Liberdade
Do Manuel Mangue recebi o seguinte texto:
Liberdade, Liberdades!
Penso que a liberdade, ou libertação para dar ênfase ao processo, sobretudo nos países de democracia tardia (democracia, neste caso, como modo de estar sócio-político e cultural copiado dos países do norte geopolítico) como os da América-Latina e África já vem com um “defeito de fabricação”; ela, à partida, tem uma origem equivocada, de tal modo que, se aplicados os preceitos (legais, por exemplo, os mais avançados possíveis) sobre a realidade concreta, corre-se o risco de torná-los mais opressores do que libertários.
Por um lado, esses processos elegem um inimigo a ser combatido, como sinônimo de alcance a essa liberdade. Ou seja, se há luta, essa luta está em combater, por exemplo, o colonialista português e não em superar a situação de opressão, seja do colono ou não – depois que vi a atitude dispensada por um proeminente político da nossa praça, que “lutou pela independência”, não tive dúvidas disso; a luta, no caso concreto da liberdade de imprensa, está em combater a censura e não na atitude de justiça e responsabilidade sobre o que se diz. Enfim, a liberdade assume um viés de combate a um inimigo aparente; isto é, elege-se um inimigo como seu contrário antagônico, evitando-se, com isso, tratá-la como uma dimensão ontológica inerente à pessoa humana (talvez porque pensar nas pessoas como sujeitos ontológicos limita o exercício do poder, na medida em que se tem que pensar no outro como um igual – verdadeiro atentado a certas exclusividades reflectidas na estrutura de desigualdades que caracterizam essas sociedades).
Por outro lado, quando a liberdade é introduzida, encontramos muitos dos que lutaram ou lutam contra o colonialista ou contra a censura, ainda no exemplo, tomados por um irresistível desejo de ascensão, que, para eles, é-lhes evidente, é tomar o lugar do colono ou de quem se serve da censura - que, quanto muito, invertem apenas os pólos da contradição (pólos cuja amplitude é proporcional à intolerância de um pelo outro).
Portanto – sem alongar-me - nestes lugares a questão da liberdade tem que ver com esses aspectos: a eleição de inimigos representativos, por um lado, e o facto de que, por outro, alguns dos que até então reivindicavam libertação, na verdade, transferem para si aquilo que era para o outro o direito de dominar; o facto de que o então dominado traz consigo e passa a defender uma imagem de liberdade que é copiada da experiência de vida do dominador. Isso não pode ser liberdade, mas sim uma relação de poder. Com isso, o que a seguir se assiste não são acções autênticas em defesa de liberdades (nas suas diversas formas) mas sim acções de sobreposição de poder - o que, relacionado à liberdade de imprensa, especificamente, faz com que um publique, o outro ponha a cabeça do primeiro a prémio (que no nosso caso, por sorte, está restrito ao pedido de demissão), o terceiro poder, o judicial, no caso, continue sem precedentes, e o quatro, a opinião pública, pressione segundo suas paixões e proveitos que possam daí advir.
Uma simples análise evidencia o enorme gap entre os preceitos ou postulados de liberdade e o seu exercício efectivo nestas sociedades, sendo aqueles mais nobres e este, quase sempre casuístico. Ou seja, o exercício dessa “liberdade” - relacionada à autodeterminação ou à imprensa – depende, na pratica, da posição relativa dos envolvidos. Há restrições para o exercício dessas liberdades, desde as mais faladas, as econômicas e políticas. Há também restrições educacionais, mas há, sobretudo, restrições de referências, tanto para os casos de “inimigos representativos” quanto do “continuísmo” (quando, por exemplo, não é mais o colono a impor seu poder, mas nós mesmos sobre outros de nós – ou de quaisquer outros). As restrições de referência, no caso especifico da liberdade de imprensa, por exemplo, apresenta-nos a censura como contraponto a essa liberdade, mas deixa de fora a auto-censura. Mas, mais do que isso, deixa de fora o meu direito de não ser informado. Dito de outra maneira, deixa-me refém de um processo de decisão do qual, como “livre”, não fui consultado (pré-censura). Ou seja, deixa-me sujeito à idênticas notícias, aos mesmos programas, etc. dos diferentes jornais e canais, na medida em que as restrições e, por conseguinte, as referências são estabelecidas antes mesmo que as notícias (que escapam da pré-censura e que podem incluir questões objectos de discussão sobre censura) sejam nos apresentadas. Um exemplo (de cima para baixo porque inclui-nos a todos, ou pelo menos a maioria de nós), desde 23/02/06, sabendo do terremoto em Moçambique, procurei nos mídia mais informações sobre o assunto. Nos jornais impressos, nada; canais abertos de tv, nada; até que num dos canais exclusivos de notícias veio a notícia sobre terremotos. Foi nesse intervalo de notícias que soube que no mesmo dia houve um outro terremoto no Canadá. Um outro digo eu, porque enquanto passava essa notícia, no quadro de notícias “giro pelo mundo”, pensava comigo que, finalmente, Moçambique seria notícia. Mas nada sobre o terremoto de 7,5 graus, mas quase tudo sobre o de 4,2 graus no Canadá. O que veio a seguir foi a notícia dos meninos que aproveitavam a neve daquele dia para brincar no gelo (em Nova York, se bem me lembro).
Portanto, a restrição de referência está relacionada ao que vem a ser o “mundo” e ao que vem a ser “mundial” e humanamente relevante, o que, por sua vez, depende do controle que se tem sobre a imprensa e, sobretudo, sobre o controle financeiro. Sobre o “continuísmo”, vale notar que os canais do sul (geopolítico) tornam-se subservientes a essas definições como forma de tirar disso alguma vantagem umas sobre as outras, visto que isso depende do facto de estar ou não a acompanharem o que ocorre no “mundo” (coitado dos que não ficaram a saber do ski sobre o gelo: como é que as pessoas podem dormir sem saber disso).
Como então falar de liberdade se ela não está ligada - para que se seja notícia, no caso - simplesmente à dimensão ontológica das pessoas?
Por falar em liberdades e na publicação das caricaturas, soube que alguns jornais europeus que depois da primeira publicação a seguir publicaram-nas tiveram as suas edições relacionadas esgotadas: liberdade de imprensa, de mercado ou simplesmente marketing (ou merchadising)?
1 Comments:
Caro Mangue,
Acho a sua intervenção interessante, mas não concordo com a ideia de que a liberdade vem com um defeito de fabricação. A questão que se coloca é de saber se o usufruto da liberdade depende da existência ou não de certas condições materiais e intelectuais. Suponho que sim. Nas condições do nosso país, onde os princípios inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos não reflectem necessariamente processos sociais endógenos, é bem provável que seja difícil domesticar a liberdade. Não é o próprio princípio de liberdade que exige a identificação de um adversário, mas sim as condições locais. Que eu saiba, a Frelimo, pelo menos na sua retórica, nunca definiu o inimigo como sendo o colono, mas sim o sistema colonial e, acima de tudo, o sistema capitalista que os ideólogos da Frelimo supuseram estar na origem do colonialismo. Daí a proclamação do comunismo como verdadeiro fim da sua luta.
By Elísio Macamo, at 2:11 AM
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