Música e Identidade
Ritmos locais e músicas globais: reflexão sobre a música e identidade
Moçambicana
Na última década, talvez mesmo antes, a música produzida em Moçambique tem
sido objecto de um aceso debate sobre a sua identidade. Neste debate, muitas
vezes suscitado pelos órgãos de comunicação social, o cerne da questão
reside na pretensão de se definir o que é moçambicano na “música
moçambicana”. Na verdade, a questão não é assim colocada. O que se tem
colocado como questão é a presumível existência de um conflito de gerações
entre músicos. Pergunta-se até que ponto se pode considerar moçambicana a
música produzida e interpretada por músicos moçambicanos, mesmo quando
compostas por ritmos e sons “estrangeiros”. Buscam-se justificações
geográficas e culturalmente essencialistas dos ritmos e sons da música como
se estes não estivessem em permanente trânsito. Velha e nova geração é a
dicotomia problemática, que se tem usado para distinguir na verdade as duas
alas no debate. Uma – “velha” — que nos seus repertórios canta a Marrabenta,
Mapoico, Makwayela etc e/ou a fusão destes e outros ritmos e sons
considerados “genuinamente” moçambicanos. Em contraposição a “nova”, que
inclui nos seus repertórios ritmos e sons do Hip-Hop “ameri-universalizado”,
do rhythms & blues, vulgo R&B até as bem apreciadas passadas, kizomba, zouk
entre outros. Stewart Sekuma músico e compositor moçambicano já questionou o
seu lugar nessa classificação, uma vez que ele se considera entre as duas
gerações, principalmente, quando o critério de referência das gerações é
etário. Ele que anda pelos quarenta e poucos anos de idade considera-se numa
faixa intermédia. Será a idade o critério adequado para classificar
tendências em termos de estilos e influências musicais? Um jovem de dezoito
anos que canta Marrabenta a que geração pertence? A STV, televisão privada
nacional, no seu programa matinal “Opinião Pública” reeditou este debate
sobre a música moçambicana perfilando músicos convidados que se consideram
representantes das duas gerações. Particularmente, assisti aos últimos
trinta minutos de um deles, em que se fez presente o carismático músico,
Salimo Muhamed, outrora Simião Mazuze, e um jovem músico de nome “Duas
Caras”, do conjunto Estaka Zero. Soube que passaram pelo mesmo programa
outros músicos em edições anteriores tais como José Mucavele e Mc Roger
(Rogério Dinis). Penso que estes dois músicos poderão servir de exemplos
concretos neste debate dotando de conteúdo prático a distinção –
problemática — de gerações. Esta escolha deve-se ao mero facto de, em
ocasiões repetidas e em contextos distintos, os mesmos já se terem assumido
como pertencentes a cada uma das categorias geracionais. Os dois músicos
representam estilos, processos de produção, estratégias de marketing,
trajectórias, maneira de estar na música etc; bem diferentes, se não mesmo
opostas. Na linguagem veiculada no debate o primeiro representaria o que se
designou de “música de raiz” e o segundo, penso, de música “desenraizada”. O
primeiro com mais de quarenta anos de carreira musical e de compositor, com
menos de cinco álbuns, mas provavelmente com um vasto repertório algures não
gravado - pelo menos é o que se diz. O segundo com pouco menos de dez anos
de carreira musical, oito, tem oito Álbuns editados. Dois estilos, como
referi, diferentes de estar na música. Duas ‘traje-histórias’ distintas. Se
olharmos para estas duas figuras, a questão colocada para o debate na STV
sobre o conflito de gerações parece até plausível. Mas, tenho para mim, que
esta questão distorce o aspecto central do debate. O aspecto central como
tem vindo a ser levantado há anos diz respeito a questão identitária como
coloquei no início deste texto. O que é que faz da música de
Mucávele “música de raiz” e, por conseguinte, de “raiz moçambicana?” O
argumento que tem sido apresentado por Mucavele para justificar a
moçambicanidade da sua música, é a sua pesquisa de ritmos e sons cantados
pelo país adentro. É por essa razão que Mucavele intitula-se investigador
da ‘nossa música’. É um argumento forte. Mais bastará para justificar a
exclusão dos que não fazem esse percurso de vestir a camisola de produtores
de musica moçambicana? Os ritmos e sons que se tocam e cantam por toda
extensão territorial do nosso país encontram-se para além do que é hoje,
geopoliticamente, Moçambique. Neste caso, a música produzida em Moçambique
seria moçambizimbabweana, moçambimalawiana, moçambisulafricana e por ai em
diante. Os Mapikos, Makwaelas, etc são cantados e dançados na África do sul,
Malawi entre outros países vizinhos.
Por outro lado, o que é que faz a música de Mc Roger uma
música ‘desenraizada’ e, por conseguinte, música sem raiz moçambicana? Mc
diz que canta Moçambique, que a sua música ajuda a colocar Moçambique no
mapa mundo, não só através das catástrofes cíclicas naturais, e as por nós
próprios provocados como, por exemplo, a que justificou a ‘paternidade da
democracia’, mas pelos aspectos positivos que ainda restam entre nós. As
suas composições musicais estão cheias de evocações passionais ao nosso país
e à sua terra natal, penso que se trata da ilha de Inhaca. Será no ritmo que
a música de Mc perde a raiz da moçambicanidade? Fique claro desde já que não
se trata de uma saída, da minha parte, em defesa da música feita por MC e
companhia. Até porque a sua música não é das minhas preferências. Acho que
falta alguma imaginação nas suas letras, - para baixo, para cima dou-te
daqui, dou-te daqui, só mesmo o MC para achar nessas expressões alguma
criatividade - mas esse é outro assunto que não vem ao caso. Em outras
ocasiões já pude expressar a minha admiração pelo autor de “sambroera” o
mesmo diria em relação aos K10, Masukos, Ghorwane que cantam música
agradabelíssima, mas talvez um terço dos moçambicanos podem entender. A
questão aqui é saber o que faz uma produção musical – a criação harmónica de
ritmos e sons e voz – merecer uma identidade nacional? Em outras palavras,
em quê reside a moçambicanidade da música? O que é raiz da música? Esta
analogia entre a música e a planta, entre um produto social e outro natural
é plausível? A raiz da planta com a qual ela se assenta e fixa na terra
donde suga os sais minerais para a sua própria existência é fixa, imutável,
inerte, pois, caso contrário morreria. A raiz da música obedece ao mesmo
princípio? O “desenraizamento” da música faria com que ele morresse do mesmo
jeito que a planta? Uma analogia requer um exemplo semelhante num aspecto
relevante. Que característica ou elemento analógico é considerado relevante
na comparação entre a música e a planta — a fixação na terra? Só assim
entendo o termo “música de raiz”. Música assente na terra, portanto, fixo,
imóvel, inerte e imutável.
A música, pelo menos, como eu a percebo, é um fenómeno mutável no tempo e no
espaço, não é fixo por raízes. A música viaja, sofre influências de outros
lugares, ritmos e sons são recriados etc. Então, porquê a comparação? Se for
a raiz que determina a moçambicanidade da música então deveria existir,
suponho, também a raiz da moçambicanidade. Os moçambicanos que saíssem de
Moçambique deixariam de sê-lo, mesmo que não o quisessem. Estas questões
remetem para um outro tipo e nível de debate. Um nível teoricamente mais
analítico dos processos identitários constitutivos da moçambicanidade no
geral e da moçambicanidade da música, em particular. O debate sobre a
moçambicanidade, felizmente, já dominou a agenda dos intelectuais
Moçambicanos e já foi objecto de alguma teorização interessante. Essas
teorizações ajudam-nos à livrarmo-nos e a livrar o debate das garras do
senso comum que o tem caracterizado. Os sociólogos, Carlos Serra e Elísio
Macamo, o filósofo Severino Ngoenha, são alguns dos que emprestaram seus
quadros analíticos neste debate sobre a moçambicanidade. Constitui dominador
comum naqueles autores um olhar processual e construtivista das identidades.
Conceptualizando a moçambicanidade como um fenómeno processual, mutável, e,
por conseguinte, não fixo e inerte (Serra e Macamo) e acima de tudo como um
desiderato, um projecto (Ngoenha), que inicia na união de diferentes grupos
de oprimidos na busca pela independência da masmorra colonial. Um projecto
que iniciou e que se prolonga até hoje com a introdução, sempre, de novos
elementos, daí a preferência de alguns pela expressão moçambicanização ao
invés moçambicanidade que sugere algo fixo e imutável.
Teorizar o debate sobre a música
Penso que é chegado o momento, como sugeriu um telespectador no debate da
STV, de emprestar ao debate sobre a moçambicanidade da música um cunho
teórico e analítico para qual, os músicos nem sempre denotam devida
competência. A relação entre música, cultura e identidade moçambicana deve
ser problematizada, pois ela não é estática. As tradições musicais,
culturais e os habitus musicais são permeáveis e receptivos aos estilos,
ritmos e líricas de diversos lugares do mundo, mesmo que elementos de
permanência se verifiquem. Onde andam os nossos críticos de arte
musicológica? Onde andam os sociólogos da cultura? Meu caro amigo F. Meigos,
eis aí matéria prima. Pierre Bourdieu, um dos mais destacados sociólogos do
século XX com uma teoria sociológica da cultura, defendeu que os críticos
deveriam perceber que os produtores do valor do trabalho da arte são
normalmente outros e não os próprios artistas por si. Acrescentaria que este
é mais do que o caso com a música. Conjecturo que no “campo da música”
moçambicana há espaço para lutas classificatórias entre os agentes que
participam e se situam em diferentes posições no campo musical. E nessa
luta, a questão identitária é resgatada como cavalo de batalha. No fundo
trata-se de uma luta pela definição do valor da obra musical numa economia
de bens culturais onde o campo da produção discográfica é que dita as
regras. Uma coisa é, por exemplo, sofrer-se influência de estilos musicais
da china e da cochinchina; e outra coisa bem diferente - para uma sociedade
como a nossa que cultiva o gosto pela tradição e resiste a modernidade - é
absorver a-criticamente valores estéticos de outras tradições. A primeira é
inevitável, a segunda depende muito da capacidade “imaginação musicológica”
de cada um. O primeiro aspecto, - influência de estilos de outras paragens –
ocorre e sempre ocorreu até porque nem depende da nossa vontade colectiva ou
individual. O segundo já é objecto de contestação por aqueles agentes que se
apercebem que as regras que determinam o valor da obra mudam a seu desfavor.
Os agentes novos no campo – “nova geração” – não têm que ser necessariamente
na base do critério etário e tendem a introduzir mudanças nos gostos num
contexto de ‘establishment’ musical. Imaginem se continuássemos a escutar a
Marrabenta ‘xi 60’ tal e qual era produzida na Rádio 2001 daquela época.
Bourdieu sugere uma analogia entre regras que governam a arte e a linguagem.
Falantes de uma língua subscrevem-se num sistema geral; enquanto que o uso
individual varia, os indivíduos estão conscientes das fronteiras do sistema
que prescreve limites aceitáveis sobre as variações. A produção e a recepção
do trabalho criativo de arte musical obedece a mesma lógica. Enquanto os
artistas se preocupam com a individualidade, sua expressão musical deve
permanecer dentro dos sistemas estéticos determinados pela “classe” dos
produtores do valor numa determinada sociedade. Os artistas exercem suas
escolhas dentro do sistema, mesmo quando estão deliberadamente o
subvertendo. No caso de Moçambique, quem são as pessoas que produzem o valor
da obra musical? Acima acabei de sugerir – baseado nas queixas constantes
dos músicos que tenho ouvido pela imprensa – que as discograficas têm uma
influência muito grande nesse aspecto. Aí sim, entendo que as tradições
precisam se defender, pois estão sempre a ser contestadas e por
agentes ‘incompetentes’. Contudo esta defesa da tradição não se deve
confundir com uma pretensa reivindicação de uma essência musical
moçambicana. As tradições musicais podem ser defendidas em seus próprios
termos, justificadas como tendo valor em um universo de valores em
competição. Ninguém é ou deve ser obrigado a gostar de um Mapiko, ou seja,
lá o que for em nome da preservação da tradição. Uma defesa essencialista da
tradição musical poderá degenerar em fundamentalismo musical, onde só é
sagrado – e, portanto música — aquilo que se considerar de “raiz”, e profano
tudo que não couber nessa categoria. A música moçambicana deve se
destradicionalizar. Em outras palavras estou aqui a sugerir que a tradição
da música moçambicana pode ser perfeitamente defendida por meios e moldes
não tradicionais; penso que esse deveria ser o caminho a seguir. Em outras
palavras tocar ritmos e sons locais produzindo música global. Eis o desafio
para os nossos músicos. Acho que não é de raízes que a nossa música precisa
é de asas, para poder voar mais alto.
A todos os amigo/as do blog ideias
Aquele abraço e próspero 2006.
Patrício Langa
26/01/06