pressuposto segundo o qual teria havido “corpos sociais” marginalizados desde a época colonial que, sob o novo regime, se tinham tornado ainda mais marginais em detrimento de grupos que durante a era colonial já estavam próximos do poder; não sei a que grupos isto se refere, muito menos como um cientista social pode fazer uma afirmação tão pouco diferenciada como esta num espaço difícil de delinear. Escreve que o paradigma autoritário de modernização produziu uma linguagem incompreensível (abaixo o feudalismo!, abaixo o tribalismo!); não sei que matéria tem para dizer isto, pois a única base de sustentação para esta pressuposição é o preconceito em relação às capacidades intelectuais das pessoas; é também a ideia de que a compreensão de um discurso passa pela capacidade de discutir ao nível filosófico certos conceitos; é também a ideia de que as pessoas eram hostis à modernização; o que eu sei daquela época, muito embora fosse muito novo, é que o discurso e projecto da Frelimo foram recebidos por muita gente com muito entusiasmo, que ele correspondia aos anseios de muita gente e que, tal como o Centro de Estudos Africanos muito bem observou na magnífica obra “O mineiro moçambicano”, os desaires sofridos pela Frelimo resultaram justamente da sua incapacidade em responder ao impulso de modernização presente na sociedade. Eu sou neto de régulo e nunca tive os problemas que o Michel Cahen acha que devemos todos ter tido com o projecto modernizante da Frelimo. Continua o nosso historiador escrevendo que o poder reprimiu as religiões e ritos animistas, proibiu a expressão de etnicidades locais, humilhou chefias tradicionais e foi visto pela população (“rapidamente” como ele escreve) como sendo de essência estrangeira “... quando não trazia qualquer progresso social” (p.xv). De que população está a falar? Que “essência estrangeira”? Isto não é projecto de pesquisa. Isto é um manifesto político baseado em afirmações tão gerais que dificilmente podem ser falsificadas. Foi justamente neste ponto que comecei a ter sérias dificuldades em continuar a ler.

Não quero com isto negar a relevância das inquietações que este programa de pesquisa levanta. Quero apenas dizer que para ser objectivo tinha que identificar problemáticas. Que problemáticas são identificadas aqui? Nenhuma, apenas uma lista de afirmações banais que qualquer pessoa faz, incluíndo mesmo membros da Frelimo, sobre o que se passou nos últimos anos. Faz mesmo sentido falar de repressão da religião em Moçambique? Duvido. Faz mesmo sentido falar de proibição de etnicidades locais? Duvido. O que são “etnicidades locais”? O que significa proibi-las? Quem faz essa proibição? Faz mesmo sentido falar de humilhação de chefias tradicionais? Duvido. Faz mesmo sentido falar de essência estrangeira do projecto da Frelimo? Duvido. Faz mesmo sentido falar de falta de progresso social? Duvido. Qual é a problemática aqui? Não vejo nenhuma, apenas a manifestação de preconceitos acerca de processos históricos e sociais que o Michel Cahen tem dificuldades em enquadrar teoricamente.

A guerra

A segunda questão refere-se à natureza do conflito armado em Moçambique. Michel Cahen faz uma observação que me parece pertinente e plausível. Ele constata que a guerra “... [se] transformou numa guerra para o controlo das ‘duas populações’ – a do Estado e a da autarcia” (p.xvii). Já Christian Geffray tinha feito esta sugestão. O grande problema aqui, contudo, é que Michel Cahen parece partir do princípio de que isto foi verdade para todo o país e, sobretudo, para todo o período de guerra. Ora, esta suposição é problemática e está no cerne da fragilidade da forma como ele tenta perceber a violência em Moçambique. Ao partir desta observação não diferenciada acaba por dar à acção da Renamo e de todos quantos se sentiram lesados pela forma de actuação da Frelimo uma coerência que só está nas suposições de Michel Cahen. Ele “inventa”, efectivamente, uma história, a história dos “Outros”, cuja coerência e plausibilidade é essencialmente função de constatações não diferenciadas.

Tal como muitos outros académicos, fiquei surpreendido com o bom desempenho da Renamo nas eleições de 1994. Ao contrário de muitos, contudo, isso não me levou a me interrogar se me tinha enganado em relação à Frelimo ou à Renamo, mas sim a questionar os meus próprios pressupostos em relação ao que eu considero relevante para a acção individual. O bom desempenho da Renamo não sugere, em primeira linha, a questão de saber se ela tinha base social ou não, mas sim o que leva as pessoas a escolher este ou aquele partido quando vão votar. Esta questão continua ainda sem resposta, sendo que Carlos Serra me parece, até aqui, o único investigador que tentou encontrar uma resposta. Perguntar se havia base social ou não sugere já a resposta, é circular e redundante ao mesmo tempo.

Que eu saiba em Moçambique sempre se reclamou acerca da política da Frelimo. Os depoimentos que Michel Cahen recolheu em que várias pessoas fazem relatos de vida pontuados por “injustiças” da Frelimo são característicos de toda a gente em Moçambique, incluindo muitos que são militantes ferrenhos da Frelimo. O meu sonho era estudar medicina. Não o fiz porque o Ministério da Educação mandou-me fazer línguas. Sofri todas as vicissitudes de viver num país onde o poder procura ser totalitário, vivi a arbitrariedade desse poder e embora nunca tenha votado em eleições, se o tivesse feito não era pela Renamo. A questão, portanto, não é tanto de saber se a política da Frelimo alienou as pessoas, mas sim porque certas pessoas preferiram a oposição activa à Frelimo? Porque certas pessoas decidiram votar contra a Frelimo ou na Renamo? A resposta não é, como parece sugerir Michel Cahen, que a Frelimo meteu as pessoas nos campos de reeducação, obrigou as pessoas a viver em aldeias comunais, reprimiu a sua religião e cultura, não trouxe progresso social, etc. A resposta não pode ser essa porque muitas outras pessoas que passaram pelo mesmo votaram na Frelimo. A não ser que Michel Cahen, ao bom estilo marxista, queira acusar as pessoas de “falsa consciência”. A resposta tem que estar nos nossos instrumentos de análise, nas nossas abordagens teóricas, no nosso entendimento do que é fazer ciência. Estas coisas marcam ausência gritante nas páginas que li e uma vez que as principais observações teóricas são aqui feitas não vejo nenhuma razão para supor que a coisa melhore mais adiante. Isto é decepcionante, independentemente de o livro conter observações de campo ou não.

Métodos

A terceira questão é metodológica. Vou-me cingir apenas a algumas observações. Michel Cahen explica como recolhe material. Ele escreve que quase nunca grava as entrevistas, aponta com a maior fidelidade possível o que os seus interlocutores dizem e vai colocando perguntas pertinentes. Cada qual com o seu método. Em princípio não vejo nenhum problema de maior com a opção por este procedimento, embora me preocupe um pouco constatar que Michel Cahen não parece estar consciente dos problemas a ele ligados. As entrevistas que ele reproduz no livro (isto é, nas páginas que li) apresentam problemas metodológicos muito sérios. O principal problema é a forma como são reproduzidas. Nunca está claro se se trata de uma reprodução do que o entrevistado disse, ou se há comentários do entrevistador no meio. Acresce-se a isto o facto de o Michel Cahen não ter incluido as perguntas que colocou – o que é legítimo – mas ao mesmo tempo preocupante, pois dada a normatividade do nosso historiador é de supor que essas perguntas tenham grandemente influenciado a coerência narrativa do que é reproduzido. Pude constatar isso na pergunta sobre o facto de a capital estar no sul, pergunta cujo valor analítico não é aparente, mas acaba sendo estruturante. Em suma, acho que Michel Cahen fez entrevistas normativas em que deu aos seus entrevistandos a oportunidade de contarem a história que ele próprio queria ouvir. De metodologia científica este procedimento tem muito pouco, com todo o respeito pelo Michel Cahen.

Os problemas continuam com as suas notas de rodapé. Estas deviam servir para esclarecer questões factuais e não influenciar a opinião do leitor com opiniões valorativas. Nota 13 (cap. 1, p.3): “Antigo representante em Rabat da Udenamo (...), posteriormente dirigente da Frelimo, um dos raros dirigentes nacionalistas ‘marxistas’ desde o início”. Alguém fica iluminado com esta nota sobre Marcelino dos Santos? Nota 17 (cap. 1, P.3): “Gazenses são, formalmente, os habitantes da região de Gaza e Machungos faz referência a uma importante família. De facto trata-se de clãs próximos do poder. A Renamo denunciou sempre a reconstituição, pela Frelimo, do ‘Império de Gaza’ do início do século”. Alguém fica elucidado sobre regiões, grupos, famílias e história de Moçambique com esta nota? Pode ser que esteja a ser ingénuo, mas não creio que seja realmente possível falar de “clãs próximos do poder” em Moçambique. Há famílias importantes como em qualquer país, mas em Moçambique e muito particularmente na Frelimo, é difícil falar nestes termos. Curiosamente, existem certos grupos religiosos próximos do poder, a saber a Igreja Presbiteriana de Moçambique. Repressão da religião... Os únicos Machungos públicos que conheço são dois: o antigo primeiro ministro e a sua irmã economista, se não estou em erro. Nota 22 (cap. 1, p.4): “Maputo, ficando situado no extremo sul do país, faz muitas vezes figura de anexo sul-africano”. ???? Nota 3 (cap.2, p.6): “Avião militar russo de idade respeitável”. Idem a estupefação. Nota 6 (p.8): “Zanu (...), principal movimento nacionalista do Zimbabwe, hoje no poder, e que a Frelimo ajudou não somente contra os rodesianos, mas também contra a concorrência da Zapu (...) muito ligada à URSS”. Mais uma vez, qual é a utilidade disto? Nota 16 (p.10): “Departamento de prevenção e combate às calamidades naturais: os serviços de luta contra as calamidades naturais, criado aqui à escala provincial, foi criado inicialmente para fazer face aos efeitos das fomes provocadas por secas ou cheias catastróficas. Posteriormente serviu para encaminhar ajudas às vítimas da guerra nas zonas do governo. Dispondo de uma parte da ajuda internacional, foi largamente utilizado para concentrar as populações nas zonas controladas pelo governo. A sua gestão foi manchada por graves problemas de desvios e de corrupção”. Isto é jornalismo puro. Até “catastróficas” é informação útil à compreensão do depoimento. A partir daí é tentativa de ganhar o leitor à opinião contida no depoimento; As regras mínimas de trabalho científico teriam aconselhado, pelo menos, que Michel Cahen escrevesse “suspeita-se que...”, caso contrário devia fundamentar o que escreve mais adiante. Como não acho que seja por desonestidade que Michel Cahen procede desta forma, vejo-me forçado a concluir que é por desrespeito total das regras do trabalho científico. É mediocridade.

Há ainda outros problemas metodológicos que mereceriam maior atenção, mas o comentário já vai longo e não tenho a certeza se o Machado da Graça vai querer reproduzir tudo. Considero profundamente infeliz que Michel Cahen procure, no seu texto, justificar de forma sorrateira, os excessos da Renamo ao mesmo tempo que amplia os excessos da Frelimo. Conclui que o “rapto” é um “facto social”. O que isto quer dizer? Facto social na acepção do seu conterrâneo Durkheim? Facto social no sentido de algo que acontece? Facto social no sentido de algo normal? Bom, por acaso até escreve “O rapto em tempo de guerra é visto, pelos interessados, como um acto absolutamente normal”. O que isto quer dizer mesmo? Normal em relação a quê, quem e em que altura? As pessoas que eu entrevistei em Gaza no âmbito de um trabalho sobre crises e catástrofes nunca viram o rapto como acto absolutamente normal. Viram-no como uma agressão, humilhação e absolutamente perturbante. O trabalho científico diferencia, limita o alcance das observações, é comedido. Escreve que aconselhou o líder da Renamo a dizer na América que o uso de crianças em conflitos armados é normal em África. Sem comentários!

Não sou masoquista

É por estas e várias outras razões que desisti da leitura. Se uma obra se apresenta abertamente como ficção, não tenho problemas em ler até ao fim. É divertido. Mas se ela pretende ser uma contribuição para o nosso conhecimento, então tem que ser mais séria. Este livro do Michel Cahen, pessoa cujo trabalho e empenho respeito bastante, não é sério. Não quero de modo nenhum privar ninguém de o ler, encorajo todo o mundo a fazê-lo e a tirar as suas conclusões. O que me preocupa não é apenas o facto de que o trabalho é fraco. É o facto de que pessoas como Michel Cahen, em virtude de disporem de meios materiais disponibilizados pelos seus países, estão em condições de proporcionar a vários jovens moçambicanos a possibilidade de formação superior. Acho isto bom, mas preocupante porque receio muito pela qualidade desta formação. É interessante notar que muitos dos trabalhos que estão a ser escritos na França, sobretudo em Bordéus – e por estudantes de grande qualidade, diga-se de passagem – são sobre “autoridades tradicionais”. Isto corresponde à preocupação normativa de definir Moçambique de forma essencial como o tradicional e “vernáculo”, e, pior do que isso, esses trabalhos servem apenas para criar uma situação incestuosa: Michel Cahen vai se referir a esses trabalhos e esses trabalhos vão-se referir a Michel Cahen. Fim da citação, verdade confirmada. É vergonhoso.

Quando fiz referência ao livro no artigo “liberdades perigosas e soberania” queria dizer à esfera pública moçambicana que devemos ter a coragem de olhar para a nossa história nos olhos. Devemos ter a coragem de abordar tudo quanto aconteceu de maneira a melhor perspectivar o futuro. Este é um sentimento que já havia exprimido quando escrevi a recensão crítica à biografia de Simango. No meu penúltimo parágrafo escrevi “[A]pesar de todos os problemas aqui apontados o livro de Barnabé Ncomo torna embaraçosamente claro que, muito provavelmente, fomos libertados por canalhas. Nem que só 1 por cento do que vem lá escrito seja verdade. Moçambique, como nação, só se pode reencontrar na sua história. Isso implica que devemos todos trabalhar no sentido de produzir uma versão da história com a qual todos estejamos confortáveis. Sobre os protagonistas principais ainda em vida recai, por isso, uma grande responsabilidade patriótica. Se gostam de Moçambique tanto quanto o seu próprio sacrifício pela sua libertação indica, eles verão de certeza a necessidade imperiosa de esclarecer os cantos obscuros da nossa história. Caso contrário, ficamos reféns da nossa própria história”. O livro de Michel Cahen torna esta necessidade cada vez mais premente. Insinuação não é método e a plausibilidade não se avalia a partir da ousadia. Nós os académicos moçambicanos temos que finalmente nos impormos na definição científica do que são os nossos problemas. Não devemos continuar a deixar isso aos outros sob pena da trivialização dos nossos assuntos.

4 Comments:

  • Caro JPT,
    Obrigado pelos comentários profundos. Estou ainda à espera da reacção do Michel Cahen, mas aproveito para responder à interpelação:
    1. Não gostaria de discutir Geffray aqui, podemos fazer isso noutro espaço. Essencialmente, o meu problema é com a estrutura linhageira como unidade de análise. Isso não só estrutura a análise como dá a coerência do próprio investigador ao que as pessoas dizem.
    2. A questão da postura ética é mesmo jogo de palavras da sua parte. A minha posição é a que é defendida por Weber. A escolha do tema pode ser determinada pela nossa postura ética, mas ao fazermos a análise devemos evitar a interferência normativa. Muitos dos problemas metodológicos que constato no livro em questão resultam da dificuldade de abandonar essa postura ética no momento da análise. No fundo, é uma questão de argumentar bem ou mal.
    3. Sobre os "erros da Frelimo": Longe de mim negar o que aconteceu em Moçambique! Como cientista social, contudo, tenho que ir para além da repetição de lugares comuns. Penso que uma análise séria da "perseguição à religião" iria produzir uma realidade bem diferenciada. Iria mostrar quem fez isso, quando, porquê, com que interesse, que papel a própria religião desempenhou nisso, com que fim, etc. Penso que já é altura de sermos mais diferenciados nas nossas abordagens. Foi por essa razão que coloquei essas reticências todas.
    4. Na questão do "saber local, autóctone" não me expus bem, a julgar pela sua reacção. Não quero reclamar uma posição privilegiada para os moçambicanos. A minha observação tem a ver com a exortação que faço à nossa esfera pública para, finalmente, começar a debater a história. Dentro desse contexto, os académicos moçambicanos têm que se colocar à frente e abandonar de uma vez por todas esta situação de estarmos sempre a reagir ao que os outros dizem. Não me perdoo o facto de ter tomado conhecimento deste livro apenas há algumas semanas. É disso que estou a falar. Quanto a tudo o resto, não vai ser a proveniência que vai abalizar a qualidade, mas sim os critérios científicos.
    Um abraço

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:41 AM  

  • By Blogger Unknown, at 8:48 PM  

  • By Blogger jeje, at 7:42 PM  

  • By Blogger Unknown, at 7:22 PM  

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