Ideias para Debate

Tuesday, March 07, 2006

Religião e Liberdade

O Elísio Macamo publicou, há uma semana, no Notícias, o seguinte texto:


Amor à liberdade

Por E. Macamo

Alguém surpreendeu uma vez dois peixinhos numa conversa dentro de um aquário. A conversa já ia muito adiantada, mas deu para ouvir um dos peixes a gritar, exaltado: Se Deus não existe, então quem é que muda a água? Se isto fosse SMS escrevia “(risos)” e continuava para o assunto que realmente me interessa. Na verdade, agora que a poeira parece se estar a pôr sobre a confusão causada pela publicação das caricaturas, talvez fosse bom aproveitar o momento para continuar a reflectir sobre o que significa a vida em sociedade. Não há maneira de nos furtarmos a este debate se de facto estamos comprometidos com Moçambique.

No sábado, mais de duas mil pessoas que professam a religião islâmica marcharam por algumas das ruas de Maputo. Outras estimativas dão conta de números mais elevados. Machado da Graça esteve lá e tirou fotografias. Numa das fotos pode se ver um dístico bastante interessante. Traz os seguintes dizeres: AMAMOS MAIS O NOSSO PROFETA MUHAMMAD S.A.W. DO QUE A NOSSA PRÓPRIA VIDA. Duvido que isto reflicta o verdadeiro sentimento de cada uma das mais de duas mil pessoas que lá estiveram. Mas por uma questão de iniciar o debate – e espero que aqueles que entre os religiosos gostam de pensar estejam dispostos a discutir comigo – vou supor que assim seja. Esta suposição permite-me, desde já, soar sinais de alarme sobre o que a religião significa para algumas pessoas.

Talvez ajude a clarificar as posições se eu disser, agora mesmo, que sou ateu. Isto é, não acredito na existência de nada parecido com Deus, mas respeito o direito que cada pessoa tem de acreditar em seja o que for que lhe permitir dar sentido à sua existência. Este respeito não me obriga, porém, a evitar o diálogo com os que crêem. Na verdade, sendo Moçambique um País plural em termos de crenças, parece-me também um dever cívico interpelar os religiosos, sobretudo quando as suas crenças me parecem comprometer as possibilidades de uma convivência sã entre nós. O respeito e a tolerância não excluem uma atitude crítica. Os dizeres reproduzidos mais acima são passíveis de interpretações que não deixam dormir descansado nenhum moçambicano verdadeiramente comprometido com o processo de criação de uma nacionalidade includente. Essa nacionalidade só é possível com pessoas preparadas a exercer o seu direito de cidadania, cuja expressão mais alta é a razão.

Leio neste dístico uma renúncia preocupante ao dever de raciocinar e um convite à submissão. Pelo que tenho lido, o Islão significa etimologicamente “submissão”. Não é diferente da “obediência” que o Vaticano espera dos seus fiéis. Este sentido de “submissão” é pegado inúmeras vezes por gente no Ocidente para acusar o Islão de promover apenas o instinto de multidão. É a partir desse instinto de multidão que muitos jovens, por exemplo, sucumbem à sedução da violência como meio de demonstrar a sua fé. MAIS QUE A PRÓPRIA VIDA. Não obstante, o Islão não é apenas a submissão à vontade de Alá. Na verdade, essa vontade pode se definir como a procura do sentido do ideal. Isto é, há no fundo desta religião um sentido profundamente ético que torna necessária a discussão deste dístico desconcertante. Islão e muçulmano são palavras que no seu árabe original estão relacionadas com a palavra paz. É talvez neste sentido até que o princípio de “Jihad” – muitas vezes mal interpretado, inclusivamente por alguns clérigos, como o uso indiscriminado de violência em nome da religião – ganha muita relevância para qualquer crente.

Jihad, na verdade, seria esta luta pessoal, interna e profundamente emocional com o fim de alcançar esse objectivo nobre que é a paz. Se não estiver a interpretar mal os vários livros e reflexões que existem sobre o Islão e sobre a religião em geral, então penso que estaria justificado em concluir que o Islão, na sua essência, é algo profundamente individual mas que se constitui como fundamento para a comunidade. É interessante notar que de todas as religiões baseadas em escrituras o Islão é das mais “democráticas” uma vez que não prevê nenhuma intermediação oficiosa entre o crente e Alá: qualquer crente pode oficiar. No Cristianismo só algumas versões do protestantismo é que se aproximam deste modelo.

O problema de qualquer religião baseada na revelação é a fidelidade da escritura. O Cristianismo é, neste sentido, sintomático. Só as várias versões do Evangelho revelam a dimensão do problema. Passei vários meses na Líbia nos anos oitenta e um dos meus interlocutores líbios com quem sempre discutia questões religiosas gostava de chamar a minha atenção para o facto de que o que o anjo Gabriel revelou directamente à Maomé foi decorado por várias pessoas e editado nessa base. A verdadeira história foi bem mais complicada do que isso, tanto mais que em algumas versões do Islão o Profeta era analfabeto e, por isso, teoricamente, incapaz de sancionar o Alcorão. Mas isso é secundário, o que importa é a ideia de que o revelado está à disposição de qualquer crente.

Há algumas diferenças na forma como as religiões lidam com este problema. O Catolicismo preferiu a via de uma burocracia teocrática, cujo expoente máximo foi a Igreja Romana. O Protestantismo, por sua vez, sobretudo pela intervenção de Martinho Lutero, preferiu dar acesso individual à Bíblia a todo o crente como forma de o emancipar da nomenclatura teológica. É assim que no nosso País, por exemplo, as missões protestantes insistiram muito na alfabetização e na tradução da Bíblia como forma de garantir esse acesso individual à revelação. Embora o problema não seja tão agudo no seio do Islão, a abordagem por ele privilegiada é uma mistura. Por um lado, insiste-se na necessidade de fazer decorar o Alcorão e, por outro, existem sábios que têm como tarefa interpretar as leis e normas contidas nessa revelação.

O problema que se coloca para estas religiões é de saber qual é o verdadeiro objecto de fé por parte do crente. É o que a sua consciência lhe diz ou o que o sacerdote ou imam dizem? No seio do Cristianismo esta questão continua a ser discutida com muito vigor. Nos anos oitenta, por exemplo, circulava a ideia de uma autonomia moral em que alguns teólogos depositavam muita fé. Segundo essa ideia, o crente devia apenas responder à sua consciência. Esta ideia contrapunha-se ao dogma da infalibilidade do Papa e da intermediação institucional por parte da Igreja. Mas mesmo a questão do dogma de infalibilidade, portanto a ideia de que o Papa não erra (porque errar é humano... apetece-me dizer com maldade), é histórica e conjuntural. O dogma foi uma solução teológica a um problema burocrático: No primeiro Concílio do Vaticano em 1870 votou-se nesse princípio para permitir que o Papa Pius IX tivesse a última palavra sobre a vontade do Concílio. O que interessa notar aqui é que o dogma impôs a autoridade do Papa num contexto em que este, pelo seu próprio carisma, não era capaz de lograr a obediência dos seus seguidores. Parece-me um mau começo para o próprio princípio de infalibilidade. Não seria despropositado, neste sentido, recordar que esse dogma conduziu a mais uma cisão na Igreja Católica com a criação dos Velhos Católicos.

Teoricamente, no Islão o crente tem a última palavra. Mas na prática a intermediação desempenha um papel muito importante. Em princípio é a consciência que devia orientar o muçulmano, na realidade, contudo, é a obediência à interpretação que certas pessoas fazem do Alcorão. Isto não é necessariamente mau tanto mais que nem todos dispomos das mesmas capacidade intelectuais. Mas a dependência de outrém para se ter acesso a Deus constitui um problema moral de grande envergadura. A história das religiões e, nos últimos tempos, do Islão em particular, tem demonstrado quão perigosa esta dependência pode ser. No passado escravizaram-se negros em resposta, em parte, a uma encíclica papal que os retirava da humanidade; subjugaram-se povos, as suas culturas foram destruídas e eles foram convertidos violentamente em resposta à vontade de Deus transmitida por gente que se julgava com costas quentes junto de Deus. Nos nossos dias, alguns jovens matam indiscriminadamente e outros, entre nós e mais recentemente, assaltam o Jornal Savana em resposta ao que certas pessoas dizem ser o espírito do Alcorão.

É sob este pano de fundo que o dístico em questão me parece preocupante. Na verdade, não é ao Profeta que se ama mais do que a própria vida; é, sim, ao intérprete do Profeta, portanto, ao Sheik e ao Imam que, em muitos casos, privam o crente da sua liberdade de pensar. Os meus receios fundamentam-se também numa distinção semântica extremamente importante que se faz no Islão. Na verdade, os que professam esta religião não aceitam serem chamados de “maometanos”. Eles dizem que o Islão não é como o Cristianismo que venera Cristo. Maomé foi apenas o mensageiro de Alá, o seu último profeta. Eles são muçulmanos, portanto, pessoas que procuram emular o ideal contido nesses ensinamentos. Como, então, nestas circunstâncias “amar mais o Profeta do que a própria vida”? Não teria sido mais coerente, pelo menos teologicamente, dizer “amamos mais Alá do que a própria vida” já que, segundo o que alguns amigos muçulmanos me explicaram, eles devem a vida à Alá?

Existe um momento na história da humanidade que é tido por muitos estudiosos como o momento da emancipação do Homem do obscurantismo religioso. No Ocidente, vai-se mais longe na interpretação do significado deste momento e diz-se que é característicamente judio-cristão. Refiro-me ao iluminismo e ao processo de secularização que ele implicou. Se bem que haja razões fortes para supor que se trate realmente do momento de emancipação, há, contudo, que ter cuidado na avaliação. Muitos pensam que uma das implicações desse processo de secularização é a diminuição de importância do religioso. E quando olham para o que parece ser o ressurgimento do sentimento religioso nos nossos dias – fundamentalismo cristão nos EUA, pentecostalismo no Brasil e em muitas partes de África, e, claro, o integrismo islâmico no mundo – interrogam-se se faz realmente sentido partir mesmo da ideia de que as Luzes nos permitiram dar as costas à religião.

Estas reticências são legítimas, mas podem ser minimizadas. Na verdade, o iluminismo significou a vitória da razão sobre a irracionalidade. Neste sentido, o processo de secularização não implicou necessariamente a diminuição na importância do religioso. A secularização criou condições para que cada indivíduo tomasse uma decisão consciente a favor ou não da religião. A secularização, do ponto de vista ideal, libertou a religião de si própria, devolvendo o sagrado ao seu devido lugar. Ela criou as condições intelectuais e materiais para que cada pessoa soubesse o que estava a fazer ao decidir depositar fé em alguma coisa ou em alguém.

Apoio-me, nesta interpretação, sobre alguns dos filósofos mais sólidos que o mundo conheceu. Refiro-me ao escocês David Hume e ao alemão Immanuel Kant. Embora Hume tivesse muitas reticências em relação ao que, pela experiência, não era passível de comprovação, ele tomou a bondade natural dos Homens como o ponto de partida para a defesa do papel da razão na procura da boa vida. As práticas monásticas de auto-flagelação, celibato, sentimento de culpa e por aí fora ofendiam profundamente o sentido filosófico de Hume. Era às ideias de gente como Cícero, que defendiam o amor à vida e seu usufruto, que ele encontrava elementos para construir a sua ideia de moral. Kant, por sua vez, embora demasiado críptico para quem não tem formação filosófica, defendia ideias semelhantes. Num texto com o título “O que é o Iluminismo?” o filósofo alemão define este momento como a maturidade humana: com o Iluminismo o Homem deixa de depender de outros homens para determinar o que é bom para si e passa a usar a sua própria capacidade de raciocínio para chegar a essas conclusões. Abandona a tutela.

As ideias de Kant são extremamente importantes, mas o espaço não me permite mais do que isto. A sua ideia de um imperativo categórico refere-se exactamente a esta problemática. Nós os seres racionais podemos reconhecer o princípio que está por detrás da lei e orientamos a nossa acção nesse sentido. Esse é o nosso espaço de liberdade por excelência. Não nos portamos bem a fim de alcançarmos um determinado objectivo, muitas vezes definido por outras pessoas com suas próprias agendas; portamo-nos bem porque, livres de coerção, reconhecemos o bom pelo que ele vale. E o bom é a nossa razão. Kant tem uma frase famosa que devia ser o ponto de partida para qualquer diálogo entre crentes e não crentes: Saper Aude! (tenham a audácia de procurar o conhecimento!).

Falo de Kant como também poderia falar de muitos eruditos árabes da sua época se tivessem sido tão amplamente difundidos. Suponho que eles também tenham partilhado estas ideias. De resto, diz-se que um dos princípios proferidos pelo Profeta Maomé foi de que a primeira coisa criada por Alá foi o intelecto. Ele não poderia ter dito isto se não tivesse querido que as pessoas pensassem por si próprias e não por intermédio de outros. O vigor intelectual de várias correntes islâmicas prova quão profundamente enraizado na consciência dos muçulmanos estava este princípio. Não podemos esquecer que devemos ao mundo sob influência islâmica avanços excepcionais no domínio da ciência. Esses avanços, atrevo-me a dizer, não teriam sido possíveis com máximas do estilo que estiveram em exibição durante a manifestação de Maputo.

Pessoalmente, não sei se concordo com a ideia de que a religião é a base da moral na sociedade. Duvido bastante. Não encontro em nenhum momento da história formas de convivência pacífica entre os homens na base de uma ordem religiosa. Encontro opressão, servidão e superstição. Os exemplos disto abundam, sobretudo no mundo árabe e muçulmano onde por razões geo-políticas que não são de descurar a religião ainda se encontra manietada. Encontro a instrumentalização da revelação com o fim de legitimar a vontade de poder de algumas pessoas. A queda do murro de Berlim levou alguns analistas a supor que o comunismo tivesse falhado por ter estado contra a religião. Afonso Dhlakama, no nosso País, tem também andado a repetir este equívoco em relação à experiência social do pós-independência.

O capitalismo ocidental sagrou-se vencedor da contenda com o bloco do leste não tanto porque respeitou a religião, mas sim porque ignorou completamente a religião. Quando muito o capitalismo proporcionou à religião contextos para a sua própria emancipação. A religião não pode proporcionar uma base moral à sociedade porque ela, na sua forma institucional, é inimiga da maior liberdade a que o homem tem direito: a liberdade de pensar por si próprio e assumir responsabilidade pelos seus actos. O exemplo mais claro deste efeito insidioso da religião é o dístico içado em Maputo a instar os crentes a confundir a sua vida pessoal com a ideia que alguns clérigos gostariam de transmitir do Profeta Maomé.

Esta interferência na liberdade individual constitui, para mim, um perigo muito grande à possibilidade de convivência sã numa sociedade plural como é a nossa. A liberdade religiosa só faz sentido, em meu entender, se ela é exercida por gente consciente e capaz de assumir responsabilidade pelos seus actos. Quem repete com a multidão que “ama o Profeta S.A.W mais do que a sua própria vida” ainda não atingiu a maturidade que, dentro do espaço democrático que estamos a construir, lhe devia permitir fazer uso das suas faculdades mentais para realmente ser crente. Tem medo da liberdade e procura refúgio na multidão. Levanta um muro entre o amor ao Profeta e o amor à liberdade. Não é diferente do peixe crente que toma os limites da sua ignorância como a premissa que fundamenta a sua ideia de que Deus existe.

1 Comments:

  • Interessante...especialmente vindo de quem não acredita na existência de algo parecido com Deus... A neutralidade ajuda-nos muitas vezes a gerar uma clara objectividade no abordar das coisas...
    Eu amo a vida... sem ela não teria como amar mais nada...

    By Blogger Nelson, at 5:14 AM  

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