Ideias para Debate

Monday, November 06, 2006

Afonso dos Santos

O Afonso dos Santos é uma pessoa cujas crónicas no Savana leio normalmente com muito agrado.
Pedi-lhe algumas para colocar aqui no blog e ele fez-me o favor de me enviar uma mão cheia.
Começo hoje a publicá-las. E, para começar, um tema quente como o inferno:

Diabo

Muito provavelmente há poucas entidades que tenham tantos nomes como o Mafarrico (e cá está um desses nomes). Eis alguns dos nomes dele: Demónio, Demo, Satanás, Satã, Lúcifer, Belzebu, espírito maligno, espírito das trevas, bruxo do inferno. E também há quem lhe chame o chifrudo.

Mas, por vezes, parecem querer designá-lo de formas mais criativas do que estas. Por exemplo: “mão externa”. Mas como a criatividade humana não tem limites, há quem tente dar-lhe ainda outras designações tais como “socialismo” e “marxismo”.

Nos tempos que correm, aparecem cada vez mais indivíduos intitulados pastores, bispos, apóstolos e outras coisas mais, os quais, embora falando em nome de Deus, na realidade mais parece terem um verdadeiro pacto com o Diabo, porque passam mais tempo a ameaçar em nome deste, do que a pregarem a palavra do Senhor que dizem representar. Aliás, a proliferação de tantos porta-vozes até dá quase a ideia de que Deus anda muito indeciso ou bastante hesitante e já não sabe a quem deve designar como seu representante. Ou será isso obra do Diabo? Se assim for, então já se pode compreender melhor porque é que esses flibusteiros passam a vida a falar no Satanás.

De facto, é quando eles aparecem que algumas pessoas começam a ter o Diabo no corpo e se transformam em espíritos malignos, sendo depois libertadas desse malefício por esses trapaceiros que se dizem milagreiros. Ora, não é difícil qualquer janota realizar o malabarismo de libertar alguém do mal que lhe inculcou.

Quanto ao uso da expressão “mão externa” como se ela fosse a mão do Diabo, isso surge no contexto em que governos antidemocráticos se vêem confrontados com acções de luta das massas populares. Esses governos pretendem fazer crer que o povo está a ser manipulado por uma entidade estranha e maligna. Assim agia o governo colonial perante a luta de libertação nacional. Mas parece que alguns, nos dias de hoje, querem seguir os mesmos passos.

Como se vê, a existência do Diabo tem uma grande utilidade. Quando a tua causa não é justa, e, por isso, não é convincente, e, portanto, não podes defendê-la pela positiva, ficas limitado a defendê-la pela negativa, ou seja, tens que inventar um demónio, tens que fazer de alguém ou de alguma coisa um diabo. Em suma, tens que fabricar um inimigo.

Mas acontece que, da mesma maneira que ter saúde não é apenas não estar doente; da mesma maneira que a existência de paz numa sociedade ou num país não é apenas a inexistência de guerra; da mesma maneira que fazer oposição política não é apenas passar a vida a bramar contra quem está no poder; também o Bem não pode definir-se como sendo uma luta contra o Mal. O Bem define-se por valores que lhe são intrínsecos e que geram a felicidade do ser humano. E essa felicidade não consiste em ter um carro para cada membro da família, uma casa com piscina e duas ou três lojas ou empresas. Isso é apenas negócio, mas a felicidade não é um negócio, e muito menos um negócio com o Diabo.

A grande mão do Diabo chama-se Ignorância, e esta é a mãe de todos os medos. No romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, podem encontrar-se algumas interessantes reflexões sobre a natureza do Diabo e sobre o modo de lidar com o gajo. Uma das personagens do romance afirma: “O riso liberta o vilão do medo do diabo, porque na festa dos tolos o próprio diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do medo do diabo é sapiência.”

Mais adiante, outra personagem afirma: “...o diabo é a arrogância do espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. O diabo é sombrio porque sabe para onde vai, e, andando, vai sempre para o lugar de onde veio.”

A palavra “vilão”, no contexto em que surge ali em cima, designa o camponês que, na Idade Média, trabalhava a terra do senhor feudal. Também significa, simplesmente, aquele que vive numa vila.

Acontece que, com o andar dos tempos, a palavra “vilão” passou a ter o significado de uma pessoa vil, grosseira, desprezível. E é aqui que aparece esse outro tipo de designações tais como “socialismo” e “marxismo”, que alguns pretendem fazer crer que são outros nomes do Diabo. É que, como se sabe, o socialismo e o marxismo estão associados à ideia de uma sociedade em que as classes trabalhadoras têm uma influência preponderante ou de uma sociedade sem classes sociais com interesses antagónicos. Ora, esse tipo de sociedade só pode ser encarada como um verdadeiro inferno, quer dizer, um reino do Diabo, para aqueles que usufruem de vantagens que são obtidas e garantidas à custa da subjugação e da miséria dos operários e camponeses, os quais, quando lutam por igualdade e justiça social, são logo considerados precisamente como sendo pessoas vis, grosseiras e desprezíveis. Numa única palavra: diabólicos! Tal como o socialismo e o marxismo.

Enfim, uma prova de que o Diabo existe – e que não é um, são muitos, e andam por aí à solta – uma prova disso é o facto de que escrever este texto deu uma trabalheira dos diabos!

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FIM DO TEXTO

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