Em 10 de Dezembro de 2004 o economista Roberto Tibana publicou, no Mediafax, o seguinte texto:
Eleições 2004: Quando a fasquia
foi levantada demasiado alto
(Maputo)Trinta anos de governação
da FRELIMO em Moçambique deram para
vermos tudo o que os políticos da geração
que passa em África nos podem dar, desde
catalisar os povos e guiá-los numa epopeia
libertadora de inquestionável e inapagável
valor histórico, passando por desastres
económicos, políticos e militares resultantes
de um misto de inexperiência, ingenuidade,
clientelismo em relação a potências mundiais
em disputas geo-estratégicas e ideológicas,
até chegarmos ao realismo político a que a
evidência dos factos necessariamente levou
e que os convenceu da necessidade de relaxar
o seu controlo autocrático da sociedade,
para ainda desaguarmos na ilusão dos
sistemas económicos e políticos corruptos
que se desenvolveram na sequência das
liberalizações dos anos 1980s/90s.
Quando aqueles da minha geração que
não haviam participado na luta clandestina
e na luta armada de libertação nacional
recebemos a FRELIMO, estávamos imbuídos
do mesmo espírito nacionalista que
impregnava toda a sociedade e os guerrilheiros,
mesmo naquela nossa juventude.
A história contada quase mítica da guerrilha
e dos feitos e qualidades dos líderes e
do movimento só veio reforçar esse entusiasmo.
Mesmo quando na convivência e
participação activa nas actividades de reconstrução
pós-colonial como simpatizantes
do movimento nacionalista e como
cidadãos nos íamos dando conta de anoma-
lias e erros, da intolerância e manipulação, da
exclusão e extremismo, o dogma da verdade
e da pureza do movimento e da liderança que
nos foi inculcado eram suficientemente fortes
para criar aquela zona de tolerância que nos
levava sempre a dar o benefício da dúvida aos
homens que fizeram o Moçambique independente.
Mas o totalitarismo do regime, a tortura,
as prisões arbitrárias e sem julgamento,
seguidas de deportações, a recusa ao diálogo
com os irmãos que mais cedo do que
muitos de nós se deram conta dos males do
regime e o questionaram, fizeram desmoronar
o castelo de cartas, e iniciaram o ciclo vicioso
do declínio económico e social da sociedade
moçambicana.
A génese da RENAMO, em particular
as suas ligações com os regimes militares da
Rodésia do Sul e da África do Sul é bem
conhecida e não é negada mesmo pelos dirigentes
deste movimento de insurreição agora
tornado partido político. Os métodos brutais
de recrutamento e incorporação na guerra
são bem conhecidos. A destruição das
infraestruturas sociais e económicas, as vítimas
inocentes nas estradas e aldeias, estão
registados na memória das famílias e da sociedade..
Mas só quem não conhece a natureza
das lutas de guerrilha e da contra-guerrilha
é que teria a ingenuidade de acreditar na
versão oficial da FRELIMO em como todas as
barbaridades da chamada “guerra dos dezasseis
anos” foram o produto exclusivo das
operações da RENAMO. Se as duas partes
tivessem aceite abrir um processo de reconciliação
nacional que incluísse a denúncia e
confissão dos actos desumanos e criminosos
durante essa guerra, tanto os cometidos
a mando dos comandos superiores ou por
iniciativa de comandos locais ou de grupos
de guerrilheiros e soldados de ambas as
partes, teria sido difícil saber-se de que lado
a balança pende, pois para além dos crimes de
guerra existem também os crimes de abuso,
prisão, tortura e matança pública a coberto
da defesa da soberania do Estado, cometidos
por um regime totalitário de partido
único, em nome da soberania do povo e
nos interesses do povo, mas que se tornaram
um verdadeiro desastre que levou a
sociedade décadas atrás no caminho do
progresso humano.
Acreditando na paz trazida pelos
acordos de Roma de 1992 entre as duas
partes detentoras de armas, e com o desejo
de consolidar essa paz, o povo saiu em
massa para as eleições de 1994 e com
dificuldades de escolher entre os dois,
quase que lhes deu o mesmo crédito por se
terem entendido em poupá-lo do martírio
da guerra. Mas segundo os impulsos inerentes
à cultura de exclusão típica dos líderes
africanos, e aproveitando o sistema
necessariamente imperfeito da democracia
do vencedor que fica com tudo, só um
deles podia governar e a FRELIMO ficou
com o poder. E com isso, convenceu-se da
sua legitimidade inquestionável. Em 1999
o povo foi mais uma vez chamado a dar o
seu veredicto. Quis experimentar a
mudança, mas desta vez o desrespeito pela
sua soberania foi ao extremo. A fraude de
1999 é hoje um segredo público. Mesmo os
observadores internacionais que ingenuamente
ou não a permitiram e fizeram o
povo incauto engolí-la em seco, têm hoje
o peso na consciência por assim terem
procedido. Mas isso é tarde demais. Perdemos
vidas em Montepuez e em várias
partes do país, perdemos Carlos Cardoso,
o país quase parou no seu progresso, e
uma elite predatária e um grupo de criminosos
capturou o estado e mantém o povo
como refém dos seus ditames.
Nesse tempo todo, a FRELIMO foi
ajudada pela ineficácia política do seu
adversário directo, a RENAMO, que só
muito tardiamente se apercebeu da erosão
do seu poder de facto antes baseado no
controlo militar de vastas porções do território
e que terminou em 1992-94 com os
acordos de Roma e o desfecho das eleições
de 1994. Em lugar de rapidamente sair das
suas trincheiras e exclusivismo típico de
todas as guerrilhas que se vangloriam libertadoras
das massas supostamente passivas
e sem poder nenhum, e em lugar de avançar,
dialogar, desenvolver ideias e projectos de
desenvolvimento e governação alternativos,
e em lugar de se organizar, ligar continuamente
e trabalhar para curar as feridas e
a sua relação com o povo que sofreu com a
guerra, em lugar de rapidamente buscar
alianças com elementos da classe média à
procura de uma alternativa credível ao
incumbente desgastado pela história de governação
autocrática, erros de políticas, e
corrupção, a RENAMO acreditou na irreversibilidade
dos ganhos de 1994 e 1999 e
apostou na força da inércia da legitimidade
da sua luta pela instauração de um regime
democrático em Moçambique. Porém, tendo
conseguido evitar a derrocada total do regime
através das conversações de Roma,
tendo saído de lá com ainda um certo controlo
do poder político institucional derivado
do reconhecimento internacional da sobera-
nia do seu governo, e tendo conseguido
manter esse poder com a sua vitória marginal
em 1994 e o feito acrobático de 1999, nos
últimos 10 anos a FERELIMO usou muito
inteligentemente esse poder político para ir
impondo as instituições de uma democracia
largamente parcial e fictícia, mas que
tinham o efeito de progressivamente ir
estabelecendo as condições para uma hegemonia
total e de longo prazo a coberto de
processos aparentemente livres e justos
sufragados eleições periódicas. Ela criou
uma classe média baseada na administração
pública e uma elite de negócios profundamente
ligada ao Partido, e que lhe
serve de canal de recursos financeiros e
materiais gerados tanto no sector privado,
como daqueles tornados disponíveis ao
governo através da tributação e das doações
internacionais para os programas de
desenvolvimento do país.
Há sim uma fraude em curso em
Moçambique. Mas esta é uma fraude que
não começa nem se desenrola somente no
teatro das eleições nem nos eventos da
votação ou da contagem dos votos. O que
nós assistimos nos últimos dias não é nada
mais do que mais um episódio numa fraude.
Trata-se de uma fraude contra o povo
moçambicano que se desenvolve desde
1975, quando o poder tomado pela força
das armas da guerrilha contra a administração
colonial não foi devolvido ao povo
pelo sufrágio universal, mas sim mantido
nas mãos de uma elite exclusivista que o
usou para acumular mais poder e riqueza
com os quais pretende manter e perpetuar
a sua hegemonia sobre o resto de todos
nós. Numa das suas outras expressões
cultivadas mais recentemente na história
do pais, essa fraude toma a forma da apropriação
ilícita dos recursos públicos para
benefício pessoal por parte dessa elite
política e seus familiares e amigos, e inclui
o uso desses recursos para fortificar a sua
organização e poder político. As manobras
todas, desde a manipulação do estabelecimento
das instituições e do processo de
recenseamento eleitoral, até à desorganização
deliberada da logística das eleições
da semana passada através da Comissão
Nacional de Eleições e do Secretariado
Técnico para a Administração Eleitoral,
são somente uma parte de uma grande
operação para a manutenção do poder, a
todo o custo, por um grupo que cada vez
mais o procura só com o fito de fazer avançar
os seus interesses privados e individuais.
É sim verdade que o candidato presidencial
da FRELIMO cavalgou o país de alto a
baixo nos últimos anos reavivando as bases
do seu partido. Não é o mérito pessoal dele
que está ou não em causa. Fala-se muito da
má gestão da liderança da RENAMO e da
ineficácia deste partido em termos da organização
das suas bases para ganhar o poder
e governar eficazmente o país. Mas nisto
tudo ignora-se o volume de recursos públicos
que têm desaparecido dos cofres do
Estado à guarda do governo da FRELIMO, e
que são centenas de vezes superiores aos
míseros valores de que a liderança da RENAMO
é acusada de mal gerir. E pretende-se que
os propalados quatro biliões de Meticais que
a RENAMO-UE recebe do Orçamento do
Estado são em pé de igualdade aos valores
desviados do Estado através dos mais diversos
esquemas de corrupção, e que depois de
uma grande volta vão pelo menos em parte
dar entrada aos cofres do Partido no poder.
Estamos a falar de acções de um grupo
que recusa direitos a todos os que dele diferem
e não fazem parte, incluindo o direito de
eleger e ser eleito, de participar na governação
dos destinos do país. É um grupo
extremamente arrogante, muito convencido
da justeza das suas ideias, mas sobretudo
que acredita profundamente na legitimidade
inquestionável da sua hegemonia. É assim
que a FRELIMO se arroga o direito de dizer à
sociedade moçambicana quando é que ela
estará madura para a mudança, e para que tipo
de mudança. A mudança para a FRELIMO
só será aceitável quando ela for para colocar
no poder aqueles que eles próprios aprovam
como os mais indicados para governar este
país, o que representa uma grande contradição
nos termos de entendimento do que é
uma democracia. Também têm um medo abismal
de ver os outros no poder, porque a sua
noção e prática de poder está cheia de horrores
que pensam que os outros irão replicar.
Na realidade é o medo deles próprios que os
faz desesperarem no poder. É um grupo de
pessoas tão mesquinhas e ignorantes da
dinâmica do avanço da sociedade e da civilização
no século vinte que chega ao ponto de
supor que sem ele a sociedade moçambicana
não teria avançado qualquer milímetro na
direcção do progresso.
Para essas
pessoas,devemos
estar agradecidos
por termos uma
escola e um centro
de saúde, qualquer
que eles sejam
e a qualidade
dos serviços que
nos prestam, mesmo
que pudéssemos
ter mais e melhores
escolas se
eles não estivessem
a permitir o
roubo do dinheiro
destinado à educação
e saúde,
tanto dos contribuintes nacionais como
da comunidade internacional a que eles
fazem os peditórios em nome do povo de
Moçambique.
Mas é um grupo que não é homogéneo.
E por isso vale a pena apelar aos mais
conscientes e honestos dentro da FRELIMO
para que travem o deslize do comboio
para o desastre. E queremos chamar à
atenção aos que se deixam levar pela onda
da ambição de acesso ao poder pela via da
bajulação das lideranças, visto o poder
como caminho para o enriquecimento pessoal
e rápido como tem sido o caso generalizado
no nosso país, para que se abstenham
de apoiar as manobras visando manipular
os resultados das eleições acabadas
de realizar, que já de si vêm muito
tendenciosamente viciadas pela maneira
como foram preparadas. Os jovens que
dentro da FRELIMO querem alguma vez
aceder ao poder, um direito e desejo legítimo,
devem aceitar trabalhar para ele e para
com ele fazer o bem à nação, em lugar de
embarcar nos esquemas dos mais velhos
para a defesa de causas de que eles pouco
ou nenhum conhecimento têm. Moçambique
é de todos. E os excluídos de hoje
não irão desistir de lutar pelos seus direitos.
E esses são a maioria, são os mais pobres,
e têm muito pouco a perder numa sociedade
tão empobrecida como a nossa.
Em termos práticos, é preciso
começar por levantar o embargo à imprensa
no acesso e divulgação dos verdadeiros
resultados que vêm das contagens parciais
pelos órgãos eleitorais nas províncias.
É necessário que a mesma proeminência
aos resultados mais duvidosos que foram
propalados pela Rádio Moçambique e por
uma certa imprensa internacional irresponsável,
se continue a dar a conhecer aos
cidadãos o modo como está a decorrer a
contagem dos votos. É necessário deixar
que os resultados reais sejam eles a falar ao
lado de uma imagem de vitória esmagadora que
com esses resultados se pretendeu condicionar
a opinião pública nacional e internacional
para a manipulação dos resultados destas
Muitas são as dúvidas que alimentadas por
várias irregularidades que ocorreram ao longo
do processo eleitoral persistem e que em caso
do seu não esclarecimento, mais uma vez, à semelhança
do que aconteceu em 1999, deixarão
o cidadão atento sem saber de facto quem
ganhou o actual escrutínio. Senão vejamos:
Sabe-se que cidadãos foram impedidos
de se recensearem ou actualizar os seus dados,
supostamente devido a motivos logísticos.
Sabe-se ainda que são vários os cidadãos que
não puderam votar em virtude dos seus nomes
não constarem nos cadernos disponíveis nos
postos de votação porque estes estavam trocados.
Sabe-se também que houve locais onde
o controlo do processo de votação e de apuramento
foi feito na ausência das outras partes
interessadas, tendo sido feito apenas com
elementos oriundos do partido Frelimo. È
ainda verdade que há zonas onde o número de
editais é de longe superior ao correspondente
às assembleias de voto, fenómeno que é relacionado
com o facto dos próprios dados que
são propalados não darem nenhuma indicação
sobre a origem dos respectivos cadernos,
publicamente. Aliás esse assunto foi dirimido
pouco antes do início da votação entre as duas
alas na CNE, quando a “CNE-Renamo” exigia
a disponibilização dos mapas dos cadernos
eleitorais, o que foi rejeitado
pela maioria, ou seja, a “CNE-Frelimo”.
Perante estes factos todos só a própria
CNE e o seu par, o STAE, podem publicamente
esclarecer o que se passa por forma a se dar
credibilidade as eleições. E mais, os observadores,
tanto nacionais como internacionais,
têm o dever de, longe de correrias na propagação
da justeza e liberdade de votação,
tomarem a peito estas situações anómalas,
para que eles mesmos não venham ser cúmplices
de contendas em Moçambique. (x)