Muito obrigado pelos comentários colocados no post Fim de Papo.
Parece ter sido precisa a minha "chicotada psicológica" (como dizem os ligados ao futebol) para que os colaboradores do blog voltassem a aparecer.
É o caso do Muthisse que mandou comentário e texto. Aqui vão:
Caro Machado,
Eu não sei inserir comentários no nosso blog. Tentei-o várias vezes sem sucesso. Esta é a razão que está por trás da ausência de qualquer comentário a três acontecimentos recentes do blog que mexeram muito comigo: i) a tua surpreendente decisão de encerrar o espaço; ii) os comentários de Tivane ao meu último texto e iii) os comentários de um amigo brasileiro, também ao meu último texto.
Relativamente � tua decisão. Imagina as secas cíclicas que acometem o nosso país. Imagina que, por ocasião de um desses estranhos e persistentes fenómenos, minha mãe tivesse decidido fechar a machamba, deixar de cultivar. Eu não estaria aqui a escrever-te estes comentários. Teria simplesmente morrido da falta de alimentos. Considere a ausência de textos como uma daquelas secas cíclicas a que os moçambicanos estão habituados. Não vejo porquê encerrar um espaço que já não te pertence a ti. Tu és apenas o mais velho, o coordenador concentido e eceite por todos. Parece que a maioria de nós desejamos que continues a exercer essa função de coordenador. No nosso espaço que tu meritoriamente criaste.
Quanto aos comentários ao meu último texto prometo-te alguma reacção para breve. O que acontece é que tenho andado com alguns assuntos que não me deixam tempo para reflectir.
No entanto, para consolação, aceite o texto que te envio. É inédito, não foi ainda publicado em qualquer jornal. É relativamente antigo mas penso que pode contribuir para revitalizar a nossa célula de debate.
Um forte abraço
Gabriel Muthisse
Sapatos Sujos e Outras Determinantes da Nossa Pobreza
Por: Gabriel S. Muthisse
Joseph Stiglitz, o antigo economista chefe do Banco Mundial, expressou, em certa ocasião, duras críticas à maneira como o FMI lidou com a crise asiática e a transição Russa. Anders Aslund, um especialista em Rússia no Carnegie Endowment for International Peace, respondeu a estas críticas dizendo na revista The Economist que “sem saber de nada, (Stiglitz) abre a boca para dizer qualquer estupidez que vem à cabeça.” Paul Krugman do MIT também expressou suas reservas quanto à actuação do FMI, tendo inclusivamente ponderado que os economistas daquela instituição “optaram por deitar fora os livros didácticos” frente à crise asiática e a prescrever medidas que só fizeram piorar a situação. A resposta de Michael Musa, economista chefe do FMI, foi que aqueles que acreditam que uma política monetária frouxa teria amenizado a luta dos países atingidos pela crise estão “fumando alguma coisa que não é de todo legal.” Rudiger Dornbusch, também um reputado economista do MIT, criticou Stiglitz, dizendo que “se há uma instituição a ser acusada de ter procedido mal, esta seria o Banco Mundial.” Entretanto, Stiglitz e o antigo presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, sugeriram uma abordagem “holística” para lidar com os problemas do subdesenvolvimento. A proposta de abordagem destes dois conhecidos rostos do Banco Mundial levou o respeitado economista da Universidade de Columbia, Jagdhish Bhagwati, a especular nas páginas do Financial Times sobre o que poderia explicar as falácias e as suposições equivocadas nas quais Wolfensohn e Stiglitz basearam suas ideias. Ele concluiu que talvez tenha sido resultado de “simples ignorância.” T. N. Srinivasan, da Universidade de Yale, foi da mesma opinião, descrevendo as ideias de Wolfensohn e Stiglitz, como “banais e simples clichés”.
Alguém poderá ser tentado a achar que estes debates estejam a opor teóricos neo-marxistas a duros pensadores da escola neo-liberal. Nada seria mais equivocado. Estamos na verdade perante discordâncias entre as pessoas mais respeitadas e influentes da área económica que partilham crenças ideológicas favoráveis em relação a mercado, capital privado, livre comércio e investimento. Os debates revelam o quão complexos são os desafios económicos de desenvolvimento que países como Moçambique devem enfrentar.
Perante ideias tão desencontradas sobre como promover o desenvolvimento, como é que países como o nosso poderão fazer opções seguras de como entrar “a corpo inteiro na modernidade”, como preconiza o escritor Mia Couto na oração de sapiência que fez numa das nossas universidades? Os desafios que enfrentamos têm uma dimensão dantesca. As instituições do sector público não funcionam adequadamente. Muitas, tais como escolas, hospitais ou instituições policiais - que se vêem desnorteadas por uma demanda explosiva de serviços - não possuem, e nunca possuíram, funcionários nem recursos adequados para suprir estas demandas. E para melhorar este funcionamento se requer a identificação dos principais nós de estrangulamento e sua consequente remoção, o que muitas vezes requer avultados recursos. Recursos para disponibilizar serviços públicos em quantidade e qualidade desejadas. A corrupção, por exemplo, ultrapassando as simples questões de moral deveria ser vista, também, na sua condição de termómetro que indicaria possíveis desequilíbrios entre a oferta e a procura de serviços públicos.
O fim do sistema de dominação colonial a partir dos anos 50 deu origem a um optimismo generalizado quanto à possibilidade de que os nossos países superassem rapidamente o seu atraso. De facto, até finais dos anos 70 era patente um crescimento consequente do Produto Interno Bruto dos países africanos e, ao mesmo tempo, era visível uma rápida alteração da estrutura das suas economias, com um incremento apreciável do peso específico da contribuição da indústria transformadora.
Os recursos necessários ao arranque proviriam nomeadamente das exportações crescentes e mais caras, de matérias primas de origem mineral e agrícola, para os países desenvolvidos. O aumento do preço do petróleo e de alguns outros produtos primários nos princípios dos anos 70, à primeira vista, pareceu dar razão a estas esperanças optimistas. A realidade porém revelou-se muitíssimo mais complexa, agravada pela remodelação da estrutura e, mesmo, dos conceitos de gestão económica global dos países desenvolvidos. Com o desenvolvimento técnico-científico inerente a estes países, foi possível encetar-se um processo de uso mais racional dos recursos energéticos e materiais por unidade de produto. Consequentemente, as exportações de matérias primas dos países emergentes baixaram drasticamente. Com o incremento da investigação agrícola reduziram também as necessidades de os países ocidentais importarem produtos agrícolas; surgiram contrariamente, amplas possibilidades de eles exportarem, socorrendo-se da maior eficiência e economicidade das suas herdades.
Adicionalmente, a robotização e informatização permitiram conservar nos países desenvolvidos as produções que anteriormente, devido a questões de vantagem comparativa, eram localizadas nos nossos países. Iniciou-se então, a partir dos princípios dos anos 80, um crescente e imparável processo de marginalização económica e política dos países de África, Ásia e América Latina.
Mia Couto, com a finura a que nos habituou, produziu um conjunto de reflexões a que denominou “Os Sete Sapatos Sujos”, no qual se insurge contra a dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho. Insurge-se ainda contra a generalização entre nós da descrença na possibilidade de mudarmos o nosso destino e, nesse contexto, indaga: O que está a acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de África? Na verdade, a pergunta crucial de Mia Couto é: O que é que nos separa desse futuro que todos queremos?
Pode-se dizer que estas perguntas sistematizam, em grande medida, a busca angustiosa de progresso que os africanos vêm encetando ao longo de séculos. O nosso continente e, em particular, o nosso país procuram identificar o que os separa do futuro radioso há várias gerações. Essa busca ter-se-á intensificado quando a consciência do seu atraso em relação ao resto do mundo começou a cristalizar-se e a tomar forma. As lutas de libertação nacional inseriram-se no contexto dessa procura de um futuro melhor e mais digno para os africanos. Os que se engajaram na experiência revolucionária das décadas 70 e 80 do século passado fizeram-no certamente porque estavam convencidos que, dessa forma, poder-se-ia erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento do nosso país.
A guerra e a conjuntura internacional levaram a um desencanto em relação ao modelo de desenvolvimento socialista que o país vinha seguindo. Esse desencanto levou a uma necessidade urgente de novos paradigmas sobre como organizar a vida económica e política do país. Qualquer ideologia desempenha o importante papel de servir como mecanismo sintetizador de ideias. E qualquer tentativa de sintetizar e sistematizar ideias termina por simplificar e organizar realidades que, muitas vezes, são inacreditavelmente confusas e caóticas. E a complexidade da realidade presente de África e de Moçambique torna reducionistas as respostas que possamos oferecer a muitas das perguntas de Mia Couto.
Houve sempre tentativas para responder a essas perguntas. Por exemplo, as premissas da visão neo-liberal, na década de 80, eram de que as causas do subdesenvolvimento e da estagnação económica em países como o nosso seriam o carácter inadequado, centralizado, populista e terceiro-mundista dos sistemas económicos e políticos dos nossos Estados. Assim, os culpados pelo subdesenvolvimento seríamos, apenas, nós mesmos e jamais o colonialismo, o imperialismo velho ou novo, os oligopólios internacionais, as relações desiguais de troca, o proteccionismo dos países desenvolvidos e das oligarquias vinculadas aos interesses estrangeiros. Esta foi a premissa básica que justificou as medidas de ajustamento estrutural que, no caso do nosso país, começaram a ser implementadas em finais da década de 80.
As recomendações originais que enformaram as medidas de ajustamento estrutural reinaram sem contestação por muito pouco tempo. Alterações nas dinâmicas políticas e económicas internacionais e novas condições internas nos nossos países criaram problemas não previstos pelos proponentes das medidas, originando, assim, a procura de novas respostas. Algumas destas respostas contrariavam dramaticamente as recomendações anteriores. Nossos países aperceberam-se de como metas políticas, que alguns meses antes eram consideradas como indicadores de sucesso do processo de reformas, se estavam a tornar meras pre-condições. Novas metas, mais voláteis, menos tangíveis e, quiçá, mais utópicas foram incluídas na lista do que se considerava o mínimo aceitável para se ter um desempenho económico e político aceitável. Por exemplo, depois de se ter atingido um certo grau de conforto com determinadas ideias e prescrições, um acontecimento repentino, conjugado com o benefício do tempo transcorrido, colocava em dúvida a pertinência dessas prescrições, para além de fazer com que parecessem um tanto tolas. Os novos dados, além de deixar claro a necessidade de mais reformas, mostravam que determinado facto relevante, coisas do tipo “corrupção” ou “instituições fracas”, não havia sido levado em conta.
O neo-liberalismo produziu um conjunto de termos que se tornou, em algum momento dos anos 90, o centro das atenções dos fervilhantes debates entre comentadores políticos, economistas, políticos e formadores de opinião: corrupção, BAILOUTS, BAIL-INS, risco moral, globalização, crony capitalism e o Efeito Tequila. Destes termos, o nosso país elegeu a corrupção como o principal catalisador do debate público. Um debate muitas das vezes eivado de um fervor messiânico, que tende a reduzir os graves problemas de países como o nosso a uma questão moral. Na verdade, a realidade que todos aqueles nomes e conceitos tentavam apreender resultava das muitas surpresas que a implementação das reformas de mercado projectou. Eles servem de poderoso indicador da evolução, nos últimos dez anos, do senso comum sobre as reformas liberalizantes.
O escritor Mia Couto pergunta na sua oração de sapiência, referindo-se à Zâmbia, uma nação que nunca teve guerra (para servir de desculpa ao seu atraso) e com poderosos recursos naturais: De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Que falhou? Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? Remata depois com esta constrangedora comparação: E porque razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?
Mia Couto contou sete sapatos sujos que “necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos”. O tempo novo a que Mia se refere é o tempo do progresso. Aquilo a que ele, em outras passagens da sua Oração de Sapiência chama de modernidade. Mia Couto chama a esse descalçar de sapatos sujos uma nova atitude e enfatiza que se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Só pode estar de parabéns Mia Couto por repetir vezes sem conta que parte da responsabilidade pelo nosso subdesenvolvimento sempre morou dentro de casa e que estamos sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. É bom sempre mostrar este lado da moeda.
Há no entanto outra tentativa de desresponsabilização. E esta é protagonizada pelas elites internacionais para justificarem o falhanço estrondoso das chamadas medidas de ajustamento estrutural. É protagonizado também pelo ocidente no geral para que séculos de colonialismo, escravatura e opressão se apaguem da história. Esse lado da moeda deve ser referido com a mesma insistência. Para que também não fique esquecido e para que os séculos de colonialismo e escravatura não fiquem impunes.
Apresentar o colonialismo como um dos factores determinantes da nossa pobreza não é uma mera desculpa das elites africanas. Na verdade, uma das características mais marcantes do colonialismo foi a institucionalização de um conjunto de mecanismos destinados a inibir o desenvolvimento social, cultural e político dos africanos. Concretamente no que se refere ao desenvolvimento económico, os africanos eram simplesmente impedidos de exercer a actividade empresarial. Como consequência, não houve no período anterior à proclamação das independências nacionais, qualquer processo de acumulação de capital, quer material, quer humano, este último na forma de conhecimentos e habilidades próprias para gerir com sucesso um empreendimento económico. Aquilo a que Mia Couto designa de conjunto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos não nasce por acaso. Está a aparecer na medida historicamente certa, se atendermos por exemplo ao facto de a geração a que pertenço ser a primeira que teve as portas escancaradas para a educação no nosso país.
Mia Couto tem provavelmente razão ao minimizar a importância dos factores económicos no atraso de Moçambique. É no entanto necessário enfatizar que enquanto fortes choques económicos internacionais prevalecerem será difícil concretizar o desiderato do progresso. Não há crescimento sem investimento, e sem crescimento económico não há política nem instituições cívicas ou morais que se sustentem. Ademais, parecem sábias as palavras de James Wolfensohn quando diz que “não podemos adoptar um sistema no qual os aspectos económicos e financeiros são abordados separadamente dos aspectos estruturais, sociais e humanos de um país e vice-versa”. O crescimento económico nem sempre é suficiente para combater a pobreza e, certamente, não é sinónimo de desenvolvimento. Todavia, sem crescimento todas as demais tentativas de combater a pobreza fracassam inexoravelmente.
A utopia que Mia Couto sugere, que adviria do descalçar dos sapatos sujos, aparece com um paradoxo interessante. É que qualquer país capaz de atingir aqueles níveis de perfeição moral já se encontraria entre os países desenvolvidos. Na verdade, a utopia sugerida por Mia Couto não difere da que se encontra contida no actual renascimento das ideias que há algumas décadas atrás eram designadas por “economia de desenvolvimento”. Por exemplo, algumas das ideias que dão conteúdo à abordagem “holística” de James Wolfensohn são similares àquelas discutidas nas décadas de 40 e 50. Discutia-se que o subdesenvolvimento não podia ser detido sem uma abordagem que desse ênfase à importância das questões institucionais, da desigualdade, dos “factores estruturais”, das especificidades culturais e das restrições impostas pelo cenário económico internacional. Uma importante diferença no actual renascimento destas ideias clássicas está no fato de as declarações sobre as questões de desenvolvimento serem invariavelmente precedidas por um prefácio que esclareça a importância de fundamentos macro-económicos estáveis. Depois deste esclarecimento é comum aparecer um conjunto de transformações a serem encetadas na esfera social – governos honestos, um sistema judiciário imparcial, funcionários públicos bem remunerados e preparados, sistemas regulatórios transparentes, fim da corrupção e assim por diante.
O paradoxo é que qualquer país capaz de alcançar exigências tão rigorosas já se encontra entre os países desenvolvidos. Na verdade, o estado utópico que se sugere só pode ser alcançado através de medidas que, de per si, são objectivos utópicos. Estas aspirações não são inválidas. São, apenas, pretensiosas. O desafio que se coloca diante dos nossos países é o de criar agendas que incluem exigências intermédias viáveis e objectivos mais realistas.
Um desenvolvimento acelerado não leva necessariamente a resultados instantâneos. Países em desenvolvimento precisarão de um tempo considerável para colher os benefícios de qualquer política.
Os países em desenvolvimento terão que embarcar num compromisso ideológico compartilhado que emerge de dentro, não imposto de fora. Na ausência de uma ampla base social de sustentação similar àquela que se seguiu à proclamação das nossas independências, a aceitação e a sustentabilidade de qualquer reforma dependerá da manutenção de um alto nível de desempenho que, na maioria dos casos, só pode ser quimérico. Em décadas anteriores, muitos dos nossos países eram dirigidos por regimes autoritários com uma base ideológica forte. Possuíam ainda mecanismos de estados repressivos para sustentar políticas cujos resultados poderiam tardar a chegar. O desafio central para as lideranças dos nossos países é o de alimentar um compromisso amplamente compartilhado com um conjunto de políticas que podem levar anos para dar frutos. A paciência de países em desenvolvimento não será cobrada pela volatilidade da economia global, mas pela volatilidade das inconstantes demandas e prescrições que surgem a cada dia, de dentro e de fora.
As opiniões sobre o que leva um país à prosperidade sempre foram das mais variadas. Os últimos anos parece que viram crescer a variedade e a volatilidade das prescrições políticas e morais produzidas por intelectuais, dentro dos nossos países, e de segmentos da comunidade mundial. A receita para o progresso tem muitos ingredientes e as suas quantidades exactas, misturas e modo de cozinhar não são bem conhecidos. Alcançar a prosperidade é muito mais difícil e leva muito mais tempo do que aquele que a nossa impaciência e a angústia da pobreza recomendam. Esta compreensão é fulcral até para coarctar a acção aventureira de governantes que acreditam que podem vencer a pobreza absoluta correndo sozinhos sem mobilizar os seus colectivos e técnicos, hostilizando-os até.