Ideias para Debate

Wednesday, March 29, 2006

Dueto Musical

Depois dos acordes do Doku, o Patricio Langa volta a entrar na música:

A Marrabenta, das cordas que se arrebantam!

Por: Patrício Langa

Ontem, em cumprimento de mais uma rotina, visitei o blog ‘ideiasdebate’ do Machado da Graça, principalmente ansioso em ler a resposta de Cahen a Macamo. Eis que me deparo com um texto, sobre música e identidade, réplica a outro que eu publicara há algumas semanas atrás no blog assim como no cultural do Notícias das quartas. Um texto, quanto a mim, agradável de se lêr fora enviado pelo caro bloguista Daniel Doku. Agradeço, desde já, a oportunidade que o seu comentário me proporciona de retomar o assunto e poder esclarecer as zonas de penumbra nos meus argumentos. Ocorreu-me, logo seguir a leitura do texto do Daniel um comentário, que já não me recordo onde o li, e vai mais ou menos com o seguinte teor. A réplica/crítica é a melhor maneira de valorizar a escrita de outrem. Ao efetuarmos uma crítica, acima de tudo, significa que do nosso precioso tempo dispensamos alguns minutos, horas, dias até para LER o outro, procurar entender o que outro escrevera. Não há, na escrita e no debate de ideias, melhor retribuição que essa. Passado todo este tempo desde que publicara o texto constituiu uma supresa agradável receber as críticas do Daniel Doku. É por essa consideração que retomei os argumentos do meu texto, alguns, para poder entender o Daniel e o seu julgamento aos meus argumentos. Achei, acima de tudo, a sua leitura do meu texto bastante cuidadosa e a sua crítica bem comedida. Esta, por isso, de parabens. Passemos, então, ao que interessa retorquir, ainda, no que tentei argumentar no debate sobre a música e identidade.

De todas as questões colocadas pelo Daniel a que mais me intrigou foi a sua qualificação de ‘emotivo’ e ‘inutil’ o meu argumento contra a ideia do ‘desenraizamento’ da música moçambicana. E, é por aí que começo, isso significa que ao responder não irei obdecer a sequência da sua colocação no texto.

Não vejo nada de ‘emotivo’ e ‘inutil’ no meu argumento, como sugere quando ao retorquir sustenta que o uso da palavra RAIZ, para identificar um género ou estílo de música, é uma figura de retórica. Concordo, consigo na classificação da comparação como sendo figura retórica. Discordo, porém, totalmente do sentido em que é essa figura é empregue e consequentemente do argumento que procura sustentar. Tentarei, no que se segue, dizer por que razão ao longo do texto, se me quiser acompanhar. Como suponho que irá, então, aí vai.

Emotivo, inutil, irrelevante e até instintivo é a natureza (qualidade) do debate sobre a música produzida em Moçambique. É emotivo, passe a redundância, justamente por apelar a um argumento emocional, isto é, aos sentimentos de pertença ou não a uma nação. Instintivo, porque creio fazer pouca questão da avaliação da plausibilidade desses argumentos emocionais. É inútil, acrescento, e tendencioso por que tende a desqualificar a aqueles a quem que não andam a busca de RAIZES mais de AZAS para voar mais alto(ritmos locais músicas globais). Isto parece circular, mais não é. A inutilidade reside, para mim, na resistência em apresentar os mesmos argumentos a mais de 10 anos, mesmo que a própria experiência quotidiana da música no país se rebele contra esses argumentos de ‘vocação essencialista’ para parafrasear Noa. E, por isso, insisto.

Quando se diz, por exemplo: os que não cantam música de RAIZ - sem se dizer que bicho é esse – sugere-se uma conclusão sem apresentar premissas que a sustentem. A conclusão que se sugere é que existe música de RAIZ. E como, ‘todo mundo acha’, o que é de ‘RAIZ’ deve ser defendido, senão morre, como sugere o próprio Daniel no seu texto, porque é ‘nosso’, apela-se a sentimentos nacionais, regioniais de pertença para justicar um mal entendido ou no mínimo algo ainda difuso. O que é musica de RAIZ-moçambicana- insisto? Argumentos apelativos da tradição ou retorno a RAIZ aos Jovens ‘perdidos’, americanizados são os exemplos recorrentes arrolados quando se quer dizer o que ‘e de RAIZ. Há uma linguagem tendenciosa para desqualificar essa música considerada não ‘enraizada’. É por essa razão que caricaturei, acho que sem nenhum exagero nisso, usando os termos profano e sagrado para cada um dos lados. Sagrado é o ‘nosso’, o de ‘RAIZ’ a ‘tradição’, a ‘nossa cultura’ que não devia ser infestada pelas impurezas do profano, do ‘outro’ seja ele americano ou Sul- Africano, que a deformam.

Não é meu enfoque como sugere o Daniel o debate do ‘valor cultural da música’, neglegenciando deste modo outros valores. É justamente o contrário, o que procuro fazer. Não reduzir ao valor cultural da música- principalmente quando este depende da existência de algo essencial naquela- os parâmetros para definir outros valores, por exemplo estético ou o da pertença a uma nação. Censura é dizer que o que não é de RAIZ, não é agradável, não é moçambicano. Isso não é o que faço no meu texto, pelo menos, de forma consciente e intencional. Reclamo, isso sim, espaço para a diferença, para a abertura ao mundo- e se quiserdes para o profano.

Se é imprudente, ao bom senso do Daniel, usar a dicotomia sagrado e profano para qualificar e classifcar os ‘estilos’ de música preferidos e não preferidos por aqueles a quem o meu interlucutor sai em defesa, não é nada decente ou prudente jogar para o lixo o trabalho de muitos músicos (talvez a maioria) que não se enquadra nos padrões ‘essencialistas’ de definição do que é música moçambicana de RAIZ.

Contudo a minha intenção não era retribuir com a mesma moeda, tipo quem com ferro fere com ferro é ferido. Nada disso. Pelo contrário, procuro, isso sim, é chamar atenção para o modo como a articulação instintiva de ‘maus’ argumentos pode resultar na desqulificação do trabalho, alguns até muito mais criativos do que os considerados de RAIZ, dos outros.

Sobre o mal entendido entre ‘Essência’ e ‘Raiz’.

Sob o pretesto de que confundo o significado de ‘Essencia’ e ‘Raiz’, o Daniel sustenta a conclusão de que no meu texto sou ‘demasiado crítico de outras opiniões legitimas’, como se essas fossem contrárias ao quadro analítico (...) escolhido’. E sou, mesmo. Mais não pelas razões, nem pelo diagnóstico pelo Daniel apresentado. Primeiro, sobre a confusão entre essência e raíz. Não sei se concordo com os dois significados do termo essência apresentados pelo Daniel. Subscrevo, no entanto, o primeiro sentido. Os outros continuam, também acho, irrelevantes para análise. O segundo parece reproduzir de forma, sofística, camuflada o essencialismo do primeiro sentido. Penso que esse problema deve se a dificuldade que o Daniel tem de enquadrar conceptualmente a MUDANÇA, o processual no seu raciocínio. Se a sua atitude –politicamente correcta - de dizer que admite influências de outros estílos. Parece que o Daniel fica buscando, um ponto seguro, fixo, de ancoragem, como quando fala de “grupo de indispensáveis caracteristicas para se definir um ser ou uma coisa”. Se admite que partilhamos o mesmo quadro analítico- da processualidade - porque fica buscando esse ponto de ancoragem? Provavelmente, a resposta seria só assim poderemos produzir a nossa própria identidade músical, isto é, a nossa música de RAIZ. Mas se é esse o caso, não noto mudança alguma no essencialismo do seu argumento que o diferencie dos que crítico. Por mais incorfortável que isso possa ser, a fusão que os ‘jovens’ fazem com ritmos de outros cantos do mundo não é o problema para o qual ver a música como mutavel e processual é a solução, mais um aspecto central dos contradições da indentidade nacional na música.

“Um grupo indipensável (essencial, queres dizer?) de caracteristicas de um ser ou de uma coisa”, é essencialismo meu caro Daniel, é buscar o ponto de ancoragem. Como se algo, no fundo, lhe perguntasse: em algum lugar, afinal, tem fim esta fluidez? Lá, nesse lugar, definiria o que é x ou y; neste caso o que é música moçambicana de RAIZ. Digamos, por exemplo, as três notas que ouvi uma vez um amigo sugerir que são o que define a marrabenta. Retirando-lhe ou acrescentando-lhe o que se quiser, devem sobrar três notas que definem a marrabenta como marrabenta. Isso é essencialismo puro, meu caro. A sua citação do Sociologo Português é bem vinda aqui! ‘Quem procura encontra, diz o ditado polular’ o Daniel já encontrou esse ‘grupo indispensável de caracteristicas’ que definem a marrabenta? Talvez existam, e eu não as conheça. A própria história do que é a marrabenta é uma estoria. Dias após a publicação do meu texto pelo cultural do Notícias acompanhei um debate na RDP-africa. No referido debate, alguem defendia que a etimologia da palavra marrabenta, portanto, provinha do arrebentar das cordas das violas de lata improvizadas nas faras dos subúrbios da Lourenço Marques, lá pelos anos 60. Marrabenta, então, não tinha nada a ver com ritmos, sons, etc mais com o quebrar das cordas pela precaridade dos instrumentos com que se faziam as violas. Não importa quanto de verdade existe nisto. É irrelevante para o argumento. Hojé a marrabenta existe como estilo musical, mais o que a define como tal são os sentidos (modernos) que atribuimos a essa mistura de ritmos, sons vozes etc. A marrabenta é uma música MODERNA, portanto, da cidade (do suburbio, isso não importa), com pretenções de ir a ao estúdio de gravação na rádio, lançada em LPs, tocada com guitarras electricas etc, etc.

É única música que tem essa história (trajectória) isso pode fazer com que a chamemos de Moçambicana. Mais esse apenas um momento dessa trajectória e trânsito infinito.

Ao usar o meu exemplo de Bourdieu que o Daniel traz para sustentar a existência da marrabenta, acaba por me atribuir um argumento que na realidade é seu. Esse argumento que se preocupa com o “grupo de indispensáveis caracteristicas”. O debate - superfluo - sobre o que é música de RAIZ moçambicana sucumbe, justamente, na busca desse grupo de caracteristicas indispensáveis. Quer tornar fixo, encontrar essência, em algo que esta em permanente mutação e trânsito. Aí, deve estar uma das razões da sua ‘fraca’ qualidade. Não seja pelo facto de serem músicos a conduzí-lo, mais desenboca no tipo de argumentos emocionais, instintivos e desqualificativos do que outros fazem. É por isso, que no meu texto, sugiro a teorização do debate e que outros intervenientes, como o Daniel, se façam ao debate. Neste sentido, esta até de parebens pela sua intervenção. A breve leitura Bourdieusiana que trago, mais uma vez, é, apenas isso, um simples exemplo de como isso pode ser feito.

O Daniel qualifica de peculiar a passagem em que questiono a plausibilidade da comparação entre a música e raiz. Penso, porém, que se não me fiz claro, o Daniel entendeu mal. A segunda alternativa parece-me mais correcta, até pela explicação que ele adianta para a fraqueza do meu argumento. Quando alguns músicos reclamam a distorção da “musica de RAIZ” moçambicana, fazem-no apelando ao discurso, vago, da globalização como o mal de todos os males. Duas dimensões fundamentais desse fenómeno multidimensional, para ser breve, referem-se as transformações das nossas concepções de tempo e espaço na modernidade. O sociólogo Britanico A. Giddens é um dos que se debruçou sobre este assunto com alguma profundeza. Há muitos outros, claro. Tempo e espaço não significam mais a mesma coisa! Para quê tanta volta. Um exemplo dessa mudança é o que esta acontecer connosco neste debate cybernético. Eu, aqui no Cabo, e o Daniel, suponho em Maputo, debatemos sem nunca nos havermos avistado a identidade da música em tempo recorde e em espaços físicos equi-distantes de cerca de 2417km. Basta um clique, e se o computador do Machado não resolver tirar um descanso, que estará a lêr esta resposta em breve. Com a música ocorre o mesmo. Os ritmos, sons, melódias, arranjos etc, viajam, mudam sofrem influências, hoje de quase todos os cantos, cada vez com maior rapidez que a 10, 20 30 ...anos.

Pois bem, segundo o Daniel, a RAIZ nasce, cresce e, (medra!) eventualmente morre; acrescento no mesmo espaço e talvez num tempo linear determinado. A não ser que se usem adubos ou se modifique geneticamente a planta ou até sofra a violência da intervenção humana ou animal ao arrancá-la da terra. Pois bem, o que é que isso tem a ver com a musica?

O Daniel diria: trata-se de uma metafora! Em nenhum lugar do meu texto interpretei isso, de outra forma, se não como metafora mesmo. Mais uma metafora é uma figura retórica que sugere comparação. Neste caso sem usar o termo comparativo. “A música é como raiz”, é figura de retórica. Mais a figura não é metafórica, pois usa o termo comparativo ‘como’. A música é raiz, pode ser metafórico. A figura retórica, no entanto, que é usada no debate sobre a música em Moçambique é figurativa mais não metafórica. É analógica. Aí reside o mal entendido do Daniel. Um argumento por analogia sugere, a partir de um caso ou exemplo específico para provar que outro caso, semelhante ao primeiro em muitos aspectos, é também semelhante num outro aspecto determinado. Já me explico. As analogias não exigem que o exemplo usado como analogia seja exactamente como o da conclusão. No entanto, as analogias exigem semelhanças relevantes. O crescimento, o desenvolvimento e a eventual morte da raiz, como sugere o Daniel são caracteristicas irrelevantes para o argumento da semelhança entre a música e a raiz. É irrelevante porque a natureza do crescimento, desenvolvimento e morte da raiz não tem nada a ver com aquela da música, no sentido, de ser influenciada por ritmos, sons de outros cantos do mundo. Espaço e tempo, aqui significam outras partes do mundo, outras gerações e não o processo natural do crescimento duma planta. Não é por a raiz crescer, desenvolver e morrer que ela deixa de ser raiz. Pelo contrário, o argumento essencialista sugere que é por a música de RAIZ sofrer influências de outros ritmos, sons, melódias (de outros lugares e tempos) que ela deixa de ser não só de RAIZ, assim como moçambicana.

É por isso que questionando este argumento pergunto: ‘O que faz a música de MC uma música desenraizada?’ Esse argumento não é meu, caro Daniel. É o argumento daqueles que negam a moçambicanidade e por essa via o ‘enraizamento’ da música de alguns e vice-versa. Da minha parte não vejo retórica alguma, no que defendi.

O Daniel tem razão quando diz que não distingo entre, e passo a citar-me: “o que faz uma produção musical – a criação harmónica de ritmos e sons e voz – merecer uma identidade nacional”? E, “Em outras palavras, em que reside a moçambicanidade da música?” Se entendemos que por moçambicanidade referimo-nos a identidade nacional dos moçambicanos, então, não há diferença nenhuma nas questões: são, semânticamente, idênticas! Por isso, não há porque tratá-las como se fossem diferentes.

Já agora, por curiosidade, qual é o grupo social que produz a marrabenta, e que por ser moçambicano a torna moçambicana? Para não me dar a resposta que não espero, espero que não venha falar dos ‘marrongas’, ‘machanganas’, ou coisa parecida. Esses são outra invenção(essencializada e naturalizada) – que só existem no sentido e na medida em que algumas pessoas as tomam em consideração nas suas acções – e assim passam a ter efeitos reais. Mais mesmo isso têm seus limites, senão mecanicamente, produziriamos as identidades que bem nos agradassem a qualquer momento independentemente de quaisquer constrangimentos.

O Daniel diz: “...identificar uma música como música moçambicana significa uma atribuição particular àquela música. É também um efeito significativo e, para merecer esta identificação, aventaria que a música, de entre outras coisas, há-de ter uma forma musical identificável”; Esta circularidade do argumento do Daniel só documenta a dificuldade que enfrenta para satisfazer o desejo ‘essencialista’ da busca do fixo e imutável.

Continua: “Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.”
E o HIP-HOP do Mr.Arsen o que é? É musica americana? O Reggae do Lucky Dube, melhor dos UB40 o que é? A música do irmão do Filipe Nhassavele, não me ocorre agora o nome, radicado na Itália o que é?

O Daniel, sim, é que receia a morte da música, mais do que eu receio o tradicional. Não vejo mal nenhum nas tradições, desde que não sejam articuladas como razão para desqulificar outros, principalmente, quando nem se sabe de que tradição se esta a falar. Isso têm implicações nefastas. Já a morte de ritmos, sons ou música- se é que isso realmente pode ocorrer - que implicações tem? Qual é o mal que há nisso? Quanto a mim todos dias, em cada música nova morre e nasce o novo. Morre e nasce e renasce outra diferente e mais outras e assim por diante. É assim que as coisas são, talvez não como deviam ser para alguns, mais essa é uma questão normativa que não me interessa discutir.

O Daniel diz que só vejo uma questão onde ele identifica duas, e por isso acaba ele mesmo caindo em contradição na busca do pretenso segundo sentido. Se não, vejamos o que sugere: “... Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.”, Americano, não sei como se diz isto “Trindadeano?”, Moçambicano referem-se, quanto a mim, a identidades nacionais. E a seguir o Daniel Diz: “Mas será que tudo isto significa uma reivindicação de que há uma identidade nacional em música? Isto leva-nos à segunda questão. Duvido que haja uma identidade nacional em música”.Pura contradição! Acabou de falar de hip-hop americano, marrabenta moçambicana etc, não são essas identidades nacionais em música, como sugeriu?

Não estou a negar que exista música mocambicana, estou, simplesmente, a tentar dizer que não são apenas, os ritmos e sons que se têm evocado como genuinamente moçambicanos que fazem música moçambicana ser moçambicana. O próprio debate em que nos envolve-mos, agora, é um elemento constitutivo dessa realidade música moçambicana, mais que não consta dos acordes e pautas de nenhum músico ou nenhuma música.

Penso que já respondi no essencial algumas das questões levantadas pelo Daniel. Mais uma vez não só o agradeço por as ter colocado, sinal de ter dedicado parte do seu tempo a tentar entender o meu argumento, mais pela clareza e cordialidade com que o fez. Espero ter, deste modo, contribuido para esclarecer as zonas de penumbra no que respeita ao meu argumento e que isso sirva para o que servir.

Patrício Langa

Cape Town

29 Mar. 06

Monday, March 27, 2006

Música e Identidade

Acedendo ao meu pedido, o Daniel Doku re-enviou-me o seu texto. Aqui vai, antes que haja novo azar:

Música e Identidade: Mais Reflexões

Na sua contribuição para o debate sobre a música produzida em Moçambique (http://ideiasdebate.blogspot.com, 30 de Janeiro de 2006), Patrício Langa reflecte sobre a música e identidade moçambicanas. É uma provocação interessante e até desafia os músicos moçambicanos a tocarem “ritmos e sons locais produzindo música global”. Ele argumenta, e eu concordo, que a presunção de que há um conflito de gerações entre músicos moçambicanos talvez seja de pouca ajuda ao debate. Isto não quer dizer que não haja rivalidade entre eles. Adverte também, e com razão, dos perigos de uma excessiva dependência da tradição relativamente à modernidade. No que se segue, gostaria de explorar alguns dos outros argumentos apresentados por Patrício. Faço-o tendo em vista o objectivo de abrir ainda mais o debate.

Segundo Patrício, “o cerne da questão reside na pretensão de se definir o que é moçambicano na ‘música moçambicana’”. Contudo, e infelizmente, ele não lida directamente com esta questão. Antes, rejeita a descrição de géneros particulares da música moçambicana como “música de raiz”, pois, em sua opinião, tal atribuição, por um lado, apela ao essencialismo em música e, por outro, exclui e menospreza o resto da música moçambicana. “Uma defesa essencialista da tradição musical poderá degenerar em fundamentalismo musical, onde só é sagrado – e, portanto música – aquilo que se considerar de “raiz”, e profano tudo o que não couber nessa categoria”. Quer-me parecer que talvez seja imprudente esta caracterização da resposta de outros.

Diria ainda que, embora o nosso enfoque neste debate seja o valor cultural da música, há que ter em mente outros valores que ela comporta.

Subscrevo o quadro analítico no qual ele situa o debate: conceptualizando-se a identidade, incluindo a moçambicanidade, como um projecto ou “um fenómeno processual, mutável, e, por conseguinte, não fixo”. Contudo, parece-me que Patrício é demasiado crítico de outras opiniões legítimas, como se estas fossem contrárias ao seu quadro analítico escolhido. O mal-entendido, pelo menos em parte, está enraizado numa ligeira confusão semântica relativamente às palavras “essência” e “raiz”.

· Essência

A palavra “essência” tem, pelo menos, dois significados (os outros são irrelevantes à nossa análise). O primeiro é o inerente e imutável carácter de uma coisa (ou classe de coisas) percebido como distinto dos seus atributos ou da sua existência. Reconhece-se esta ideia vulgarmente como essencialista. Parece-me que Patrício depende demasiado deste significado da palavra “essência” na sua avaliação dos comentários de outros.

Explico-me. O segundo significado relevante é o conjunto das qualidades pelas quais um ser ou uma coisa se define, ou seja, pelas quais se caracteriza a sua identidade. Quer dizer, um grupo indispensável de características de um ser ou de uma coisa.

Note-se que, relativamente ao segundo sentido de “essência”, alterar-se-ão as qualidades relevantes consoante as mutações de identidade particular (dado que a identidade não é fixa). Fazemos uma breve referência ao facto de que não há nenhuma razão pela qual não se possa pesquisar tais conjuntos de qualidades. E tal trabalho não implica necessariamente qualquer compromisso com posições essencialistas como Patrício sugere.

Tomemos, por exemplo, um género musical como a Marrabenta. Segundo Patrício, parafraseando o sociólogo francês Pierre Bourdieu, “Falantes de uma língua subscrevem-se num sistema geral; enquanto que o uso individual varia, os indivíduos estão conscientes das fronteiras do sistema que prescreve limites aceitáveis sobre as variações. A produção e a recepção do trabalho criativo de arte musical obedecem à mesma lógica”. Relativamente ao nosso exemplo, parece-me razoável supor que o “sistema geral” inclui a configuração de sons e ritmos, em grande parte perceptual, através da qual conseguimos reconhecer a música particular como Marrabenta. Isto significa que se pode pesquisar tais configurações dos sons e ritmos no segundo significado da palavra “essência”, sem nenhuma pretensa de reivindicação de essência musical no primeiro sentido da palavra.

Portanto, a censura de Patrício: “Buscam-se justificações geográficas e culturalmente essencialistas dos ritmos e sons da música como se estes não estivessem em permanente trânsito” não está adequadamente fundamentada.

· Raiz

Patrício faz perguntas (algumas delas retóricas): “O que é raiz da música? Esta analogia entre a música e a planta, entre um produto social e outro natural é plausível? A raiz da planta com a qual ela se assenta e fixa na terra donde suga os sais minerais para a sua própria existência é fixa, imutável, inerte, pois, caso contrário morreria. A raiz da música obedece ao mesmo princípio? O ‘desenraizamento’ da música faria com que ela morresse do mesmo jeito que a planta? (...) Que característica ou elemento analógico é considerado relevante na comparação entre a música e a planta – a fixação na terra? Só assim entendo o termo “música de raiz”. Música assente na terra, portanto, fixa, imóvel, inerte e imutável. (...) Então, porquê a comparação?”

Esta é uma passagem muito peculiar, penso eu. Pode-se aceitar que a raiz de uma planta é fixa (no restrito sentido de que a posição espacial de uma planta, incluindo as suas raízes é fixa). Todavia, ainda é discutível se a mesma é inerte, e, seguramente, não é imutável, pois, a raiz de uma planta cresce, desenvolve-se, até medra e eventualmente morre. Além disso, a palavra “raiz”, no seu sentido figurativo, simplesmente significa a origem, ou a fonte, de alguma coisa tal como uma prática, uma ideia, uma música, etc. Portanto, as objecções levantadas por Patrício ao emprego metafórico da palavra “raiz” são infundadas.

Se aceitarmos esta figura de retórica, verificaremos que todos os tipos de música têm as suas raízes próprias. Assim, colocar questões como “o que é que faz a música de Mc Roger uma música ‘desenraizada’?”, como Patrício faz, é não só emotivo e inútil, mas também ininteligível. Verificaremos, ainda, que se podem pesquisar as raízes de qualquer música. Só que as raízes de géneros particulares de música estão inextricavelmente ligadas às identidades nacionais, como veremos.

· Identidade da música e identidade em música

Patrício pergunta ainda “o que faz uma produção musical – a criação harmónica de ritmos e sons e voz – merecer uma identidade nacional? Em outras palavras, em que reside a moçambicanidade da música?”. É claro que ele considera estas questões como se fossem uma mesma questão. Na verdade, ele prossegue fazendo pouco caso da suposta única questão, e fá-lo por rejeitar a comparação entre a raiz da planta e a música – a mesma reacção que acima acabámos de pôr de parte como insustentável. Posto isto, que outras respostas se poderão dar às questões levantadas por Patrício?

Como já insinuei, creio que as ditas questões são separadas e distintas. Em primeiro lugar, trata-se da identidade da música. Para uma música particular, esta inclui o tipo de música, quer dizer, o seu género, o grupo social que a produz, etc. Assim, pode-se falar da identidade nacional de uma música específica, por exemplo Marrabenta, como música moçambicana. Num sentido geral, quase trivial e não muito interessante, música moçambicana seria a soma de todas as músicas produzidas pelos moçambicanos. Mas, num sentido mais relevante para a nossa análise, identificar uma música como música moçambicana significa uma atribuição particular àquela música. É também um efeito significativo e, para merecer esta identificação, aventaria que a música, de entre outras coisas, há-de ter uma forma musical identificável; ser razoavelmente distinta das outras formas musicais, quer nacionais quer estrangeiras (embora possa ter influências musicais destas); ter sido desenvolvida e aperfeiçoada pelos moçambicanos; e ser aceite pelo seu público, ou seja, os próprios moçambicanos e os estrangeiros, como tal. Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.

Note-se que esta identidade nacional de uma música específica dá valor cultural àquela música. Ademais, uma vez legitimamente atribuída, não se pode retirar a identidade nacional dessa música particular. O pior é que, se tal música não é preservada, morre. É por esta razão que alguns defendem a preservação de tal música como parte da tradição do povo que a produz. Na verdade, mesmo tal preservação não implica necessariamente nem gosto pela tradição nem resistência à modernidade, nem leva à estagnação em nome da tradição como Patrício receia. Pelo contrário, esta mesma preservação poderia estimular mais criatividade e desenvolvimento da música particular.

Mas será que tudo isto significa uma reivindicação de que há uma identidade nacional em música? Isto leva-nos à segunda questão. Duvido que haja uma identidade nacional em música. Não tenho nenhum argumento forte para esta posição, mas, no meu entender, embora a música seja uma prática cultural que nos ajuda a definir, ou a dar corpo à identidade de um povo, não se pode situar a identidade de um povo na música, pois, fazer isto representa uma tentativa de congelar um aspecto de identidade na música o que não é possível dado que a identidade não é fixa. Assim, quem pesquisa determinada música que já tenha uma identidade nacional pode legitimamente reivindicar dedicar-se a um aspecto de identidade nacional de uma forma que outros músicos, pesquisando, desenvolvendo e tocando música que ainda não merece ou não tem identidade nacional, não podem. Mas isto não significa que haja uma identidade nacional na música a que tal identidade nacional foi atribuída.

Neste contexto, é verdade, como diz Muna comentando o texto de Patrício, que qualquer “música (...) em si nunca será algo profundamente de raiz [moçambicana] porque a semente pode até não ser nossa”. Por mim, diria que o ponto relevante é a importância da contribuição dos moçambicanos para a música particular que, isso sim, leva à atribuição de identidade nacional a tal música.

· Moçambicanização versus Moçambicanidade

No seu artigo, Patrício conceptualiza “a moçambicanidade como um fenómeno processual, mutável, e, por conseguinte, não fixo”. Também no mesmo parágrafo, e parafraseando o filósofo moçambicano Severino Ngoenha relativamente à busca da independência de Moçambique, ele considera-a como um projecto “que se iniciou e que se prolonga até hoje (...) com a introdução, sempre, de novos elementos, daí a preferência de alguns pela expressão moçambicanização ao invés de moçambicanidade, que sugere algo fixo e imutável”. Embora Patrício esteja a indicar a preferência de alguns, apresentá-la só, sem nenhum comentário, introduz uma contradição interna no seu texto, pois a moçambicanidade não pode ser mutável, não fixa, e simultaneamente sugerir algo fixo, imutável. Além disso, a comparação implícita da moçambicanização com a moçambicanidade não explica plenamente a ligação entre elas. Na verdade, são diferentes lados da mesma moeda. No seu artigo “Modernidade, identidade e a cultura de fronteira”, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos apresenta este ponto, bela e sucintamente do seguinte modo: “Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso”. (In Língua Mar: criações e confrontos em português. 1996:143)

· No campo musical em Moçambique

O debate sobre a música produzida em Moçambique é com certeza importante, mas só até certo ponto. Ele ajuda-nos a esclarecer as nossas reflexões, e até a apresentar as nossas sugestões. Mas, no campo musical, tal debate, incluindo as questões etárias e de suposto conflito de gerações, tem uma relevância muito restrita. Aí, o que interessa é o resultado, ou seja, a produção dos músicos. Em Moçambique, e no meu entender, há muitas pessoas de faixas etárias diferentes, tanto indivíduos como grupos, a empenhar-se a produzir música e cujos esforços têm como objectivo realizar potenciais artísticos, nutrir carreiras e, não menos, entreter-nos a nós os restantes.

Neste empreendimento, cada músico há-de enfrentar várias pressões artísticas, de entre preferências e considerações estéticas, imperativos comerciais, influências culturais (tanto moçambicanas como estrangeiras), nível de conteúdo educacional e mesmo comentário social, escolhas de entretenimento, etc. Escusado será dizer, cada artista negoceia esta matriz de pressões à sua própria maneira – alguns mais bem sucedidos do que outros. Na verdade, o valor da música advém mesmo desta negociação.
No que diz respeito a este valor (da música) há, pelo menos, dois aspectos relevantes. Em primeiro lugar, saliente-se a existência, de facto, de diferentes valores a considerar. Por exemplo valor estético, comercial, cultural, entretenimento, educacional, etc. Em segundo lugar, somos nós, o público nacional e estrangeiro como Patrício sugere citando Pierre Bourdieu, que, em última análise, damos a nossa opinião colectiva sobre, e na verdade determinamos, o valor da música produzida em Moçambique. Neste debate trata-se essencialmente do valor cultural da música produzida em Moçambique, e, em relação à atribuição de identidade nacional, as idiossincrasias pessoais são irrelevantes. Em todo o caso, para poder ser bem sucedido, cada tipo de música, quer tradicional quer moderna, merece investimento adequado e suficiente divulgação nos órgãos de comunicação social. Eis o desafio para todos os moçambicanos.

· Conclusão

Em resumo, aventei que se pode afirmar que a música é mutável e sem contradição fala-se das raízes, no sentido metafórico, de um género particular de música relativamente à uma determinada identidade nacional. E que isto não significa necessariamente nem apelo ao essencialismo em música nem exclusão da restante música produzida em Moçambique, nem mesmo resistência à modernidade. Aventei ainda que embora um género particular de música pudesse merecer uma identidade nacional, isto não implica que haja uma identidade nacional naquela música. Reiterei a relação entre moçambicanização e moçambicanidade, ou seja, que estas são diferentes lados da mesma moeda. E chamei a atenção para o facto de que a música tem outros valores além do valor cultural.

Para concluir, acho que há muitos músicos em Moçambique que estão prontos, cheio de boa vontade e são capazes de tocar “ritmos locais produzindo música global” se conseguirem, no mínimo, apoio em termos de investimento adequado e suficiente divulgação da sua música nos órgãos de comunicação social. Será que tal apoio estará em breve disponível?

Daniel Doku, Maputo, 16/03/06

Tuesday, March 21, 2006

Acidente Informático

Mais uma vez estou a atravessar uma crise informática. O meu computador foi para o estaleiro e, com ele, o meu correio electrónico.
Isso faz que não possa colocar um texto, recém recebido, sobre Música e Identidade (estou a citar de memória).
Igualmente não posso responder pessoalmente às cartas que recebi do Michel Cahen e do Elisio Macamo, sobre a polémica à volta do livro do primeiro.
Em relação a este último assunto, queria dizer que a continuação da polémica é bemvinda bo blog desde que respeite os principios mínimos de civilidade.
Em relação ao texto sobre a música pedia o favor de me voltar a ser enviado.
Desculpas a todos mas o homem põe e o computador dispõe.

Machado

Friday, March 17, 2006

Castigos


Circula pela internet um conjunto de fotografias, chocantes, com um texto, falso, dizendo que mostram uma criança iraniana a ser castigada por ter roubado um pão.

Em contrapartida eu trago aqui uma foto, tirada nos Estados Unidos, de uma pobre jovem a ser castigada por ter roubado uma pastilha elástica num supermercado. Este sim um caso verídico a merecer a solidariedade de todos os webnautas.

Machado

Thursday, March 09, 2006

Mangue responde a Macamo

Caro Macamo,

Liberdade, Liberdades

Vi as suas colocações pontuais e sobre elas fiz algumas considerações:

Em relação aos "defeitos de fabricação", estes não estão relacionados à declaração formal dos direitos humanos. Como disse em uma das passagens, estes são nobres, mas a questão está nas restrições concretas; ou seja, nos constrangimentos da sua aplicação prática. Nesse sentido, quando você diz que "...A questão que se coloca é de saber se o usufruto da liberdade depende da existência ou não de certas condições materiais e intelectuais", as evidências mostram que sim, por isso que eu já adiantava que o exercício da liberdade depende da posição relactiva dos envolvidos, de uma sociedade para a outra e, dentro de uma mesma sociedade, de um grupo sobre os outros (assim sucessivamente). Poderia ilustrar em vários cenários, o político, por exemplo: a democracia (e seus preceitos) é, hoje, nobre. Mas, quantas vezes esta não se transforma numa farsa em si caracterizada pelo desinteresse das maiorias ou pela venda de votos, inclusive para os seus adversários naturais se isso implica em benefícios imediatos? No comério: será que Moçambique é tão livre com o seu algodão se o norte tem o "dumping" como ferramenta de controle?

Em suma, há sociedades e dentro das sociedades há uma massa sem voz (em especial nos nossos países, em que, por exemplo, apenas 1 milhão tem emprego formal e a educação mostra-se cada vez mais privada) e cuja inclusão na sociedade civil é apenas morfológica, enquanto que, por outro lado, um clã exerce todas as potencialidades de auto-realização como privilégio social, graças ao monopólio político-económico e cultural.

Creio que há que se prestar atenção nisso, por um lado, porque essa massa tem direito a ser (como sujeitos) e, por outro, para quem é materialista, porque, mais do que qualquer modelo de desenvolvimento, o processo de contaminação da miséria é concreto e mais rápido que qualquer programa de contenção (mesmo na Europa, hoje a braços com a questão da imigração que desencadeia outros processos de hostilidade, como é o caso da xenofobia).

Por fim, o “defeito de fabricação” não está essencialmente na formulação dos direitos universais em si, esses são, como disse, nobres – embora eu ache que eles têm como base jurídica o direito positivo, mas isso não vem ao caso. O “defeito” está no formalismo que esses direitos representam sobre a realidade concreta nas sociedades de democracia tardia, de um modo geral. Por outra, de facto, a Frelimo, já que você citou um caso específico, lutou contra o sistema de opressão português e também lutou para a formação do “homem novo”. Entretanto, o que dizer quando os nobres postulados veem sobre o “novo homem” que nasce, não da superação daquele sistema, mas da aderência a esse mesmo sistema - por falta de qualquer outro testemunho de ascensão e de humanidade ou procurando tirar disso algum proveito –; isto é, quando esses preceitos veem depois que o “novo” indivíduo já se tenha transformado em hospedeiro do colonizador?

Esses postulados serão, portanto, pano novo sobre vestido velho. E, nesses casos, muito do que se tem feito, é, sucessivamente, usar desse pano novo para remendar o vestido velho. É nisso que está o “defeito de fabricação”.

Amor à Liberdade

Antes de mais, gostaria de aclamá-lo pelo fôlego em expor e debater as suas idéias. Especificamente, achei a proposta do tema instigante. Interessante também foi a sua preocupação em reunir dados para sustentar a sua posição. Entretanto, não pude deixar de notar alguns descompassos nessa tentativa, entre eles (gostaria de ter tempo para ponderar sobre todos):

A começar pela personificação da qual você se usa para a síntese (moral da história) da sua opinião. Esta, embora pedagógica, esconde o que há de essencial e inerente a esse exercício. Ou seja, ao recorrermos a essa técnica, além da capacidade da fala, podemos também atribuir ao objecto de personificação a capacidade de dedução e, como é o caso por si citado, a capacidade de intuir. Porém, ao atribuirmos a capacidade intuitiva, essa personificação pode ter qualquer fim; pode-se intuir qualquer coisa. O peixe poderia, por exemplo, intuir perguntar “se o dono da casa não existe, então quem é que muda a água”. Suficiente para declarar a inexistência de “donos de casa”?

Um outro aspecto, que eu acho recorrente nos seus textos, é a discussão de um tema como base em conceitos em si complexos e controversos, a exemplo, por um lado do ateísmo (e o materialismo, embora você não tenha citado diretamente) e, por outro, a religião e Deus (além de abarcar o cristianismo e o Islamismo. Isso não quer dizer que não possam estar juntos, mas aqui estão como recurso para justificar um outro tema, que é o “estado das coisas”, inclusive morais, em Moçambique, em particular). Creio que fica muita coisa, além de que no caso da Religião e Deus, por exemplo, dá-se a impressão de que uma coisa é igual à outra. Por seu turno, você procura mostrar esse “estado das coisas” – que não é muito bom – mas, ao mesmo tempo, dando a impressão de que as religiões são compadres desse mal estar.

Da mesma forma que quase sempre você advoga a necessidade de se fazer uma análise crítica, creio que, com a mistura de conceitos corre-se o risco de ir para o extremo oposto, o da banalidade sociológica, ao não permitir o aprofundamento dos conceitos em si e em análise. Há factos importantes no seu texto, mas isso não explica a relação e a inter-relação entre eles. Ou seja, sei que a idéia não é reflectir criticamente sobre Kant, mas ao trazê-lo para o debate e este ao herdar uma abordagem positiva do homem, isso significa - se fizermos uma analogia com a área médica e mérito seja dada a essa linha de pensamento - que estes fizeram uma dissecação anatômica do homem (dissecação sociológica do homem no caso para essa corrente de pensamento). Aproveitando ainda a analogia, por melhor que seja descrita a anatomia humana, o homem é só isso? O próprio Kant na Crítica da razão pura mostra que não (não é só razão, no caso), rebatendo centralmente e desse modo os excessos de Hume.

Resumindo, sem um pano de fundo, no seu texto não só fica a impressão mas torna-se evidente que para si o problema moral é exclusivamente um problema religioso (não questão religiosa, isso você deixou claro que para si não seria). Esse problema, portanto, não estaria nos excessos das formas de organização humana - em que, por exemplo, se encontra fundamentalismos fruto da abstração do direito ou da própria liberdade – e estaria exclusivamente (além de irracionais) no âmbito religioso.

O não aprofundamento, pelo menos dos conceitos, levam também ao seu entendimento deturpado, a exemplo da questão que você aborda da infalibilidade do papa. Político ou não, esse conceito não está relacionado à impecabilidade ou à perfeição do papa. Isto é, não está unicamente vinculado à semântica do termo. O conceito está associado a um momento bem específico (Isso, entretanto, fez-me lembrar dum juiz que entrou com processo para que até os vizinhos o chamassem de doutor – se calhar até os filhos. Juiz, tudo bem, mas só no tribunal e alguns eventos formais. Em relação à infalibilidade é mais específico ainda. No resto, é papa falível).

Por fim, em uma das suas passagens, você diz que “ O capitalismo ocidental sagrou-se vencedor da contenda com o bloco do leste não tanto porque respeitou a religião, mas sim porque ignorou completamente a religião...”. Não sei se esse facto, embora tenha de algum modo ocorrido, ele tenha sido decisivo na guerra fria, especificamente quanto ao enfraquecimento do leste. Em relação a isso, sugeriria a análise do 11 DE SETEMBRO, só que não de 2001, mas de 1973.

Wednesday, March 08, 2006

Macamo x Cahen

Na caixa de comentários do post Ideias Perigosas e Soberania, esboçou-se um debate entre o Elisio Macamo e o Michel Cahen.
O E. Macamo volta ao assunto mais desenvolvidamente:


CONTRA A INSINUAÇÃO COMO MÉTODO

Elísio Macamo

Introdução

Há sensivelmente dez anos, tive uma discussão com Michel Cahen. Eu criticava-o por abordar as questões moçambicanas de forma bastante normativa que não ajudava a perceber a história do país. Não nos entendemos. Eu reagia a muitos escritos dele em que reinterpretava a história política moçambicana das últimas décadas como uma espécie de degeneração. Ele recusava às pessoas que fizeram a luta armada de libertação nacional qualquer tipo de enraizamento social e cultural em Moçambique, rejeitava a genuidade do seu Marxismo e reduzia os esforços de construção de uma nação a uma economia política de um poder crioulo. Nessa discussão defendi a ideia de que não me parecia do âmbito de uma discussão científica procurar saber se o Marxismo da Frelimo era genuino ou não, e que esse tipo de questionamento só remetia à uma discussão política dificilmente susceptível de ser resolvida. Considerei essa posição normativa e, por isso, problemática. Noto com algum arrepio, na reacção de Michel Cahen à minha referência negativa ao seu livro no artigo “liberdades perigosas e soberania”, que ele mantém esta atitude normativa, sobretudo, quando procura entender a minha posição em termos do meu próprio alinhamento político.

Volvidos dez anos estamos na mesma. Um amigo comum ofereceu-me o seu livro “Os Outros – Um historiador em Moçambique, 1994, P. Schlettwein Publishing, Basileia, 2004”. Escrevi no artigo que desisti da leitura por considerar o livro medíocre para a estatura intelectual de Michel Cahen. Dada também a situação política de Moçambique considero o livro simplesmente irresponsável, embora não queira com isso limitar a liberdade que todos temos de emitir opiniões sobre seja o que for. Acho, contudo, que sobre nós académicos repousa uma grande responsabilidade no que diz respeito à coerência do que dizemos em público. Michel Cahen adverte no livro que se trata apenas de observações que ele fez durante a campanha eleitoral de 1994 junto do líder da Renamo. Pessoalmente, não me oponho a este tipo de procedimento desde o momento que essas impressões sejam apresentadas como tal, e não como se fossem resultados finais de uma investigação acabada. De resto, não há nenhum tipo de livro em que podemos suspender a obrigação de apresentar argumentos lógicos e consistentes. Aceito que jornalistas publiquem livros sobre a África e documentem neles o que não perceberam como se, de facto, estivessem na posse do conhecimento final. Não acho sensato que um académico faça o mesmo. E Michel Cahen fá-lo neste livro.

Inicialmente, queria ler o livro e depois escrever uma recensão crítica na revista que o próprio Michel Cahen dirige (Lusotopie), mas, conforme já indiquei, abandonei a ideia porque desisti da leitura. Tenho profunda admiração pelos que conseguiram ler até ao fim e encontraram o que elogiar, embora para seguir a lógica do próprio Michel Cahen nem um comentário positivo devesse ser feito já que se trata apenas de observações de campo. Fiz a referência que fiz no artigo em questão na expectativa de que o Michel Cahen reagisse e tornasse uma discussão possível fora de um fórum científico como a Lusotopie, onde o tipo de livro que ele escreveu não merece ser discutido. É essa discussão que eu gostaria agora de iniciar com os comentários que faço mais abaixo. Aproveito desde já para apelar aos leitores que não se limitem apenas ao que eu disser, mas que procurem eles próprios formar a sua opinião a partir da leitura do livro se conseguirem, é claro, chegar ao fim.

Três questões

Há vários aspectos problemáticos no livro que vou agrupar em torno de três questões, nomeadamente a interpretação da História de Moçambique, a interpretação da guerra da Renamo e, finalmente, a metodologia. Depois de apresentar as minhas inquietações em relação a estas questões vou também comentar brevemente alguns efeitos nefastos deste tipo de procedimento. Antes de entrar no assunto propriamente dito gostaria ainda de comentar algo que Michel Cahen repete com muita insistência.

Cahen diz que foi o único estrangeiro e académico que teve a coragem de acompanhar de perto a campanha eleitoral do candidato da Renamo. Tem garantido o meu respeito. No mesmo fôlego, contudo, atribui a essa coragem um peso argumentativo muito grande ao sugerir que os outros não o fizeram porque aceitam incondicionalmente a propaganda oficial da Frelimo e não querem por nada deste mundo abandonar o conforto desses preconceitos. A dado passo (na página 6) Cahen fala, inclusivamente, de “análises francesas que romperam com o paradigma do banditismo armado” que teriam, supostamente, uma abordagem completamente diferente (e, presumivelmente, mais equilibrada) das coisas. O facto de um funcionário das Nações Unidas ser desta opinião parece conferir estatuto especial a essa ideia, como se funcionários desta instituição fossem autoridade intelectual em seja o que fosse. Uns são, outros não, e o funcionário referido por Michel Cahen decididamente não é. É mais um que, graças aos problemas moçambicanos, apareceu no nosso país com o direito de setenciar as nossas coisas a coberto da instituição para a qual trabalha.

Acho esta insistência infeliz porque qualquer académico é livre de investigar seja o que for que lhe apetecer e, em princípio, nenhum de nós tem o direito de interpretar essas preferências de forma conspiratória como Michel Cahen o faz. O interesse por entender a Renamo de dentro é legítimo e suficiente para justificar o empreendimento do nosso historiador. Não há, portanto, nenhuma necessidade de fazer insinuações infundadas a respeito das opções dos outros. Em relação ao silêncio dos académicos moçambicanos é preciso também ter em conta o contexto político e material dentro do qual eles até então trabalharam. Para investigar é preciso dinheiro e um espaço intelectual propício que até pelo menos às primeiras eleições gerais não existia da forma como existe hoje. Carlos Serra entregou-se a este trabalho mais tarde quando as condições financeiras e políticas melhoraram.

Sobre as “análises francesas” ocorre-me apenas dizer que se trata, no fundo, de apenas duas pessoas, o próprio Michel Cahen e o malogrado Christian Geffray. Este último, cujo livro “a causa das armas” foi escrito na base de uma investigação encomendada pela Frelimo, não faz, em nenhum momento nesse livro (li-o repetidamente até ao fim na sua versão original) nada parecido com as ilações empiricamente infundadas tiradas por Michel Cahen. Suponho que isso se deva ao facto de Geffray ter realmente feito pesquisa com base em metodologia clara e coerente, mesmo se, pessoalmente, tenha reticências em relação aos instrumentos metodológicos por ele empregues. Apresso-me a dizer que se por “ruptura com o paradigma do banditismo armado” Michel Cahen quer dizer que as “análises francesas” deixaram de supor que a Renamo não agisse politicamente, não encontro no livro de Geffray nenhum argumento que sustente isso. Geffray caracteriza a Renamo como um “corpo social”, um conceito que segundo ele próprio recupera de Claude Meillassoux, mas reconhece na acção de alguns grupos populacionais um pano de fundo político que a Frelimo ignorou. Ao contrário de Cahen, Geffray não me parece fazer nenhuma confusão entre “base social” da Renamo e contexto da violência. De resto, quando analiso a fundo o que o próprio Michel Cahen escreve a respeito do conflito moçambicano não vejo nenhuma ruptura com o tal paradigma. Vejo a indicação de problemas que precisam de ser tomados em consideração, algo que muitos outros académicos (Joseph Hanlon, Otto Roesch, mesmo John Saul!) fizeram. A única ruptura é em termos de alinhamento político, opção que de nenhuma maneira vou negar a seja quem for. Mas de ciência isso não tem muito.

Aproveito, já agora, para fazer um breve comentário à nota da tradutora que aparece na página xi. Com todo o respeito que nutro por ela (Fátima Mendonça), não consigo perceber a que propósito ela pode considerar a tradução deste livro como um tributo ao poeta José Craveirinha. Penso que o desafio intelectual de traduzir uma obra não precisa de mais nenhuma justificação senão mesmo essa. Agora, dizer que “... teria de haver uma explicação racional, para a adesão, de uma boa parte de moçambicanos, a uma guerra tão absurda e desumana, como a que se travou no país, durante esse período” (p.xi) parece-me o cúmulo do alheamento em relação ao que estava a acontecer no país quando aconteceu. A guerra em Moçambique nunca foi “absurda”, nunca ninguém disse isso, nem mesmo o poder; foi desumana, mas todas as guerras são. A guerra foi racional. As explicações, incluindo as que o Michel Cahen proporciona no seu livro, é que continuam a ser absurdas!

Reescrever a história

A primeira questão que transparece logo no livro em discussão é um velho assunto do próprio Michel Cahen, nomeadamente a necessidade de reescrever a história recente de Moçambique. Para esse efeito, ele faz uma oposição entre elites e população e procura identificar uma lógica de acção dos primeiros que faz dos últimos vítimas inocentes de uma vontade de poder quase maquiavélica. Ele vai até ao ponto de aceitar sem reticências aparentes o questionamento, por alguns dos seus interlocutores, dos mitos fundadores da Frelimo. Assim, quando membros do Núcleo Negrófilo de Manica e Sofala consideram a “revolta de 1953” como a causa primeira da luta armada Michel Cahen acrescenta apenas que se tratou de um “protonacionalismo precoce” (não sei em referência a que nação uma vez que o próprio Michel Cahen rejeita a noção de “nação” para Moçambique...) e aceita os termos de reflexão usados pelos seus interlocutores (regionalismo, raça, etnicidade) sem nenhuma preocupação aparente de os integrar numa discussão mais distanciada. A única conclusão analítica e empírica que Michel Cahen tira disso é que há a necessidade de olhar para a história local para se perceber a guerra civil (p.xxv). Sim e não. Sim porque é óbvio que as dinâmicas locais determinam o curso dos acontecimentos e posicionamentos locais; não porque o recurso a eventos passados para legitimar posicionamentos actuais não estabelece necessariamente uma relação de causalidade. É verdade que a tendência natural de um historiador é de encontrar no passado a explicação do presente, sobretudo um historiador normativamente motivado. Mas é insuficiente.

Há nos trabalhos de Michel Cahen sobre Moçambique, e isso transparece nitidamente nas primeiras páginas deste livro, uma dificuldade real em fazer a análise científica sem o impulso de atribuição de culpas pelo que sucede. Ele transforma a historiografia num acto de responsabilização de actores. “J’accuse!”. É assim que tudo quanto correu mal no País se explica pelo protagonismo negativo das elites do sul em conluio com mestiços marxistas (o mesmo topos usado pelo biógrafo de Uria Simango). Esta forma de fazer história é tanto mais estranha quanto a vantagem que as ciências históricas levam sobre as outras disciplinas em ciências sociais consiste justamente na oportunidade que elas nos proporcionam de identificarmos processos mais abrangentes como a construção da nação em contexto colonial e pós-colonial, a formação de Estado em contexto pós-colonial, entre outros grandes assuntos.

Com a preocupação de atribuição de culpas o historiador Michel Cahen priva-nos dessa perspectiva e sugere, sorrateiramente, que os homens políticos da actualidade devem, a todo o custo, fazer o que é “certo”. Ele propõe uma história quase teleológica, o que, de resto, não é de estranhar em alguém que identifica a sua actividade científica com o cumprimento de ideais políticos (socialistas). As páginas do livro que eu li estão repletas de insinuações a este respeito, algo que quando muitas vezes repetido começa a ganhar o estatuto de verdade. Tudo o que correu mal (a ineficiência natural de um Estado fraco em formação) é visto pelo nosso historiador como propositado, como parte de uma agenda política clara e coerente do projecto modernizante da Frelimo. A Frelimo precisava mesmo de ter sido muito poderosa para poder ter feito as coisas de que é acusada por muitos observadores que olham apenas para a superfície.

Na página xv, por exemplo, quando explica a lógica do seu projecto de “investigação” revela os seus preconceitos em relação à história política de Moçambique. Simplifica a história partindo do pressuposto segundo o qual teria havido “corpos sociais” marginalizados desde a época colonial que, sob o novo regime, se tinham tornado ainda mais marginais em detrimento de grupos que durante a era colonial já estavam próximos do poder; não sei a que grupos isto se refere, muito menos como um cientista social pode fazer uma afirmação tão pouco diferenciada como esta num espaço difícil de delinear. Escreve que o paradigma autoritário de modernização produziu uma linguagem incompreensível (abaixo o feudalismo!, abaixo o tribalismo!); não sei que matéria tem para dizer isto, pois a única base de sustentação para esta pressuposição é o preconceito em relação às capacidades intelectuais das pessoas; é também a ideia de que a compreensão de um discurso passa pela capacidade de discutir ao nível filosófico certos conceitos; é também a ideia de que as pessoas eram hostis à modernização; o que eu sei daquela época, muito embora fosse muito novo, é que o discurso e projecto da Frelimo foram recebidos por muita gente com muito entusiasmo, que ele correspondia aos anseios de muita gente e que, tal como o Centro de Estudos Africanos muito bem observou na magnífica obra “O mineiro moçambicano”, os desaires sofridos pela Frelimo resultaram justamente da sua incapacidade em responder ao impulso de modernização presente na sociedade. Eu sou neto de régulo e nunca tive os problemas que o Michel Cahen acha que devemos todos ter tido com o projecto modernizante da Frelimo. Continua o nosso historiador escrevendo que o poder reprimiu as religiões e ritos animistas, proibiu a expressão de etnicidades locais, humilhou chefias tradicionais e foi visto pela população (“rapidamente” como ele escreve) como sendo de essência estrangeira “... quando não trazia qualquer progresso social” (p.xv). De que população está a falar? Que “essência estrangeira”? Isto não é projecto de pesquisa. Isto é um manifesto político baseado em afirmações tão gerais que dificilmente podem ser falsificadas. Foi justamente neste ponto que comecei a ter sérias dificuldades em continuar a ler.

Não quero com isto negar a relevância das inquietações que este programa de pesquisa levanta. Quero apenas dizer que para ser objectivo tinha que identificar problemáticas. Que problemáticas são identificadas aqui? Nenhuma, apenas uma lista de afirmações banais que qualquer pessoa faz, incluíndo mesmo membros da Frelimo, sobre o que se passou nos últimos anos. Faz mesmo sentido falar de repressão da religião em Moçambique? Duvido. Faz mesmo sentido falar de proibição de etnicidades locais? Duvido. O que são “etnicidades locais”? O que significa proibi-las? Quem faz essa proibição? Faz mesmo sentido falar de humilhação de chefias tradicionais? Duvido. Faz mesmo sentido falar de essência estrangeira do projecto da Frelimo? Duvido. Faz mesmo sentido falar de falta de progresso social? Duvido. Qual é a problemática aqui? Não vejo nenhuma, apenas a manifestação de preconceitos acerca de processos históricos e sociais que o Michel Cahen tem dificuldades em enquadrar teoricamente.

A guerra

A segunda questão refere-se à natureza do conflito armado em Moçambique. Michel Cahen faz uma observação que me parece pertinente e plausível. Ele constata que a guerra “... [se] transformou numa guerra para o controlo das ‘duas populações’ – a do Estado e a da autarcia” (p.xvii). Já Christian Geffray tinha feito esta sugestão. O grande problema aqui, contudo, é que Michel Cahen parece partir do princípio de que isto foi verdade para todo o país e, sobretudo, para todo o período de guerra. Ora, esta suposição é problemática e está no cerne da fragilidade da forma como ele tenta perceber a violência em Moçambique. Ao partir desta observação não diferenciada acaba por dar à acção da Renamo e de todos quantos se sentiram lesados pela forma de actuação da Frelimo uma coerência que só está nas suposições de Michel Cahen. Ele “inventa”, efectivamente, uma história, a história dos “Outros”, cuja coerência e plausibilidade é essencialmente função de constatações não diferenciadas.

Tal como muitos outros académicos, fiquei surpreendido com o bom desempenho da Renamo nas eleições de 1994. Ao contrário de muitos, contudo, isso não me levou a me interrogar se me tinha enganado em relação à Frelimo ou à Renamo, mas sim a questionar os meus próprios pressupostos em relação ao que eu considero relevante para a acção individual. O bom desempenho da Renamo não sugere, em primeira linha, a questão de saber se ela tinha base social ou não, mas sim o que leva as pessoas a escolher este ou aquele partido quando vão votar. Esta questão continua ainda sem resposta, sendo que Carlos Serra me parece, até aqui, o único investigador que tentou encontrar uma resposta. Perguntar se havia base social ou não sugere já a resposta, é circular e redundante ao mesmo tempo.

Que eu saiba em Moçambique sempre se reclamou acerca da política da Frelimo. Os depoimentos que Michel Cahen recolheu em que várias pessoas fazem relatos de vida pontuados por “injustiças” da Frelimo são característicos de toda a gente em Moçambique, incluindo muitos que são militantes ferrenhos da Frelimo. O meu sonho era estudar medicina. Não o fiz porque o Ministério da Educação mandou-me fazer línguas. Sofri todas as vicissitudes de viver num país onde o poder procura ser totalitário, vivi a arbitrariedade desse poder e embora nunca tenha votado em eleições, se o tivesse feito não era pela Renamo. A questão, portanto, não é tanto de saber se a política da Frelimo alienou as pessoas, mas sim porque certas pessoas preferiram a oposição activa à Frelimo? Porque certas pessoas decidiram votar contra a Frelimo ou na Renamo? A resposta não é, como parece sugerir Michel Cahen, que a Frelimo meteu as pessoas nos campos de reeducação, obrigou as pessoas a viver em aldeias comunais, reprimiu a sua religião e cultura, não trouxe progresso social, etc. A resposta não pode ser essa porque muitas outras pessoas que passaram pelo mesmo votaram na Frelimo. A não ser que Michel Cahen, ao bom estilo marxista, queira acusar as pessoas de “falsa consciência”. A resposta tem que estar nos nossos instrumentos de análise, nas nossas abordagens teóricas, no nosso entendimento do que é fazer ciência. Estas coisas marcam ausência gritante nas páginas que li e uma vez que as principais observações teóricas são aqui feitas não vejo nenhuma razão para supor que a coisa melhore mais adiante. Isto é decepcionante, independentemente de o livro conter observações de campo ou não.

Métodos

A terceira questão é metodológica. Vou-me cingir apenas a algumas observações. Michel Cahen explica como recolhe material. Ele escreve que quase nunca grava as entrevistas, aponta com a maior fidelidade possível o que os seus interlocutores dizem e vai colocando perguntas pertinentes. Cada qual com o seu método. Em princípio não vejo nenhum problema de maior com a opção por este procedimento, embora me preocupe um pouco constatar que Michel Cahen não parece estar consciente dos problemas a ele ligados. As entrevistas que ele reproduz no livro (isto é, nas páginas que li) apresentam problemas metodológicos muito sérios. O principal problema é a forma como são reproduzidas. Nunca está claro se se trata de uma reprodução do que o entrevistado disse, ou se há comentários do entrevistador no meio. Acresce-se a isto o facto de o Michel Cahen não ter incluido as perguntas que colocou – o que é legítimo – mas ao mesmo tempo preocupante, pois dada a normatividade do nosso historiador é de supor que essas perguntas tenham grandemente influenciado a coerência narrativa do que é reproduzido. Pude constatar isso na pergunta sobre o facto de a capital estar no sul, pergunta cujo valor analítico não é aparente, mas acaba sendo estruturante. Em suma, acho que Michel Cahen fez entrevistas normativas em que deu aos seus entrevistandos a oportunidade de contarem a história que ele próprio queria ouvir. De metodologia científica este procedimento tem muito pouco, com todo o respeito pelo Michel Cahen.

Os problemas continuam com as suas notas de rodapé. Estas deviam servir para esclarecer questões factuais e não influenciar a opinião do leitor com opiniões valorativas. Nota 13 (cap. 1, p.3): “Antigo representante em Rabat da Udenamo (...), posteriormente dirigente da Frelimo, um dos raros dirigentes nacionalistas ‘marxistas’ desde o início”. Alguém fica iluminado com esta nota sobre Marcelino dos Santos? Nota 17 (cap. 1, P.3): “Gazenses são, formalmente, os habitantes da região de Gaza e Machungos faz referência a uma importante família. De facto trata-se de clãs próximos do poder. A Renamo denunciou sempre a reconstituição, pela Frelimo, do ‘Império de Gaza’ do início do século”. Alguém fica elucidado sobre regiões, grupos, famílias e história de Moçambique com esta nota? Pode ser que esteja a ser ingénuo, mas não creio que seja realmente possível falar de “clãs próximos do poder” em Moçambique. Há famílias importantes como em qualquer país, mas em Moçambique e muito particularmente na Frelimo, é difícil falar nestes termos. Curiosamente, existem certos grupos religiosos próximos do poder, a saber a Igreja Presbiteriana de Moçambique. Repressão da religião... Os únicos Machungos públicos que conheço são dois: o antigo primeiro ministro e a sua irmã economista, se não estou em erro. Nota 22 (cap. 1, p.4): “Maputo, ficando situado no extremo sul do país, faz muitas vezes figura de anexo sul-africano”. ???? Nota 3 (cap.2, p.6): “Avião militar russo de idade respeitável”. Idem a estupefação. Nota 6 (p.8): “Zanu (...), principal movimento nacionalista do Zimbabwe, hoje no poder, e que a Frelimo ajudou não somente contra os rodesianos, mas também contra a concorrência da Zapu (...) muito ligada à URSS”. Mais uma vez, qual é a utilidade disto? Nota 16 (p.10): “Departamento de prevenção e combate às calamidades naturais: os serviços de luta contra as calamidades naturais, criado aqui à escala provincial, foi criado inicialmente para fazer face aos efeitos das fomes provocadas por secas ou cheias catastróficas. Posteriormente serviu para encaminhar ajudas às vítimas da guerra nas zonas do governo. Dispondo de uma parte da ajuda internacional, foi largamente utilizado para concentrar as populações nas zonas controladas pelo governo. A sua gestão foi manchada por graves problemas de desvios e de corrupção”. Isto é jornalismo puro. Até “catastróficas” é informação útil à compreensão do depoimento. A partir daí é tentativa de ganhar o leitor à opinião contida no depoimento; As regras mínimas de trabalho científico teriam aconselhado, pelo menos, que Michel Cahen escrevesse “suspeita-se que...”, caso contrário devia fundamentar o que escreve mais adiante. Como não acho que seja por desonestidade que Michel Cahen procede desta forma, vejo-me forçado a concluir que é por desrespeito total das regras do trabalho científico. É mediocridade.

Há ainda outros problemas metodológicos que mereceriam maior atenção, mas o comentário já vai longo e não tenho a certeza se o Machado da Graça vai querer reproduzir tudo. Considero profundamente infeliz que Michel Cahen procure, no seu texto, justificar de forma sorrateira, os excessos da Renamo ao mesmo tempo que amplia os excessos da Frelimo. Conclui que o “rapto” é um “facto social”. O que isto quer dizer? Facto social na acepção do seu conterrâneo Durkheim? Facto social no sentido de algo que acontece? Facto social no sentido de algo normal? Bom, por acaso até escreve “O rapto em tempo de guerra é visto, pelos interessados, como um acto absolutamente normal”. O que isto quer dizer mesmo? Normal em relação a quê, quem e em que altura? As pessoas que eu entrevistei em Gaza no âmbito de um trabalho sobre crises e catástrofes nunca viram o rapto como acto absolutamente normal. Viram-no como uma agressão, humilhação e absolutamente perturbante. O trabalho científico diferencia, limita o alcance das observações, é comedido. Escreve que aconselhou o líder da Renamo a dizer na América que o uso de crianças em conflitos armados é normal em África. Sem comentários!

Não sou masoquista

É por estas e várias outras razões que desisti da leitura. Se uma obra se apresenta abertamente como ficção, não tenho problemas em ler até ao fim. É divertido. Mas se ela pretende ser uma contribuição para o nosso conhecimento, então tem que ser mais séria. Este livro do Michel Cahen, pessoa cujo trabalho e empenho respeito bastante, não é sério. Não quero de modo nenhum privar ninguém de o ler, encorajo todo o mundo a fazê-lo e a tirar as suas conclusões. O que me preocupa não é apenas o facto de que o trabalho é fraco. É o facto de que pessoas como Michel Cahen, em virtude de disporem de meios materiais disponibilizados pelos seus países, estão em condições de proporcionar a vários jovens moçambicanos a possibilidade de formação superior. Acho isto bom, mas preocupante porque receio muito pela qualidade desta formação. É interessante notar que muitos dos trabalhos que estão a ser escritos na França, sobretudo em Bordéus – e por estudantes de grande qualidade, diga-se de passagem – são sobre “autoridades tradicionais”. Isto corresponde à preocupação normativa de definir Moçambique de forma essencial como o tradicional e “vernáculo”, e, pior do que isso, esses trabalhos servem apenas para criar uma situação incestuosa: Michel Cahen vai se referir a esses trabalhos e esses trabalhos vão-se referir a Michel Cahen. Fim da citação, verdade confirmada. É vergonhoso.

Quando fiz referência ao livro no artigo “liberdades perigosas e soberania” queria dizer à esfera pública moçambicana que devemos ter a coragem de olhar para a nossa história nos olhos. Devemos ter a coragem de abordar tudo quanto aconteceu de maneira a melhor perspectivar o futuro. Este é um sentimento que já havia exprimido quando escrevi a recensão crítica à biografia de Simango. No meu penúltimo parágrafo escrevi “[A]pesar de todos os problemas aqui apontados o livro de Barnabé Ncomo torna embaraçosamente claro que, muito provavelmente, fomos libertados por canalhas. Nem que só 1 por cento do que vem lá escrito seja verdade. Moçambique, como nação, só se pode reencontrar na sua história. Isso implica que devemos todos trabalhar no sentido de produzir uma versão da história com a qual todos estejamos confortáveis. Sobre os protagonistas principais ainda em vida recai, por isso, uma grande responsabilidade patriótica. Se gostam de Moçambique tanto quanto o seu próprio sacrifício pela sua libertação indica, eles verão de certeza a necessidade imperiosa de esclarecer os cantos obscuros da nossa história. Caso contrário, ficamos reféns da nossa própria história”. O livro de Michel Cahen torna esta necessidade cada vez mais premente. Insinuação não é método e a plausibilidade não se avalia a partir da ousadia. Nós os académicos moçambicanos temos que finalmente nos impormos na definição científica do que são os nossos problemas. Não devemos continuar a deixar isso aos outros sob pena da trivialização dos nossos assuntos.

Tuesday, March 07, 2006

Religião e Liberdade

O Elísio Macamo publicou, há uma semana, no Notícias, o seguinte texto:


Amor à liberdade

Por E. Macamo

Alguém surpreendeu uma vez dois peixinhos numa conversa dentro de um aquário. A conversa já ia muito adiantada, mas deu para ouvir um dos peixes a gritar, exaltado: Se Deus não existe, então quem é que muda a água? Se isto fosse SMS escrevia “(risos)” e continuava para o assunto que realmente me interessa. Na verdade, agora que a poeira parece se estar a pôr sobre a confusão causada pela publicação das caricaturas, talvez fosse bom aproveitar o momento para continuar a reflectir sobre o que significa a vida em sociedade. Não há maneira de nos furtarmos a este debate se de facto estamos comprometidos com Moçambique.

No sábado, mais de duas mil pessoas que professam a religião islâmica marcharam por algumas das ruas de Maputo. Outras estimativas dão conta de números mais elevados. Machado da Graça esteve lá e tirou fotografias. Numa das fotos pode se ver um dístico bastante interessante. Traz os seguintes dizeres: AMAMOS MAIS O NOSSO PROFETA MUHAMMAD S.A.W. DO QUE A NOSSA PRÓPRIA VIDA. Duvido que isto reflicta o verdadeiro sentimento de cada uma das mais de duas mil pessoas que lá estiveram. Mas por uma questão de iniciar o debate – e espero que aqueles que entre os religiosos gostam de pensar estejam dispostos a discutir comigo – vou supor que assim seja. Esta suposição permite-me, desde já, soar sinais de alarme sobre o que a religião significa para algumas pessoas.

Talvez ajude a clarificar as posições se eu disser, agora mesmo, que sou ateu. Isto é, não acredito na existência de nada parecido com Deus, mas respeito o direito que cada pessoa tem de acreditar em seja o que for que lhe permitir dar sentido à sua existência. Este respeito não me obriga, porém, a evitar o diálogo com os que crêem. Na verdade, sendo Moçambique um País plural em termos de crenças, parece-me também um dever cívico interpelar os religiosos, sobretudo quando as suas crenças me parecem comprometer as possibilidades de uma convivência sã entre nós. O respeito e a tolerância não excluem uma atitude crítica. Os dizeres reproduzidos mais acima são passíveis de interpretações que não deixam dormir descansado nenhum moçambicano verdadeiramente comprometido com o processo de criação de uma nacionalidade includente. Essa nacionalidade só é possível com pessoas preparadas a exercer o seu direito de cidadania, cuja expressão mais alta é a razão.

Leio neste dístico uma renúncia preocupante ao dever de raciocinar e um convite à submissão. Pelo que tenho lido, o Islão significa etimologicamente “submissão”. Não é diferente da “obediência” que o Vaticano espera dos seus fiéis. Este sentido de “submissão” é pegado inúmeras vezes por gente no Ocidente para acusar o Islão de promover apenas o instinto de multidão. É a partir desse instinto de multidão que muitos jovens, por exemplo, sucumbem à sedução da violência como meio de demonstrar a sua fé. MAIS QUE A PRÓPRIA VIDA. Não obstante, o Islão não é apenas a submissão à vontade de Alá. Na verdade, essa vontade pode se definir como a procura do sentido do ideal. Isto é, há no fundo desta religião um sentido profundamente ético que torna necessária a discussão deste dístico desconcertante. Islão e muçulmano são palavras que no seu árabe original estão relacionadas com a palavra paz. É talvez neste sentido até que o princípio de “Jihad” – muitas vezes mal interpretado, inclusivamente por alguns clérigos, como o uso indiscriminado de violência em nome da religião – ganha muita relevância para qualquer crente.

Jihad, na verdade, seria esta luta pessoal, interna e profundamente emocional com o fim de alcançar esse objectivo nobre que é a paz. Se não estiver a interpretar mal os vários livros e reflexões que existem sobre o Islão e sobre a religião em geral, então penso que estaria justificado em concluir que o Islão, na sua essência, é algo profundamente individual mas que se constitui como fundamento para a comunidade. É interessante notar que de todas as religiões baseadas em escrituras o Islão é das mais “democráticas” uma vez que não prevê nenhuma intermediação oficiosa entre o crente e Alá: qualquer crente pode oficiar. No Cristianismo só algumas versões do protestantismo é que se aproximam deste modelo.

O problema de qualquer religião baseada na revelação é a fidelidade da escritura. O Cristianismo é, neste sentido, sintomático. Só as várias versões do Evangelho revelam a dimensão do problema. Passei vários meses na Líbia nos anos oitenta e um dos meus interlocutores líbios com quem sempre discutia questões religiosas gostava de chamar a minha atenção para o facto de que o que o anjo Gabriel revelou directamente à Maomé foi decorado por várias pessoas e editado nessa base. A verdadeira história foi bem mais complicada do que isso, tanto mais que em algumas versões do Islão o Profeta era analfabeto e, por isso, teoricamente, incapaz de sancionar o Alcorão. Mas isso é secundário, o que importa é a ideia de que o revelado está à disposição de qualquer crente.

Há algumas diferenças na forma como as religiões lidam com este problema. O Catolicismo preferiu a via de uma burocracia teocrática, cujo expoente máximo foi a Igreja Romana. O Protestantismo, por sua vez, sobretudo pela intervenção de Martinho Lutero, preferiu dar acesso individual à Bíblia a todo o crente como forma de o emancipar da nomenclatura teológica. É assim que no nosso País, por exemplo, as missões protestantes insistiram muito na alfabetização e na tradução da Bíblia como forma de garantir esse acesso individual à revelação. Embora o problema não seja tão agudo no seio do Islão, a abordagem por ele privilegiada é uma mistura. Por um lado, insiste-se na necessidade de fazer decorar o Alcorão e, por outro, existem sábios que têm como tarefa interpretar as leis e normas contidas nessa revelação.

O problema que se coloca para estas religiões é de saber qual é o verdadeiro objecto de fé por parte do crente. É o que a sua consciência lhe diz ou o que o sacerdote ou imam dizem? No seio do Cristianismo esta questão continua a ser discutida com muito vigor. Nos anos oitenta, por exemplo, circulava a ideia de uma autonomia moral em que alguns teólogos depositavam muita fé. Segundo essa ideia, o crente devia apenas responder à sua consciência. Esta ideia contrapunha-se ao dogma da infalibilidade do Papa e da intermediação institucional por parte da Igreja. Mas mesmo a questão do dogma de infalibilidade, portanto a ideia de que o Papa não erra (porque errar é humano... apetece-me dizer com maldade), é histórica e conjuntural. O dogma foi uma solução teológica a um problema burocrático: No primeiro Concílio do Vaticano em 1870 votou-se nesse princípio para permitir que o Papa Pius IX tivesse a última palavra sobre a vontade do Concílio. O que interessa notar aqui é que o dogma impôs a autoridade do Papa num contexto em que este, pelo seu próprio carisma, não era capaz de lograr a obediência dos seus seguidores. Parece-me um mau começo para o próprio princípio de infalibilidade. Não seria despropositado, neste sentido, recordar que esse dogma conduziu a mais uma cisão na Igreja Católica com a criação dos Velhos Católicos.

Teoricamente, no Islão o crente tem a última palavra. Mas na prática a intermediação desempenha um papel muito importante. Em princípio é a consciência que devia orientar o muçulmano, na realidade, contudo, é a obediência à interpretação que certas pessoas fazem do Alcorão. Isto não é necessariamente mau tanto mais que nem todos dispomos das mesmas capacidade intelectuais. Mas a dependência de outrém para se ter acesso a Deus constitui um problema moral de grande envergadura. A história das religiões e, nos últimos tempos, do Islão em particular, tem demonstrado quão perigosa esta dependência pode ser. No passado escravizaram-se negros em resposta, em parte, a uma encíclica papal que os retirava da humanidade; subjugaram-se povos, as suas culturas foram destruídas e eles foram convertidos violentamente em resposta à vontade de Deus transmitida por gente que se julgava com costas quentes junto de Deus. Nos nossos dias, alguns jovens matam indiscriminadamente e outros, entre nós e mais recentemente, assaltam o Jornal Savana em resposta ao que certas pessoas dizem ser o espírito do Alcorão.

É sob este pano de fundo que o dístico em questão me parece preocupante. Na verdade, não é ao Profeta que se ama mais do que a própria vida; é, sim, ao intérprete do Profeta, portanto, ao Sheik e ao Imam que, em muitos casos, privam o crente da sua liberdade de pensar. Os meus receios fundamentam-se também numa distinção semântica extremamente importante que se faz no Islão. Na verdade, os que professam esta religião não aceitam serem chamados de “maometanos”. Eles dizem que o Islão não é como o Cristianismo que venera Cristo. Maomé foi apenas o mensageiro de Alá, o seu último profeta. Eles são muçulmanos, portanto, pessoas que procuram emular o ideal contido nesses ensinamentos. Como, então, nestas circunstâncias “amar mais o Profeta do que a própria vida”? Não teria sido mais coerente, pelo menos teologicamente, dizer “amamos mais Alá do que a própria vida” já que, segundo o que alguns amigos muçulmanos me explicaram, eles devem a vida à Alá?

Existe um momento na história da humanidade que é tido por muitos estudiosos como o momento da emancipação do Homem do obscurantismo religioso. No Ocidente, vai-se mais longe na interpretação do significado deste momento e diz-se que é característicamente judio-cristão. Refiro-me ao iluminismo e ao processo de secularização que ele implicou. Se bem que haja razões fortes para supor que se trate realmente do momento de emancipação, há, contudo, que ter cuidado na avaliação. Muitos pensam que uma das implicações desse processo de secularização é a diminuição de importância do religioso. E quando olham para o que parece ser o ressurgimento do sentimento religioso nos nossos dias – fundamentalismo cristão nos EUA, pentecostalismo no Brasil e em muitas partes de África, e, claro, o integrismo islâmico no mundo – interrogam-se se faz realmente sentido partir mesmo da ideia de que as Luzes nos permitiram dar as costas à religião.

Estas reticências são legítimas, mas podem ser minimizadas. Na verdade, o iluminismo significou a vitória da razão sobre a irracionalidade. Neste sentido, o processo de secularização não implicou necessariamente a diminuição na importância do religioso. A secularização criou condições para que cada indivíduo tomasse uma decisão consciente a favor ou não da religião. A secularização, do ponto de vista ideal, libertou a religião de si própria, devolvendo o sagrado ao seu devido lugar. Ela criou as condições intelectuais e materiais para que cada pessoa soubesse o que estava a fazer ao decidir depositar fé em alguma coisa ou em alguém.

Apoio-me, nesta interpretação, sobre alguns dos filósofos mais sólidos que o mundo conheceu. Refiro-me ao escocês David Hume e ao alemão Immanuel Kant. Embora Hume tivesse muitas reticências em relação ao que, pela experiência, não era passível de comprovação, ele tomou a bondade natural dos Homens como o ponto de partida para a defesa do papel da razão na procura da boa vida. As práticas monásticas de auto-flagelação, celibato, sentimento de culpa e por aí fora ofendiam profundamente o sentido filosófico de Hume. Era às ideias de gente como Cícero, que defendiam o amor à vida e seu usufruto, que ele encontrava elementos para construir a sua ideia de moral. Kant, por sua vez, embora demasiado críptico para quem não tem formação filosófica, defendia ideias semelhantes. Num texto com o título “O que é o Iluminismo?” o filósofo alemão define este momento como a maturidade humana: com o Iluminismo o Homem deixa de depender de outros homens para determinar o que é bom para si e passa a usar a sua própria capacidade de raciocínio para chegar a essas conclusões. Abandona a tutela.

As ideias de Kant são extremamente importantes, mas o espaço não me permite mais do que isto. A sua ideia de um imperativo categórico refere-se exactamente a esta problemática. Nós os seres racionais podemos reconhecer o princípio que está por detrás da lei e orientamos a nossa acção nesse sentido. Esse é o nosso espaço de liberdade por excelência. Não nos portamos bem a fim de alcançarmos um determinado objectivo, muitas vezes definido por outras pessoas com suas próprias agendas; portamo-nos bem porque, livres de coerção, reconhecemos o bom pelo que ele vale. E o bom é a nossa razão. Kant tem uma frase famosa que devia ser o ponto de partida para qualquer diálogo entre crentes e não crentes: Saper Aude! (tenham a audácia de procurar o conhecimento!).

Falo de Kant como também poderia falar de muitos eruditos árabes da sua época se tivessem sido tão amplamente difundidos. Suponho que eles também tenham partilhado estas ideias. De resto, diz-se que um dos princípios proferidos pelo Profeta Maomé foi de que a primeira coisa criada por Alá foi o intelecto. Ele não poderia ter dito isto se não tivesse querido que as pessoas pensassem por si próprias e não por intermédio de outros. O vigor intelectual de várias correntes islâmicas prova quão profundamente enraizado na consciência dos muçulmanos estava este princípio. Não podemos esquecer que devemos ao mundo sob influência islâmica avanços excepcionais no domínio da ciência. Esses avanços, atrevo-me a dizer, não teriam sido possíveis com máximas do estilo que estiveram em exibição durante a manifestação de Maputo.

Pessoalmente, não sei se concordo com a ideia de que a religião é a base da moral na sociedade. Duvido bastante. Não encontro em nenhum momento da história formas de convivência pacífica entre os homens na base de uma ordem religiosa. Encontro opressão, servidão e superstição. Os exemplos disto abundam, sobretudo no mundo árabe e muçulmano onde por razões geo-políticas que não são de descurar a religião ainda se encontra manietada. Encontro a instrumentalização da revelação com o fim de legitimar a vontade de poder de algumas pessoas. A queda do murro de Berlim levou alguns analistas a supor que o comunismo tivesse falhado por ter estado contra a religião. Afonso Dhlakama, no nosso País, tem também andado a repetir este equívoco em relação à experiência social do pós-independência.

O capitalismo ocidental sagrou-se vencedor da contenda com o bloco do leste não tanto porque respeitou a religião, mas sim porque ignorou completamente a religião. Quando muito o capitalismo proporcionou à religião contextos para a sua própria emancipação. A religião não pode proporcionar uma base moral à sociedade porque ela, na sua forma institucional, é inimiga da maior liberdade a que o homem tem direito: a liberdade de pensar por si próprio e assumir responsabilidade pelos seus actos. O exemplo mais claro deste efeito insidioso da religião é o dístico içado em Maputo a instar os crentes a confundir a sua vida pessoal com a ideia que alguns clérigos gostariam de transmitir do Profeta Maomé.

Esta interferência na liberdade individual constitui, para mim, um perigo muito grande à possibilidade de convivência sã numa sociedade plural como é a nossa. A liberdade religiosa só faz sentido, em meu entender, se ela é exercida por gente consciente e capaz de assumir responsabilidade pelos seus actos. Quem repete com a multidão que “ama o Profeta S.A.W mais do que a sua própria vida” ainda não atingiu a maturidade que, dentro do espaço democrático que estamos a construir, lhe devia permitir fazer uso das suas faculdades mentais para realmente ser crente. Tem medo da liberdade e procura refúgio na multidão. Levanta um muro entre o amor ao Profeta e o amor à liberdade. Não é diferente do peixe crente que toma os limites da sua ignorância como a premissa que fundamenta a sua ideia de que Deus existe.