Dueto Musical
A Marrabenta, das cordas que se arrebantam!
Por: Patrício Langa
Ontem, em cumprimento de mais uma rotina, visitei o blog ‘ideiasdebate’ do Machado da Graça, principalmente ansioso em ler a resposta de Cahen a Macamo. Eis que me deparo com um texto, sobre música e identidade, réplica a outro que eu publicara há algumas semanas atrás no blog assim como no cultural do Notícias das quartas. Um texto, quanto a mim, agradável de se lêr fora enviado pelo caro bloguista Daniel Doku. Agradeço, desde já, a oportunidade que o seu comentário me proporciona de retomar o assunto e poder esclarecer as zonas de penumbra nos meus argumentos. Ocorreu-me, logo seguir a leitura do texto do Daniel um comentário, que já não me recordo onde o li, e vai mais ou menos com o seguinte teor. A réplica/crítica é a melhor maneira de valorizar a escrita de outrem. Ao efetuarmos uma crítica, acima de tudo, significa que do nosso precioso tempo dispensamos alguns minutos, horas, dias até para LER o outro, procurar entender o que outro escrevera. Não há, na escrita e no debate de ideias, melhor retribuição que essa. Passado todo este tempo desde que publicara o texto constituiu uma supresa agradável receber as críticas do Daniel Doku. É por essa consideração que retomei os argumentos do meu texto, alguns, para poder entender o Daniel e o seu julgamento aos meus argumentos. Achei, acima de tudo, a sua leitura do meu texto bastante cuidadosa e a sua crítica bem comedida. Esta, por isso, de parabens. Passemos, então, ao que interessa retorquir, ainda, no que tentei argumentar no debate sobre a música e identidade.
De todas as questões colocadas pelo Daniel a que mais me intrigou foi a sua qualificação de ‘emotivo’ e ‘inutil’ o meu argumento contra a ideia do ‘desenraizamento’ da música moçambicana. E, é por aí que começo, isso significa que ao responder não irei obdecer a sequência da sua colocação no texto.
Não vejo nada de ‘emotivo’ e ‘inutil’ no meu argumento, como sugere quando ao retorquir sustenta que o uso da palavra RAIZ, para identificar um género ou estílo de música, é uma figura de retórica. Concordo, consigo na classificação da comparação como sendo figura retórica. Discordo, porém, totalmente do sentido em que é essa figura é empregue e consequentemente do argumento que procura sustentar. Tentarei, no que se segue, dizer por que razão ao longo do texto, se me quiser acompanhar. Como suponho que irá, então, aí vai.
Emotivo, inutil, irrelevante e até instintivo é a natureza (qualidade) do debate sobre a música produzida em Moçambique. É emotivo, passe a redundância, justamente por apelar a um argumento emocional, isto é, aos sentimentos de pertença ou não a uma nação. Instintivo, porque creio fazer pouca questão da avaliação da plausibilidade desses argumentos emocionais. É inútil, acrescento, e tendencioso por que tende a desqualificar a aqueles a quem que não andam a busca de RAIZES mais de AZAS para voar mais alto(ritmos locais músicas globais). Isto parece circular, mais não é. A inutilidade reside, para mim, na resistência em apresentar os mesmos argumentos a mais de 10 anos, mesmo que a própria experiência quotidiana da música no país se rebele contra esses argumentos de ‘vocação essencialista’ para parafrasear Noa. E, por isso, insisto.
Quando se diz, por exemplo: os que não cantam música de RAIZ - sem se dizer que bicho é esse – sugere-se uma conclusão sem apresentar premissas que a sustentem. A conclusão que se sugere é que existe música de RAIZ. E como, ‘todo mundo acha’, o que é de ‘RAIZ’ deve ser defendido, senão morre, como sugere o próprio Daniel no seu texto, porque é ‘nosso’, apela-se a sentimentos nacionais, regioniais de pertença para justicar um mal entendido ou no mínimo algo ainda difuso. O que é musica de RAIZ-moçambicana- insisto? Argumentos apelativos da tradição ou retorno a RAIZ aos Jovens ‘perdidos’, americanizados são os exemplos recorrentes arrolados quando se quer dizer o que ‘e de RAIZ. Há uma linguagem tendenciosa para desqualificar essa música considerada não ‘enraizada’. É por essa razão que caricaturei, acho que sem nenhum exagero nisso, usando os termos profano e sagrado para cada um dos lados. Sagrado é o ‘nosso’, o de ‘RAIZ’ a ‘tradição’, a ‘nossa cultura’ que não devia ser infestada pelas impurezas do profano, do ‘outro’ seja ele americano ou Sul- Africano, que a deformam.
Não é meu enfoque como sugere o Daniel o debate do ‘valor cultural da música’, neglegenciando deste modo outros valores. É justamente o contrário, o que procuro fazer. Não reduzir ao valor cultural da música- principalmente quando este depende da existência de algo essencial naquela- os parâmetros para definir outros valores, por exemplo estético ou o da pertença a uma nação. Censura é dizer que o que não é de RAIZ, não é agradável, não é moçambicano. Isso não é o que faço no meu texto, pelo menos, de forma consciente e intencional. Reclamo, isso sim, espaço para a diferença, para a abertura ao mundo- e se quiserdes para o profano.
Se é imprudente, ao bom senso do Daniel, usar a dicotomia sagrado e profano para qualificar e classifcar os ‘estilos’ de música preferidos e não preferidos por aqueles a quem o meu interlucutor sai em defesa, não é nada decente ou prudente jogar para o lixo o trabalho de muitos músicos (talvez a maioria) que não se enquadra nos padrões ‘essencialistas’ de definição do que é música moçambicana de RAIZ.
Contudo a minha intenção não era retribuir com a mesma moeda, tipo quem com ferro fere com ferro é ferido. Nada disso. Pelo contrário, procuro, isso sim, é chamar atenção para o modo como a articulação instintiva de ‘maus’ argumentos pode resultar na desqulificação do trabalho, alguns até muito mais criativos do que os considerados de RAIZ, dos outros.
Sobre o mal entendido entre ‘Essência’ e ‘Raiz’.
Sob o pretesto de que confundo o significado de ‘Essencia’ e ‘Raiz’, o Daniel sustenta a conclusão de que no meu texto sou ‘demasiado crítico de outras opiniões legitimas’, como se essas fossem contrárias ao quadro analítico (...) escolhido’. E sou, mesmo. Mais não pelas razões, nem pelo diagnóstico pelo Daniel apresentado. Primeiro, sobre a confusão entre essência e raíz. Não sei se concordo com os dois significados do termo essência apresentados pelo Daniel. Subscrevo, no entanto, o primeiro sentido. Os outros continuam, também acho, irrelevantes para análise. O segundo parece reproduzir de forma, sofística, camuflada o essencialismo do primeiro sentido. Penso que esse problema deve se a dificuldade que o Daniel tem de enquadrar conceptualmente a MUDANÇA, o processual no seu raciocínio. Se a sua atitude –politicamente correcta - de dizer que admite influências de outros estílos. Parece que o Daniel fica buscando, um ponto seguro, fixo, de ancoragem, como quando fala de “grupo de indispensáveis caracteristicas para se definir um ser ou uma coisa”. Se admite que partilhamos o mesmo quadro analítico- da processualidade - porque fica buscando esse ponto de ancoragem? Provavelmente, a resposta seria só assim poderemos produzir a nossa própria identidade músical, isto é, a nossa música de RAIZ. Mas se é esse o caso, não noto mudança alguma no essencialismo do seu argumento que o diferencie dos que crítico. Por mais incorfortável que isso possa ser, a fusão que os ‘jovens’ fazem com ritmos de outros cantos do mundo não é o problema para o qual ver a música como mutavel e processual é a solução, mais um aspecto central dos contradições da indentidade nacional na música.
“Um grupo indipensável (essencial, queres dizer?) de caracteristicas de um ser ou de uma coisa”, é essencialismo meu caro Daniel, é buscar o ponto de ancoragem. Como se algo, no fundo, lhe perguntasse: em algum lugar, afinal, tem fim esta fluidez? Lá, nesse lugar, definiria o que é x ou y; neste caso o que é música moçambicana de RAIZ. Digamos, por exemplo, as três notas que ouvi uma vez um amigo sugerir que são o que define a marrabenta. Retirando-lhe ou acrescentando-lhe o que se quiser, devem sobrar três notas que definem a marrabenta como marrabenta. Isso é essencialismo puro, meu caro. A sua citação do Sociologo Português é bem vinda aqui! ‘Quem procura encontra, diz o ditado polular’ o Daniel já encontrou esse ‘grupo indispensável de caracteristicas’ que definem a marrabenta? Talvez existam, e eu não as conheça. A própria história do que é a marrabenta é uma estoria. Dias após a publicação do meu texto pelo cultural do Notícias acompanhei um debate na RDP-africa. No referido debate, alguem defendia que a etimologia da palavra marrabenta, portanto, provinha do arrebentar das cordas das violas de lata improvizadas nas faras dos subúrbios da Lourenço Marques, lá pelos anos 60. Marrabenta, então, não tinha nada a ver com ritmos, sons, etc mais com o quebrar das cordas pela precaridade dos instrumentos com que se faziam as violas. Não importa quanto de verdade existe nisto. É irrelevante para o argumento. Hojé a marrabenta existe como estilo musical, mais o que a define como tal são os sentidos (modernos) que atribuimos a essa mistura de ritmos, sons vozes etc. A marrabenta é uma música MODERNA, portanto, da cidade (do suburbio, isso não importa), com pretenções de ir a ao estúdio de gravação na rádio, lançada em LPs, tocada com guitarras electricas etc, etc.
É única música que tem essa história (trajectória) isso pode fazer com que a chamemos de Moçambicana. Mais esse apenas um momento dessa trajectória e trânsito infinito.
Ao usar o meu exemplo de Bourdieu que o Daniel traz para sustentar a existência da marrabenta, acaba por me atribuir um argumento que na realidade é seu. Esse argumento que se preocupa com o “grupo de indispensáveis caracteristicas”. O debate - superfluo - sobre o que é música de RAIZ moçambicana sucumbe, justamente, na busca desse grupo de caracteristicas indispensáveis. Quer tornar fixo, encontrar essência, em algo que esta em permanente mutação e trânsito. Aí, deve estar uma das razões da sua ‘fraca’ qualidade. Não seja pelo facto de serem músicos a conduzí-lo, mais desenboca no tipo de argumentos emocionais, instintivos e desqualificativos do que outros fazem. É por isso, que no meu texto, sugiro a teorização do debate e que outros intervenientes, como o Daniel, se façam ao debate. Neste sentido, esta até de parebens pela sua intervenção. A breve leitura Bourdieusiana que trago, mais uma vez, é, apenas isso, um simples exemplo de como isso pode ser feito.
O Daniel qualifica de peculiar a passagem em que questiono a plausibilidade da comparação entre a música e raiz. Penso, porém, que se não me fiz claro, o Daniel entendeu mal. A segunda alternativa parece-me mais correcta, até pela explicação que ele adianta para a fraqueza do meu argumento. Quando alguns músicos reclamam a distorção da “musica de RAIZ” moçambicana, fazem-no apelando ao discurso, vago, da globalização como o mal de todos os males. Duas dimensões fundamentais desse fenómeno multidimensional, para ser breve, referem-se as transformações das nossas concepções de tempo e espaço na modernidade. O sociólogo Britanico A. Giddens é um dos que se debruçou sobre este assunto com alguma profundeza. Há muitos outros, claro. Tempo e espaço não significam mais a mesma coisa! Para quê tanta volta. Um exemplo dessa mudança é o que esta acontecer connosco neste debate cybernético. Eu, aqui no Cabo, e o Daniel, suponho em Maputo, debatemos sem nunca nos havermos avistado a identidade da música em tempo recorde e em espaços físicos equi-distantes de cerca de 2417km. Basta um clique, e se o computador do Machado não resolver tirar um descanso, que estará a lêr esta resposta em breve. Com a música ocorre o mesmo. Os ritmos, sons, melódias, arranjos etc, viajam, mudam sofrem influências, hoje de quase todos os cantos, cada vez com maior rapidez que a 10, 20 30 ...anos.
Pois bem, segundo o Daniel, a RAIZ nasce, cresce e, (medra!) eventualmente morre; acrescento no mesmo espaço e talvez num tempo linear determinado. A não ser que se usem adubos ou se modifique geneticamente a planta ou até sofra a violência da intervenção humana ou animal ao arrancá-la da terra. Pois bem, o que é que isso tem a ver com a musica?
O Daniel diria: trata-se de uma metafora! Em nenhum lugar do meu texto interpretei isso, de outra forma, se não como metafora mesmo. Mais uma metafora é uma figura retórica que sugere comparação. Neste caso sem usar o termo comparativo. “A música é como raiz”, é figura de retórica. Mais a figura não é metafórica, pois usa o termo comparativo ‘como’. A música é raiz, pode ser metafórico. A figura retórica, no entanto, que é usada no debate sobre a música em Moçambique é figurativa mais não metafórica. É analógica. Aí reside o mal entendido do Daniel. Um argumento por analogia sugere, a partir de um caso ou exemplo específico para provar que outro caso, semelhante ao primeiro em muitos aspectos, é também semelhante num outro aspecto determinado. Já me explico. As analogias não exigem que o exemplo usado como analogia seja exactamente como o da conclusão. No entanto, as analogias exigem semelhanças relevantes. O crescimento, o desenvolvimento e a eventual morte da raiz, como sugere o Daniel são caracteristicas irrelevantes para o argumento da semelhança entre a música e a raiz. É irrelevante porque a natureza do crescimento, desenvolvimento e morte da raiz não tem nada a ver com aquela da música, no sentido, de ser influenciada por ritmos, sons de outros cantos do mundo. Espaço e tempo, aqui significam outras partes do mundo, outras gerações e não o processo natural do crescimento duma planta. Não é por a raiz crescer, desenvolver e morrer que ela deixa de ser raiz. Pelo contrário, o argumento essencialista sugere que é por a música de RAIZ sofrer influências de outros ritmos, sons, melódias (de outros lugares e tempos) que ela deixa de ser não só de RAIZ, assim como moçambicana.
É por isso que questionando este argumento pergunto: ‘O que faz a música de MC uma música desenraizada?’ Esse argumento não é meu, caro Daniel. É o argumento daqueles que negam a moçambicanidade e por essa via o ‘enraizamento’ da música de alguns e vice-versa. Da minha parte não vejo retórica alguma, no que defendi.
O Daniel tem razão quando diz que não distingo entre, e passo a citar-me: “o que faz uma produção musical – a criação harmónica de ritmos e sons e voz – merecer uma identidade nacional”? E, “Em outras palavras, em que reside a moçambicanidade da música?” Se entendemos que por moçambicanidade referimo-nos a identidade nacional dos moçambicanos, então, não há diferença nenhuma nas questões: são, semânticamente, idênticas! Por isso, não há porque tratá-las como se fossem diferentes.
Já agora, por curiosidade, qual é o grupo social que produz a marrabenta, e que por ser moçambicano a torna moçambicana? Para não me dar a resposta que não espero, espero que não venha falar dos ‘marrongas’, ‘machanganas’, ou coisa parecida. Esses são outra invenção(essencializada e naturalizada) – que só existem no sentido e na medida em que algumas pessoas as tomam em consideração nas suas acções – e assim passam a ter efeitos reais. Mais mesmo isso têm seus limites, senão mecanicamente, produziriamos as identidades que bem nos agradassem a qualquer momento independentemente de quaisquer constrangimentos.
O Daniel diz: “...identificar uma música como música moçambicana significa uma atribuição particular àquela música. É também um efeito significativo e, para merecer esta identificação, aventaria que a música, de entre outras coisas, há-de ter uma forma musical identificável”; Esta circularidade do argumento do Daniel só documenta a dificuldade que enfrenta para satisfazer o desejo ‘essencialista’ da busca do fixo e imutável.
Continua: “Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.”
E o HIP-HOP do Mr.Arsen o que é? É musica americana? O Reggae do Lucky Dube, melhor dos UB40 o que é? A música do irmão do Filipe Nhassavele, não me ocorre agora o nome, radicado na Itália o que é?
O Daniel, sim, é que receia a morte da música, mais do que eu receio o tradicional. Não vejo mal nenhum nas tradições, desde que não sejam articuladas como razão para desqulificar outros, principalmente, quando nem se sabe de que tradição se esta a falar. Isso têm implicações nefastas. Já a morte de ritmos, sons ou música- se é que isso realmente pode ocorrer - que implicações tem? Qual é o mal que há nisso? Quanto a mim todos dias, em cada música nova morre e nasce o novo. Morre e nasce e renasce outra diferente e mais outras e assim por diante. É assim que as coisas são, talvez não como deviam ser para alguns, mais essa é uma questão normativa que não me interessa discutir.
O Daniel diz que só vejo uma questão onde ele identifica duas, e por isso acaba ele mesmo caindo em contradição na busca do pretenso segundo sentido. Se não, vejamos o que sugere: “... Assim, o Hip-Hop é música americana, o “Calypso” é música de Trinidade e Tobago e a Marrabenta é música moçambicana, etc.”, Americano, não sei como se diz isto “Trindadeano?”, Moçambicano referem-se, quanto a mim, a identidades nacionais. E a seguir o Daniel Diz: “Mas será que tudo isto significa uma reivindicação de que há uma identidade nacional em música? Isto leva-nos à segunda questão. Duvido que haja uma identidade nacional em música”.Pura contradição! Acabou de falar de hip-hop americano, marrabenta moçambicana etc, não são essas identidades nacionais em música, como sugeriu?
Não estou a negar que exista música mocambicana, estou, simplesmente, a tentar dizer que não são apenas, os ritmos e sons que se têm evocado como genuinamente moçambicanos que fazem música moçambicana ser moçambicana. O próprio debate em que nos envolve-mos, agora, é um elemento constitutivo dessa realidade música moçambicana, mais que não consta dos acordes e pautas de nenhum músico ou nenhuma música.
Penso que já respondi no essencial algumas das questões levantadas pelo Daniel. Mais uma vez não só o agradeço por as ter colocado, sinal de ter dedicado parte do seu tempo a tentar entender o meu argumento, mais pela clareza e cordialidade com que o fez. Espero ter, deste modo, contribuido para esclarecer as zonas de penumbra no que respeita ao meu argumento e que isso sirva para o que servir.
Patrício Langa
Cape Town
29 Mar. 06