Ideias para Debate

Thursday, March 09, 2006

Mangue responde a Macamo

Caro Macamo,

Liberdade, Liberdades

Vi as suas colocações pontuais e sobre elas fiz algumas considerações:

Em relação aos "defeitos de fabricação", estes não estão relacionados à declaração formal dos direitos humanos. Como disse em uma das passagens, estes são nobres, mas a questão está nas restrições concretas; ou seja, nos constrangimentos da sua aplicação prática. Nesse sentido, quando você diz que "...A questão que se coloca é de saber se o usufruto da liberdade depende da existência ou não de certas condições materiais e intelectuais", as evidências mostram que sim, por isso que eu já adiantava que o exercício da liberdade depende da posição relactiva dos envolvidos, de uma sociedade para a outra e, dentro de uma mesma sociedade, de um grupo sobre os outros (assim sucessivamente). Poderia ilustrar em vários cenários, o político, por exemplo: a democracia (e seus preceitos) é, hoje, nobre. Mas, quantas vezes esta não se transforma numa farsa em si caracterizada pelo desinteresse das maiorias ou pela venda de votos, inclusive para os seus adversários naturais se isso implica em benefícios imediatos? No comério: será que Moçambique é tão livre com o seu algodão se o norte tem o "dumping" como ferramenta de controle?

Em suma, há sociedades e dentro das sociedades há uma massa sem voz (em especial nos nossos países, em que, por exemplo, apenas 1 milhão tem emprego formal e a educação mostra-se cada vez mais privada) e cuja inclusão na sociedade civil é apenas morfológica, enquanto que, por outro lado, um clã exerce todas as potencialidades de auto-realização como privilégio social, graças ao monopólio político-económico e cultural.

Creio que há que se prestar atenção nisso, por um lado, porque essa massa tem direito a ser (como sujeitos) e, por outro, para quem é materialista, porque, mais do que qualquer modelo de desenvolvimento, o processo de contaminação da miséria é concreto e mais rápido que qualquer programa de contenção (mesmo na Europa, hoje a braços com a questão da imigração que desencadeia outros processos de hostilidade, como é o caso da xenofobia).

Por fim, o “defeito de fabricação” não está essencialmente na formulação dos direitos universais em si, esses são, como disse, nobres – embora eu ache que eles têm como base jurídica o direito positivo, mas isso não vem ao caso. O “defeito” está no formalismo que esses direitos representam sobre a realidade concreta nas sociedades de democracia tardia, de um modo geral. Por outra, de facto, a Frelimo, já que você citou um caso específico, lutou contra o sistema de opressão português e também lutou para a formação do “homem novo”. Entretanto, o que dizer quando os nobres postulados veem sobre o “novo homem” que nasce, não da superação daquele sistema, mas da aderência a esse mesmo sistema - por falta de qualquer outro testemunho de ascensão e de humanidade ou procurando tirar disso algum proveito –; isto é, quando esses preceitos veem depois que o “novo” indivíduo já se tenha transformado em hospedeiro do colonizador?

Esses postulados serão, portanto, pano novo sobre vestido velho. E, nesses casos, muito do que se tem feito, é, sucessivamente, usar desse pano novo para remendar o vestido velho. É nisso que está o “defeito de fabricação”.

Amor à Liberdade

Antes de mais, gostaria de aclamá-lo pelo fôlego em expor e debater as suas idéias. Especificamente, achei a proposta do tema instigante. Interessante também foi a sua preocupação em reunir dados para sustentar a sua posição. Entretanto, não pude deixar de notar alguns descompassos nessa tentativa, entre eles (gostaria de ter tempo para ponderar sobre todos):

A começar pela personificação da qual você se usa para a síntese (moral da história) da sua opinião. Esta, embora pedagógica, esconde o que há de essencial e inerente a esse exercício. Ou seja, ao recorrermos a essa técnica, além da capacidade da fala, podemos também atribuir ao objecto de personificação a capacidade de dedução e, como é o caso por si citado, a capacidade de intuir. Porém, ao atribuirmos a capacidade intuitiva, essa personificação pode ter qualquer fim; pode-se intuir qualquer coisa. O peixe poderia, por exemplo, intuir perguntar “se o dono da casa não existe, então quem é que muda a água”. Suficiente para declarar a inexistência de “donos de casa”?

Um outro aspecto, que eu acho recorrente nos seus textos, é a discussão de um tema como base em conceitos em si complexos e controversos, a exemplo, por um lado do ateísmo (e o materialismo, embora você não tenha citado diretamente) e, por outro, a religião e Deus (além de abarcar o cristianismo e o Islamismo. Isso não quer dizer que não possam estar juntos, mas aqui estão como recurso para justificar um outro tema, que é o “estado das coisas”, inclusive morais, em Moçambique, em particular). Creio que fica muita coisa, além de que no caso da Religião e Deus, por exemplo, dá-se a impressão de que uma coisa é igual à outra. Por seu turno, você procura mostrar esse “estado das coisas” – que não é muito bom – mas, ao mesmo tempo, dando a impressão de que as religiões são compadres desse mal estar.

Da mesma forma que quase sempre você advoga a necessidade de se fazer uma análise crítica, creio que, com a mistura de conceitos corre-se o risco de ir para o extremo oposto, o da banalidade sociológica, ao não permitir o aprofundamento dos conceitos em si e em análise. Há factos importantes no seu texto, mas isso não explica a relação e a inter-relação entre eles. Ou seja, sei que a idéia não é reflectir criticamente sobre Kant, mas ao trazê-lo para o debate e este ao herdar uma abordagem positiva do homem, isso significa - se fizermos uma analogia com a área médica e mérito seja dada a essa linha de pensamento - que estes fizeram uma dissecação anatômica do homem (dissecação sociológica do homem no caso para essa corrente de pensamento). Aproveitando ainda a analogia, por melhor que seja descrita a anatomia humana, o homem é só isso? O próprio Kant na Crítica da razão pura mostra que não (não é só razão, no caso), rebatendo centralmente e desse modo os excessos de Hume.

Resumindo, sem um pano de fundo, no seu texto não só fica a impressão mas torna-se evidente que para si o problema moral é exclusivamente um problema religioso (não questão religiosa, isso você deixou claro que para si não seria). Esse problema, portanto, não estaria nos excessos das formas de organização humana - em que, por exemplo, se encontra fundamentalismos fruto da abstração do direito ou da própria liberdade – e estaria exclusivamente (além de irracionais) no âmbito religioso.

O não aprofundamento, pelo menos dos conceitos, levam também ao seu entendimento deturpado, a exemplo da questão que você aborda da infalibilidade do papa. Político ou não, esse conceito não está relacionado à impecabilidade ou à perfeição do papa. Isto é, não está unicamente vinculado à semântica do termo. O conceito está associado a um momento bem específico (Isso, entretanto, fez-me lembrar dum juiz que entrou com processo para que até os vizinhos o chamassem de doutor – se calhar até os filhos. Juiz, tudo bem, mas só no tribunal e alguns eventos formais. Em relação à infalibilidade é mais específico ainda. No resto, é papa falível).

Por fim, em uma das suas passagens, você diz que “ O capitalismo ocidental sagrou-se vencedor da contenda com o bloco do leste não tanto porque respeitou a religião, mas sim porque ignorou completamente a religião...”. Não sei se esse facto, embora tenha de algum modo ocorrido, ele tenha sido decisivo na guerra fria, especificamente quanto ao enfraquecimento do leste. Em relação a isso, sugeriria a análise do 11 DE SETEMBRO, só que não de 2001, mas de 1973.

6 Comments:

  • Caro Mangue,
    Obrigado pelos seus comentários. É evidente que vamos continuar a discordar. Um carro fabricado na Alemanha e levado a Moçambique para circular no campo (sem boas estradas, sem mecânicos, oficinas, etc.) não tem defeito de fabricação. O facto de termos dificuldades no usufruto das liberdades e direitos universais não põe em causa essas coisas. Há a água e há a bacia. Devemos distinguir isso.
    As outras observações que faz são difíceis de responder, pois não vão à essência do que escrevi, mas à maneira como devia ter escrito. Sei quais são os problemas associados à atribuição de intuição, mas esse foi um recurso estilístico para chamar atenção à importância do uso consequente da razão. Sei que Kant e Hume são mais complexos do que fui capaz de os apresentar no texto, mas se só devesse citar pessoas, cuja obra e conceitos eu tivesse que expor longamente, não escrevia nenhum texto. É uma questão de transparência intelectual. Não posso deixar de os citar só porque sem explanação longa vou provocar cunfusão. Não vejo o mal-entendido sobre a infalibilidade do Papa. É mesmo nesse sentido que discuto a questão aí, portanto não o Papa como pessoa, mas sim como instituição e num sentido burocrático.
    Um abraço

    By Blogger Elísio Macamo, at 1:06 AM  

  • "Há a água e há o bébé na bacia", queria escrever...

    By Blogger Elísio Macamo, at 1:08 AM  

  • Caro Macamo,

    Eu é que agradeço pela réplica. Quem sabe, possamos chegar a um consenso apesar das divergências.

    Em relação à discordância, penso que importa mais o consenso do que propriamente estarmos de acordo.

    Sobre as questões colocadas, especificamente quanto à primeira, poderia dizer duas coisas: (1) aproveitando a sua analogia, será que o fato de ser alemão está livre de defeitos de fabricação? (2) que desde o início no meu texto a expressão está escrita entre aspas, chamando a atenção para algo mais do que a questão semântica. Isso levaria-me a dizer, em relação ao seu texto, que os peixes não falam, etc. o que é absolutamente irrelevante. Não é isso que está em causa.

    O que vale a pena discutir - e, mais uma vez, aproveitando a sua analogia – é que, de facto, podemos distinguir carros de estradas, bébés da água do banho, árvores das frutas, etc. Mas isso não vale para tudo. Isto é, algumas dimensões humanas - a liberdade, a cidadania, por exemplo - não permitem essa dualidade cartesiana. Ou seja, elas não existem até que aconteçam; elas só existem na praxi da sua busca e do seu usufruto; ou se é ou não se é. A liberdade (ou os direitos humanos, como também citado) ou são de alguma forma universais ou não são direitos, mas privilégios. Dessa forma, a liberdade é um rótulo, na medida em que passa a haver uma separação entre a expressão e o seu conteúdo, tornando a sua definição ambígua ou prática: em função, por exemplo, do saldo em conta corrente ou do diploma.

    Quanto às citações, refiro-me, quando necessário, à abordagem integrativa dos factos e em consonância com a complexidade do tema proposto. Embora se saiba, por exemplo, do papel da igreja como força de imersão de consciências a favor da dominação colonial em Moçambique, não poderia explicar tal dominação sem incluir o papel preponderante dos reis vassalos e dos prazeiros, mesmo que queira dar ênfase a um dos aspectos. Assim, a irracionalidade não se mostra exclusiva de uma forma de organização social, mas própria de uma forma de estar e de ser humana, independentemente dessas formas sociais.

    Por fim, no caso da infalibilidade, também refiro-me ao Papa como instituição. Em pleno exercício das suas funções só não é infalível no estado de “ex cathedra” (que nem por isso é um processo místico e subjetivo. Em outras formas de organização social também podemos dizer, por exemplo, que, em princípio e em grau, a decisão do superior tribunal de justiça é infalível). Mas não é o tema em debate e não creio que queira discuti-lo. Apenas enfatizar que, com base apenas na semântica, podemos transformar em totalitário algo bem específico...

    Abraços,

    By Blogger Mangue, at 5:48 PM  

  • Caro Mangue,
    Acho que a discórdia num debate honesto e transparente não é má coisa. Por isso estamos de parabéns. Sobre os seus dois últimos parágrafos não tenho a certeza se percebo o pomo de discórdia. Continuo a pensar que se trata de questões de opção estilística individual que têm pouco a ver com a substância do que queria dizer. Não vejo, por conseguinte, grande utilidade em prosseguir essa discussão.
    Sobre a questão da analogia, contudo, penso que vale a pena insistir. Usei a personificação no exemplo do peixe, mas o Mangue quando fala de "defeito de fabricação" está a fazer uma afirmação substancial de grande peso que se confirma no que voltou a repetir no seu comentário, nomeadamente que a liberdade não existe até acontecer. Não concordo. Existe uma ideia de liberdade e existe o usufruto da liberdade, quer ligado a essa ideia ou à liberdade historicamente constituída. Acho perfeitamente legítimo rejeitar a aplicabilidade da ideia ocidental de liberdade para o nosso contexto, mas isso não é porque ela seja defeituosa ou não exista; é porque achamos que as nossas condições são diferentes ou, como o Mangue parece estar a sugerir, é porque devemos ser nós próprios a desenvolver o nosso conceito de liberdade.
    A hipocrisia do Ocidente e a subserviência da classe política africana não anulam a existência desse ideal. Há muita gente em África que já deu a sua vida por essa coisa de cuja existência o Mangue parece estar a duvidar.
    Um abraço

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:04 AM  

  • Caro Macamo,

    Penso que cada um de nós está certo no resultado das deduções que faz. Divergimos, na verdade, porque partimos de conceitos diferentes. Ao que você chama de idéia de liberdade eu chamada de preceito de liberdade, que, desde o início, eu já dizia que os achava até nobres – não vem ao caso levantar questões sobre a carta dos direitos humanos, por exemplo. Mas como parto do princípio de que os direitos/liberdade ou são de certa forma universais ou não são direitos, pergunto-me (1) que liberdade é essa que depende de circunstâncias eventuais, conjunturais, sociológicas, etc. para que seja liberdade? Ainda devemos chamar isso de liberdade? E quem não as tem (as circunstâncias)? Estas questões podem ser vistas se analisadas as relações de um bloco (geopolítico) sobre o outro; uma sociedade sobre a outra; e, dentro da mesma sociedade, de um grupo sobre o outro, em que, sobretudo com a expansão da sociedade de consumo, esse termo sofre um esvaziamento. Ele, concretamente, não quer dizer muita coisa, se não a designação prática que lhe atribuímos, em particular - no âmbito da mesma sociedade - nas sociedades governadas (não como política de estado) pela “política de barriga” que estraçalha qualquer preceito de liberdade. O que se segue, evidentemente, é o distanciamento entre a expressão liberdade e o seu compromisso. Mas, (2) e contrariamente ao que me pareceu o Macamo estar a insinuar, isso não se deve ver de forma absoluta ou com base em generalizações. (a) Dizer que a liberdade não existe, é absoluto. Mas que só existe quando acontece, é relactivo. Ela existe só que ancorada ao facto da pessoa pertencer ou não ao grupo das circunstâncias: em regra, em função, como havia dito, do saldo bancário, do diploma universitário, etc. Aos que satisfazem esses critérios, a “liberdade” lá está. Mas como isso é em detrimento dos demais - membros de um mesmo microcosmo e, sendo em sociedades como a nossa a maioria os demitidos dessas circunstâncias – isso está longe de ser liberdade e próximo ou sinônimo de auto-realização. (b) também não se deve radicalizar. Reconhecer que há ainda muito a ser feito, em nada anula a homenagem aos que morreram em África em busca de liberdade, antes pelo contrário. Isso é apenas reconhecer que muitos que foram libertos ainda não têm acesso aos direitos, continuando, apenas, sobrecarregados de deveres, ao mesmo tempo que os que gozam de direitos não se prestam a assumir os deveres (em alguns casos os mínimos que sejam de igualdade, como pressuposto básico à liberdade. Isso não significa que todos façam isso, o que importa é a cultura sobrejacente e subseqüente e o significado de direitos/liberdades. Lembro-me que no meu último embarque em Maputo, tendo ambos chegados meio atrasados e eu a um pé a frente, um sujeito perguntou-me se sabia quem ele era – nisso, senti-me o mais feliz dos moçambicanos por não saber, sobretudo em relação aos que sabiam quem ele era. Depois que soube, nem tanto quem era, mas o que era, perguntei-me como conseguiu sê-lo). A meu ver, as nossas sociedades não assumem esses deveres, apesar de independentes, pelo facto destas serem caracterizadas pela absorção (ou assimilação, porque não) dos modos coloniais de existência, não permitindo, desse modo, o nascer do “homem novo”.

    Enfim, procurei dizer que existem preceitos de liberdade - os quais o Macamo se apegou – e que têm a sua nobreza, sem dúvidas. Mas concretamente há um outro nível em que os direitos/liberdades, que nem sempre tem algo a ver com aqueles preceitos, passam a ser definidos pelos que detêm as circunstâncias, em que, por exemplo, liberdade passa a ser o direito de fecharmos os vidros dos nossos carros e sermos deixados em paz, ou de contratarmos a quem quisermos para as nossas lojas de atacados na Samuel Magaia para carregar sacos das 8:00 às 8:00 da noite... “Se não gostou das condições, sai”: o exército de reserva é grande. Há também um terceiro nível de “liberdades”, das maiorias nas sociedades como as nossas, em que estas ficam se equilibrando entre conseguir um lugar entre os “circunstanciáveis” ou em se submeter às “condições” como forma de subsistência; facto que torna aqueles preceitos virtuais ou apenas abstratos/formais.

    Mas, concretamente, essas distinções são apenas didáticas. Dizer que a liberdade só existe quando acontece é isso. É, feita a analogia, estar com fome. Entretanto, sem poder me alimentar, não me interessa se existe ou não um ideal de alimentação historicamente construído. Ou pior ainda, um grupo transformará em exclusividade esse ideal e dirá que sou livre porque posso escolher entre me submeter a certas condições e comer o que aparecer ou deixar de existir.

    Aquele abraço,

    By Blogger Mangue, at 7:16 PM  

  • Caro Mangue,
    Muito bem, acho que chegamos a um ponto onde podemos concordar em discordar. Está claro para mim que o seu argumento é contra a prática/usufruto (ou não) da liberdade nos nossos países. Acho a posição legítima, mas a análise é demasiado geral para ser do meu agrado. Mas isso é um outro assunto. O que me interessa ressalvar é que no seu argumento bem legítimo não cabe a história do "defeito de fabricação", acho até que o enfraquece. Penso que neste aspecto estamos de acordo.
    Um abraço

    By Blogger Elísio Macamo, at 11:37 AM  

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