Desenvolvimento
Gerir o desenvolvimento
Parte 1
Cada época tem as suas ilusões. A ilusão dos nossos tempos é a ideia de desenvolvimento. Uso a noção de ilusão no sentido em que Jean Baudrillard, o sociólogo francês, usou a noção de “simulacro”. Com efeito, tal como o simulacro o desenvolvimento é uma representação fiel de algo que não existe. É verdade que todos nós temos uma ideia mais ou menos convergente do que é o desenvolvimento. Instados podemos até indicar exemplos empíricos. Podemos falar dos famosos índices de desenvolvimento – humanos ou monetários – podemos apontar para as economias, sistemas políticos e sociais de certos países e dizer, com toda a propriedade, que o desenvolvimento é o que eles representam. Mais do que isso, podemos apontar para a nossa condição, para a condição de países que, tal como o nosso, estão a braços com a pobreza material, com falta de confiança no sistema político, com economias desajustadas e dizer, também com propriedade, que eles representam o não-desenvolvimento. Suponho que se use a noção “subdesenvolvimento” por uma questão de optimismo: registam desenvolvimento, mas abaixo do ideal. Prefiro a oposição extrema: não-desenvolvimento.
O desenvolvimento é uma ilusão com consequências. Invariavelmente, essas consequências são, para os nossos países, nefastas. É, pois, sobre essas consequências nefastas que quero reflectir. Não obstante, para não ser totalmente negativo gostaria de orientar a minha reflexão no sentido de identificar espaços de acção e iniciativa para o nosso País. Esse desiderato justifica-se pelo facto de que, ilusão ou não, o desenvolvimento veio para ficar. Não temos outro remédio senão saber lidar com ele. Na verdade, algumas das consequências nefastas desta ilusão adveem não tanto do facto de o desenvolvimento ser, na sua própria natureza, mau. Antes pelo contrário, elas resultam, muitas vezes, da nossa incapacidade de com ele lidar.
A questão que se coloca, evidentemente, é de saber o que significa saber lidar com o desenvolvimento. Saber lidar com o desenvolvimento é saber gerir aqueles que nos querem desenvolver. Estou ansioso por ler a reflexão prometida pelo Maximiano no seu comentário ao texto de Gabriel Muthisse. A ideia de concentrar a nossa atenção no potencial local parece interessante, mas não sei até que ponto toma em consideração o grande constrangimento que a presença do próprio desenvolvimento constitui para todos nós. O problema de iniciativas locais é que têm que disputar espaço com a presença institucional e discursiva da indústria do desenvolvimento.
Para percebermos o significado desta constatação temos que, num primeiro momento, nos debruçar sobre a própria ilusão. A forma mais fácil de fazer isso é ver o desenvolvimento como um argumento, um mau argumento. Com efeito, o desenvolvimento remete-nos para algumas falácias que são constitutivas do tipo de relações que entretemos com os que nos querem bem e nos querem, em virtude disso, ajudar. Para simplificar, concentrar-me-ei em duas falácias que me parecem, de resto, centrais. Na verdade, o desenvolvimento é um argumento de autoridade e de causa falsa.
Parte 2
Desenvolvimento como argumento de autoridade
As cruzadas foram feitas em nome duma fé. A colonização foi feita em nome da civilização. A colectivização soviética foi feita em nome do comunismo. Os campos de reeducação no Moçambique pós-independência foram erigidos em nome da revolução socialista liderada pela vanguarda da aliança operário-camponesa. O terrorismo brutal e hediondo da Renamo foi feito em nome da luta anti-comunista. Fé, civilização, comunismo, revolução socialista e anti-comunismo são conceitos distantes do ponto de vista da sua conjuntura histórica bem como do seu significado. Há, contudo, uma coisa que os une, que os torna faces duma mesma medalha.
Essa coisa é a forte convicção dos que estão por detrás desses conceitos de que toda a gente deve partilhar a sua opinião. Para isso até estão dispostos a usar a violência. De forma muito narcisa essa violência legitima-se por si própria com recurso à justeza dos fins almejados. Um dos mandamentos diz que se não deve matar, mas quando se mata em nome da fé está tudo bem. O comunismo quer a felicidade de cada pessoa, mas se uma pessoa é suficientemente estúpida para não perceber que essa felicidade não reside no individualismo, então tem que ser obrigada a abrir os olhos. A revolução socialista quer a emancipação económica, política e social de cada um de nós, mas só nos termos da aliança operário-camponesa; quem ainda não percebeu isso revela apenas atraso na sua própria educação. Finalmente, o anti-comunismo quer devolver a dignidade arrancada às pessoas pelo comunismo, nem que seja a custo da trivialização da vida humana. Cada um dos exemplos aqui dados é um comentário negativamente crítico à plausibilidade de argumentos de autoridade. Não é porque o argumento faz sentido que ele deve ser aceite, não, é porque quem o defende detém a força necessária para exigir a aquiescência dos outros.
O desenvolvimento é, também, um argumento de autoridade. A necessidade de nos desenvolvermos, de acabarmos com a pobreza absoluta, combater as doenças, dar ensino a todos – portanto, homens, mulheres, crianças, camponeses, citadinos, xangan ou sena – não se nos apresenta como sendo válida pelo facto de assentar em premissas sólidas. Por vezes até porque é assim. Por norma, contudo, a validade de qualquer exortação neste sentido reside na força que certos países, organizações e pessoas singulares têm de nos obrigar a cumprir. Não há, nos nossos dias, pior acusação que se pode fazer à classe política dum país senão a suspeita de que se não queiram desenvolver. Ai do país que se atreve a dar essa impressão. Uma boa parte dos problemas que Robert Mugabe tem – com boa dose de responsabilidade individual – advém justamente da suspeita de que ele está a recusar o desenvolvimento. Nos anos oitenta leu-se com avidez um livro escrito pela africana Axelle Kabou que levantava simplesmente esta suspeita: que tal se a África ela própria estivesse a recusar o desenvolvimento? O interesse que o livro suscitou advinha do facto de que a autora responsabilizava os próprios países africanos pelos problemas que tinham. Kabou precedeu Mia Couto, na sua crítica à nossa tendência de responsabilizar os outros pelos nossos problemas, em quase duas décadas.
A consequência mais nefasta do desenvolvimento como argumento de autoridade é de criar um país que não consegue se erguer e ficar sobre os próprios pés por causa do peso das expectativas que sobre ele recaiem: é proibido ter pobres, toda a gente tem que ter acesso ao ensino, saúde, alimentação, todos os direitos usufruidos pelos cidadãos dos países chamados desenvolvidos têm que ser alargados imediatamente a todos. O verdadeiro sentido do desenvolvimento como argumento de autoridade está mesmo na dificuldade de contrariar as suas intenções. No mesmo momento em que deploro as boas intenções do desenvolvimento tenho que justificar a minha posição. Tenho que esclarecer que não estou contra o combate à pobreza, doença, analfabetismo, má-nutrição e opressão. Procuro simplesmente chamar atenção para o facto de que a forma como estas coisas devem ser realizadas não conduz necessariamente ao desenvolvimento. Deixa o País atolado na lama de expectativas que não pode satisfazer.
Desenvolvimento como argumento da causa falsa
Para poder discutir este assunto recorro ao empiricismo radical do filósofo escocês do século XVIII, David Hume. Retiro desse empiricismo radical a rejeição do argumento causal e retenho, para os meus propósitos aqui, a posição de Hume segundo a qual o único que nos permite estabelecer uma relação causal entre dois fenómenos é a experiência. Dito doutro modo, é a observação da sucessão temporal de dois fenómenos que nos permite dizer que um é a causa de outro. A causalidade em si escapa à nossa observação.
É um pouco com base nesta ideia que a indústria do desenvolvimento estabelece relações causais entre o desenvolvimento, como efeito, e democracia, economia de mercado ou mesmo cristianismo como causas. Como qualquer olhar de relance à História nos pode facilmente mostrar, esta relação é algo coxa. A ideia de que a democracia liberal, a economia de mercado ou mesmo a ética religiosa cristã são condições necessárias e suficientes do desenvolvimento constitui um argumento da causa falsa, pois não há um único exemplo no mundo de países que chegaram onde estão hoje por via da criação consequente dessas condições. A maior parte dos países europeus desenvolveu-se com base em sistemas políticos que só nos últimos sessenta anos – após a Segunda Guerra Mundial – é que se começaram a abrir verdadeiramente. Até muito recentemente, as mulheres não podiam votar na Suíça, muito mais tarde do que a Turquia que foi o primeiro país a introduzir o direito de voto para as mulheres! Muitos dos países que se desenvolveram mais tarde – os tigres asiáticos – fizeram-no na base de sistemas políticos ditactoriais e, para meter sal na ferida, com base em sistemas económicos altamente proteccionistas. O grande cientista social egípcio, Samir Amin, já fez um reparo pertinente sobre o Haiti: no século XVIII, o Haiti tinha uma das economias mais abertas e integradas no sistema mundial, mas nem por isso logrou um desenvolvimento digno de nota.
Pessoalmente, sou a favor da democracia e também duma economia de mercado. Não conheço melhor forma de organização política ou económica e, consequentemente, também social. Isto, contudo, não me compromete de nenhuma maneira com a ideia de que a democracia e a economia de mercado são imprescindíveis para o desenvolvimento. O problema desta ilação, o que faz com que estejamos perante um argumento da causa falsa, é a incapacidade de ver que há muito mais que trava o desenvolvimento do que a falta de vontade de adoptar a democracia liberal e uma economia de mercado. Pior ainda, o não-desenvolvimento pode estar por detrás da nossa incapacidade de ver mérito na democracia e na economia de mercado. A consequência mais nefasta disto pode ser a nossa falta de sensibilidade para o círculo vicioso em que nos encontramos. Despendemos uma parte considerável das nossas energias à procura de bodes expiatórios para um problema que não é propriamente da nossa autoria, muito embora ele constitua uma agregação do que cada um de nós faz no seu dia a dia.
Parte 3
Gerir os que nos desenvolvem
As considerações que acabo de tecer parecem-me importantes para perceber um aspecto muito específico do que tem vindo a acontecer ao País nos últimos vinte anos. O auxílio ao desenvolvimento sugere a ideia de que se parte dum problema claramente definido para uma solução, ou conjunto de soluções, à medida desse problema. Há uma certa circularidade nesta suposição. Se, por exemplo, se diz que o problema do nosso aparelho estatal reside na centralização do processo decisório a solução que se propõe é a descentralização. Todavia, se bem que a descentralização possa, efectivamente, ser a solução do problema da centralização, do ponto de vista analítico ainda não se ganhou nada com essa conclusão. Porque é que o processo decisório é centralizado? Quem tem interesse em que o processo esteja centralizado? Quem tem interesse em que haja descentralização e como é que esse interesse se articula com a necessidade de descentralizar para tornar o processo decisório mais eficiente?
O auxílio ao desenvolvimento evoluiu bastante nos últimos tempos. Duma maneira geral, ele preocupa-se também em responder estas perguntas. Não obstante, a abordagem dominante, aquela que domina as consultorias, a outorgação e concepção de projectos é a que parte duma visão mecânica da problemática: problema conduz à solução. Retira, por assim dizer, o elemento humano e social da equação. Descura o facto de que por volta de problemas e soluções interveem outros factores que desafiam a lógica linear até às últimas consequências. A descentralização pode ser vista por todos como uma boa coisa que é ao mesmo tempo necessária. Os que estavam habituados a dar ordens a partir da “nação” podem também ser dessa opinião, mas perante a perca de importância, influência e mesmo de oportunidades de enriquecimento, conforto e protagonismo podem se sentir tentados a influenciar o processo de descentralização no sentido de preservar as suas regalias. Da mesma forma, ao nível da base – qual é o oposto de “nação”? – a descentralização pode ser vista como uma oportunidade bem vinda também de enriquecer, ter conforto e maior protagonismo. Nenhuma destas constatações quer sugerir automatismos no comportamento das pessoas. Trata-se apenas duma advertência para se prestar mais atenção a outros factores que desempenham um papel importante no sucesso de qualquer análise dum problema e formulação da respectiva solução.
O auxílio ao desenvolvimento faz o que todos nós, no nosso dia a dia, fazemos. Reduzimos a complexidade da realidade social, económica, política e cultural através da formulação de modelos simples dessa realidade. A ideia de que Moçambique tem que se desenvolver porque não é desenvolvido assenta nesse processo de simplificação da realidade. O problema da simplificação, contudo, é que ela pode partir duma apreciação errada da realidade ou então pura e simplesmente fazer deduções inválidas, senão mesmo triviais. Por exemplo, é característico do auxílio ao desenvolvimento dizer coisas como “enquanto não se acabar com a corrupção, o país não vai andar”, “é preciso estabelecer a igualdade de género como precondição para o desenvolvimento do país”, “o acesso à educação é imperioso para o desenvolvimento deste país” e por aí fora. Trata-se de exortações nobres e pertinentes, mas do ponto de vista da acção, daquilo que deve ser feito, o que significam senão a reafirmação do que é óbvio? Que sentido faz uma afirmação do género “Moçambique tem que se desenvolver para acabar com a fome, nudez, miséria, doença, instabilidade política, degradação ambiental, etc.”? Não é o mesmo que dizer “Moçambique tem que se desenvolver para poder ser desenvolvido”? Que sentido faz isso?
O nosso País constrói-se na intersecção entre estas contradições lógicas do auxílio ao desenvolvimento e o que nós fazemos em reacção a elas. Frequentemente, o que nós fazemos costuma ser contraproducente. Pode aqui surgir a tentação de ver nessas coisas contraproducentes justamente a explicação do nosso não-desenvolvimento. A corrupção, por exemplo, é uma reacção racional, ainda que moralmente indesejável, à presença de fundos, externos ou não, cuja utilização não está sujeita a grandes controlos. É verdade que as pessoas corruptas podem, em certas circunstâncias, dificultar os processos de controlo a fim de poderem usar os fundos indevidamente. Não obstante, a corrupção em si não explica o nosso não-desenvolvimento. Até porque em certa medida ela é um dos efeitos, nefasto é verdade, mas efeito de qualquer maneira, da presença do desenvolvimento no sentido institucional do termo.
Os argumentos falaciosos discutidos mais acima manifestam-se no quotidiano das pessoas em forma de instituições – projectos, seminários, programas, organizações, governos – e de pessoas – “experts”, consultores, oficiais de programas, beneficiários, representantes de doadores – que baralham as cartas do tecido social. A reacção das pessoas à presença institucional do desenvolvimento não consiste, por regra, em aderir incondicionalmente à lógica linear que o caracteriza – problema, logo, solução. Embora a aderência seja importante e constitua até a espinha dorsal da retórica developementalista interna, o que mais caracteriza a reacção das pessoas é a análise e aproveitamento do que a presença do desenvolvimento significa ao nível individual. O aproveitamento tanto pode ser bom para o país como não. Para as pessoas envolvidas costuma ser simplesmente bom.
Está em funcionamento aqui algo que podemos chamar de lógica situacional que pode ser colocada em termos de princípio antropológico: as pessoas procuram sempre tirar proveito próprio de situações. Este princípio antropológico é tanto mais presente quanto os mecanismos morais bem como os de controlo coercivo não gozarem de nenhuma ascendência sobre os indivíduos. Não constitui nenhuma fatalidade antropológica roubar seja o que for, faltar o respeito aos bens públicos e aos outros, mas o princípio é fundamental para perceber o que se passa num determinado contexto social.
Tento usar a noção de lógica situacional duma forma neutra, isto é sem nenhum investimento normativo pessoal. Uso-a como uma categoria descritiva e analítica. O problema desta lógica, porém, é que ela tem a tendência de se reproduzir. Dito doutro modo, quanto mais uma determinada lógica situacional se caracteriza pelo aproveitamento, pelos indivíduos, moralmente negativo da sua posição, maior será a tendência de se criarem estruturas normativas e institucionais viradas para o aproveitamento egoísta de situações. A lógica situacional é a mãe de todos os círculos viciosos. Esta constatação torna claro que o desenvolvimento não é nem fácil, nem barato. O desenvolvimento não é a solução de problemas claramente definidos pela indústria do desenvolvimento. O desenvolvimento é, custa reconhecer, o conjunto das suas próprias contradições: é o discurso normativo da integridade, mas também a corrupção; é o crescimento económico, mas também o empobrecimento; é Estado de Direito, mas também a insegurança e a intrasparência dos processos burocráticos.
No dia em que reconhecermos isto, governo e sociedade civil, havemos também de começar a apreciar devidamente o que significa dizer que nos queremos desenvolver. Desenvolvermo-nos é, fundamentalmente, gerir o desenvolvimento tal e qual ele se apresenta no nosso quotidiano. Na verdade, uma parte considerável dos problemas que temos resulta mais da presença do desenvolvimento do que propriamente do nosso não-desenvolvimento.
1 Comments:
Gostei de ler.
By hfm, at 7:39 AM
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