Férias
Machado
Justiça Social e Liberdade. Antípodas ou Categorias Complemetares?
Severino Ngoenha publicou um livro com o título “Os tempos da filosofia” pela chancela da imprensa universitária. José Castiano e Elísio Macamo, cientistas sociais que honram a academia moçambicana têm vindo a expor e analisar o livro no jornal Notícias. Também considero a intervenção de Severino Ngoenha muito importante e acho que merece maior atenção ainda. Este artigo procura reflectir sobre o debate que o livro de Ngoenha propiciou. Pretende contribuir para problematizar o termo “Justiça Social”, que os três cientistas vêm escalpelizando.
Foi José Castiano quem me sugeriu estas reflexões quando, interpretando o filósofo moçambicano, diz-nos que Ngoenha dá-se conta que a Liberdade e Democracia só podem ser sustentados pela Justiça Social. E que (quiçá, este) é o primeiro sinal para um novo paradigma do pensamento e da acção (de Justiça Social) a despontar do libertário e que no pensamento de Ngoenha está subjacente a ligação intrínseca entre a Liberdade, Democracia e a Justiça Social.
Para começar, gostaria de propor um debate em torno do que se convencionou chamar justiça social. O que é justiça social? Quando usamos este termo estaremos a referirmo-nos à justiça no sentido clássico, que significa dar a cada um o que lhe é devido? Ou estaremos a dar ao termo um sentido novo e deturpado, que significa dar a cada pessoa uma parcela igual da produção de todos - ou seja, igualitarismo? Será Justiça social "dar a cada um uma parte proporcionada da renda colectiva, independentemente do comportamento individual", ou sem consideração aos méritos e deméritos de cada um? Ou apenas "segundo suas necessidades", não segundo o seu trabalho, para usar a fórmula marxista "de cada um segundo suas habilidades e a cada um segundo suas necessidades" ?
Do que Ngoenha, Macamo e Castiano obviamente falam é de "justica" num sentido mais lato que significa, num primeiro momento, igualdade de oportunidades e, segundo, sentido de responsabilidade perante os menos afortunados. O argumento deles parece ser o de que só com igualdade de oportunidades e sentido de responsabilidade é que podemos formar uma sociedade baseada no paradigma libertário.
Macamo afirma especificamente que uma sociedade responsável tem que saber equilibrar crescimento e justiça sem, contudo, comprometer o potencial dos que podem voar mais alto. Ele parte deste axioma para afirmar que por detrás da luta contra a pobreza absoluta, por detrás da redução das assimetrias regionais, por detrás da reconciliação com a nossa história, por detrás do combate contra a corrupção, por detrás da preservação da integridade nacional e da nossa soberania, por detrás duma acção política íntegra e transparente está a justiça social como cimento da nossa coerência como nação. Essa coerência não é um fim em si, é apenas um meio através do qual criamos as condições que nos vão permitir realizar a liberdade.
Uma sociedade baseada no paradigma libertário exclui, na formulação destes cientistas sociais, qualquer ideia de igualitarismo, muito em voga na sociedade moçambicana. Ainda recentemente, o Savana cita o Ministro Munguambe, dos Transportes e Comunicações, a lastimar o facto de o seu antecessor não ter reagido às cartas anónimas que recebeu, denunciando os maus manejos da Direcção do INAHINA. Não será isto uma tentativa de institucionalizar a cultura das denúncias anónimas que, na maioria dos casos, não é nada mais que a manifestação do despeito dos fracassados contra os que tiveram sucesso?
Há, na sociedade moçambicana, um sentimento muito grande favorável à igualdade junto de grande confusão sobre o que a igualdade implica. Parece que os moçambicanos amam a ideia de igualdade. Em termos intelectuais, eles podem estar inteiramente confusos acerca do que a igualdade implica, mas emocionalmente eles não têm dúvidas: amam a igualdade! E não é sem motivos: A sociedade moçambicana surgiu de uma luta contra uma sociedade colonial onde prevalecia o privilégio hereditário. Neste tipo de sociedade, a posição social do indivíduo é determinada não por seus dons e habilidades mas, sim, em função do facto de que pertence a determinada família, raça, casta ou classe. Contra esse tipo de sociedade em que prevalece o privilégio hereditário e não a competência, os moçambicanos justamente desfraldam o estandarte da igualdade.
Qual é, contudo, o resultado lógico da libertação dos homens das peias ao desempenho que existem numa sociedade estratificada? Parece claro, ainda que a nível mais intuitivo do que intelectualmente explicitado, que a liberdade conduz à emergência de grandes diferenças individuais no tocante ao desempenho, que podem levar a dramáticas diferenciações sociais quanto aquelas produzidas pela estratificação hereditária. Quando uma sociedade deixa de ser estratificada por princípios hereditários, ela tem que escolher como lidar com essas diferenças individuais de competência, habilidade, preparação, ambição, garra, esforço, que surgem. Uma forma de lidar com esse problema é tentar limitar essas diferenças, ou lutar contra elas, protegendo os mais fracos e criando obstáculos para os mais fortes. Levada ao extremo, esta fórmula conduz ao igualitarismo. A outra forma é simplesmente deixar 'que vença o melhor'" o que também, levado ao extremo “desumaniza” completamente o homem que, por natureza, é sedento de cooperação.
O que estou a tentar dizer é que tanto o privilégio hereditário como o igualitarismo são formas de restringir a extensão e a amplitude do desempenho. O privilégio hereditário protege os incompetentes através do nepotismo, do favoritismo. O igualitarismo protege os incompetentes (e penaliza os mais competentes) exigindo que os indivíduos sejam tratados em grupos ou categorias.
Uma coisa é exigir que todos os participantes de uma corrida de 100 metros comecem no mesmo lugar e ao mesmo tempo, e outra coisa é impedir que desigualdades apareçam no decurso da corrida, separando o campeão dos que perdem ou abandonam a corrida. Igualdade de oportunidade, nesta interpretação, é nivelamento na partida, mas não na chegada
Políticas distributivas podem ter efeitos adversos
Confrontadas com o dilema da pobreza no meio da abundância, todas as sociedades, incluindo a moçambicana, têm tomado medidas para a redistribuição dos rendimentos. Simplesmente que, ao tomar medidas para redistribuição do rendimento dos ricos para os pobres, os governos podem prejudicar a eficiência económica. A redistribuição dos rendimentos através da imposição de elevadas taxas de impostos reduz, nos indivíduos mais ricos, o esforço de trabalho e de poupança. Igualmente, a fixação de um rendimento mínimo garantido, principalmente em países como os nossos, poderá converter-se num forte desincentivo para o trabalho por parte das camadas beneficiadas. A combinação destas duas acções conduziria obviamente a uma diminuição do Produto Interno Bruto, ou seja, da riqueza real disponível para subsequentes redistribuições. A questão é saber quanto estarão as nossas economias dispostas a pagar em termos de redução de eficiência em aras de uma maior igualdade.
Desenvolvimento económico, num mundo “neo-liberalizado” em que os recursos são escassos e os países competem ferozmente pela sua captação, implica promoção de investimentos. Promoção de investimento implica oferecer vantagens fiscais e aduaneiras aos investidores nacionais e estrangeiros para os encorajar a aplicarem seus capitais aqui a não em qualquer outro lado. Vantagens fiscais e aduaneiras oferecidas significam que pouco dinheiro há-de entrar nos cofres do Estado, pelo menos a curto prazo. Com pouco dinheiro a entrar pouco haverá para redistribuir pelos pobres na forma de construção de escolas, hospitais, contratação de bons professores e médicos, construção de estradas e, em geral, na protecção dos desfavorecidos. Na verdade, e porque os riscos são maiores em países como o nosso, os investidores demandam geralmente lucros e taxas de retorno relativamente altos para os seus investimentos. Esta será, porventura, a causa primordial do crescimento das desigualdades sociais em países do terceiro mundo, incluindo Moçambique. Mas, por outro lado, se os governos decidirem taxar pesado aos investidores, em aras de uma maior justiça social obterão, como resultado, a fuga dos empreendedores, que procurarão colocar os seus capitais em sítios onde se ofereçam vantagens mais generosas.
José Castiano parece concordar comigo quando diz que há nos Estados africanos de hoje uma aporia política cuja origem é a existência do Estado neoliberal inspirado e edificado na base do contratualismo clássico no qual os indivíduos têm direitos a serem defendidos pelo Estado, mas simultaneamente (notamos que) há uma grande injustiça social no que diz respeito à distribuição do bem-estar e da renda. Assim, para uma melhor distribuição, o Estado não pode ‘forçar’ os poucos ricos a darem mais que os outros sem correr o risco de invadir a esfera dos direitos individuais, particularmente sem correr o risco de passar por cima do direito à propriedade.
Desigualdade é inerente ao crescimento das economias subdesenvolvidas
Um dos resultados mais visíveis das reformas neo-liberais em curso nos países africanos é o crescimento das desigualdades sociais. Os padrões de crescimento seguidos por esses países estão estruturados de molde a aumentar as disparidades de rendimento, agindo portanto como um travão na redução da pobreza relativa. Isto é, seria ilusório no contexto do modelo de desenvolvimento patrocinado pelo FMI e outras instituições multilaterais, considerar que o crescimento visível em alguns países africanos poderá aumentar o rendimento dos pobres da mesma maneira que aumenta o de quaisquer outros. Duma maneira geral, as economias avançadas parece apresentarem uma menor desigualdade da distribuição do rendimento do que as economias em desenvolvimento. Apenas como exemplo, referir que, para 10% das pessoas mais ricas da Índia, o ganho em termos de rendimento agregado ao crescimento económico tende a ser quatro vezes mais alto que o ganho conseguido pelos 20% mais pobres. Em economias onde as pessoas pobres tendem a ser iletradas, doentes, difíceis de ser contactadas ou marginalizadas socialmente, elas têm mais dificuldades em se beneficiar dos ganhos que advêm do crescimento do que em economias onde estas debilidades são menos acentuadas.
Há mais de um século, o economista italiano Vilfredo Pareto formulava a sua teoria do “óptimo” económico, ao mesmo tempo que apresentava a sua “curva de distribuição de renda”, na qual sintetizava dados estatísticos retirados dos mais diversos países. Contrariamente ao que se acredita popularmente, o aumento de renda nas sociedades não se dá proporcionalmente ao longo de uma curva uniforme e sim segundo uma linha oblonga, com uma aceleração geométrica na ponta da riqueza: em outros termos, a renda aumenta de maneira muito devagar para os estratos mais baixos, que formam a maioria da população, mas cresce de maneira exponencial entre os poucos muito ricos. Pareto acreditava que isto estava conforme aos dados da realidade, com o que podemos concordar, e que isso reflectia a distribuição desigual de talento, inteligência e espírito empreendedor dentro da sociedade.
No curso do século XX, a distribuição de renda tornou-se mais equitativa nas economias avançadas e, ironicamente, foi a própria noção do “óptimo paretiano” que contribuiu para tal resultado. Uma economia funciona bem melhor quando todos os seus membros dela se beneficiam, e não apenas uma fracção minoritária. Mas, como ainda argumenta Paul Strathern no seu livro A Brief History of Economic Genius, “a despeito desses desenvolvimentos, não se pode negar que a curva de distribuição da renda de Pareto continua a projectar a sua sombra. Mesmo as economias do Primeiro Mundo conservam um número considerável de subalternos. Enquanto isso, em economias menos avançadas, como as do Brasil e da Índia, a curva de distribuição de renda de Pareto sobrevive como se tivesse sido gravada na pedra”.
Clamor por Justiça Social é resposta à pauperização
Um postulado fundamental da "justiça social" é que uma sociedade é tanto mais justa quanto mais igualitária, não só em termos de oportunidades, mas também em termos materiais, ou de facto. E o clamor crescente por Justiça Social é, em parte, resposta à crescente pauperização da maior parte das nações.
A pauperização crescente dos nossos países está intimamente ligada aos desenvolvimentos que afectam negativamente as sociedades camponesas do Terceiro Mundo. A submissão destas sociedades às exigências da expansão do mercado capitalista acarreta novas formas de polarização social, que excluem uma proporção crescente de agricultores dos nossos países do acesso ao uso da terra e aos mercados. Estes camponeses empobrecidos ou sem-terra alimentam uma crescente migração para os bairros de caniço.
Se analisarmos mais detidamente, por exemplo, a justificação apresentada em apoio às reivindicações igualitárias verificaremos que, em muitos casos, elas se originam do descontentamento que o sucesso de algumas pessoas frequentemente suscita naqueles que tiveram menos êxito. A moderna tendência de se gratificar essa paixão, disfarçando-a sob a roupagem respeitável da justiça social, pode-se transformar numa séria ameaça à liberdade. No primeiro parágrafo de seu famoso Discours sur l'Origine de l'Inégalité (1754) Rousseau afirma que "a natureza estabeleceu igualdade entre os homens e eles estabeleceram desigualdade". Esse mito virou dogma, um dogma totalmente falso, apesar de incorporado na Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa (1793), na forma de "tous les hommes sont égaux par la nature".
Todos os Homens nascem iguais?
A verdade é exactamente o oposto: a natureza, que é hierárquica, cria todos os homens desiguais, e a sociedade, que homogeneíza, tenta fazer todos os homens semelhantes e luta para erradicar suas peculiaridades individuais. Em primeiro lugar, igualdade biológica não existe: simplesmente não é verdade que todos nasçamos iguais. Os defensores da igualdade substantiva afirmam, via de regra, que os homens realmente são iguais. Os defensores da igualdade formal geralmente afirmam apenas que os homens devem ser considerados iguais, ou tratados de forma igual, isto é não-arbitrária, e imparcial. O problema com a distinção aparece quando a igualdade substantiva é, de alguma forma, pressuposta na justificativa da igualdade formal - ou seja, quando se pressupõe que a razão pela qual os homens devem ser tratados com igualdade é que eles são iguais (talvez num sentido metafísico, que não implica igualdade biológica, social e política, e económica). Neste sentido Friedrich A. Hayek, no seu livro Fundamentos da Liberdade, afirma que “os actuais partidários de uma igualdade material mais ampla costumam negar que suas exigências se baseiem no pressuposto de uma igualdade de facto entre todos os homens. No entanto, geralmente ainda se supõe ser esta a principal justificativa dessas exigências. Nada, contudo, é mais prejudicial à reivindicação de um tratamento igualitário que partir de um pressuposto tão obviamente falso como o da igualdade de facto de todos os homens”.
A ilimitada diversidade da sua natureza - a ampla variedade de capacidade e potencialidade individuais - é um dos aspectos mais característicos da espécie humana. Não é correcto afirmar, no sentido factual, que 'todos os homens nascem iguais'. Podemos continuar a usar esta frase consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral, todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da crença em qualquer igualdade factual.
Factores temporais, geográficos e históricos colocam os indivíduos em condições iniciais mais ou menos favoráveis. Essa disparidade inicial determina profundas e prolongadas diferenças. Não é possível, através da acção governamental, remover todas as vantagens no começo da vida das pessoas, de modo a fazer com que todos comecem do mesmo ponto, sem consideráveis restrições, ou mesmo a abolição da liberdade.
A maioria das vantagens é inevitável. Ninguém vai compartilhar as mesmas oportunidades históricas, a menos que sejamos capazes de cancelar o facto insofismável que permite que alguns nasçam em um mundo que tem economias mais ou menos avançadas e um património mais ou menos rico. Ninguém vai compartilhar as mesmas oportunidades dentro de uma nação, a menos que o nível económico e cultural da nação seja equalizado.
A segunda interpretação de igualdade de oportunidades, e a única que torna a igualdade algo possível alcançar, considera a igualdade de oportunidades mais como negativa do que como positiva, mais como formal do que como substantiva. Esta interpretação torna-se visível se analisarmos as diferenças entre a Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa que afirma: "Todos os homens são iguais pela natureza e diante da lei" e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que reitera que "todos são iguais diante da lei". Assim, a igualdade de oportunidades possível se reduz à exigência de que, dentro de uma sociedade, e em um momento determinado, ninguém seja impedido de avançar, nem forçado a retroceder de sua posição, por causa de seus antecedentes familiares.
Que fazer?
Não será que o novo paradigma libertário passa, também, pelo aumento da competitividade internacional das empresas moçambicanas? Tudo tem que ser feito em função do aumento da competitividade, sabendo que o resultado dessa competitividade será um crescimento das empresas, que, por sua vez, dará origem à melhor distribuição da riqueza. Estamos habituados a associar o termo crescimento e desenvolvimento económico a um indicador vazio, mas quando falamos em crescimento, falamos em emprego, em segurança, em conforto, em esperança media de vida e outros factores do bem estar social das pessoas.
A capacidade de produzir mais com menos trabalho é uma questão política central do mundo de hoje. As transformações no mundo do trabalho foram rápidas e enormes. Antes da segunda metade do século XX era impossível imaginar que se chegasse a uma sociedade onde 5% da população é responsável pela produção agrícola, o operariado está em vias de extinção e a maior parte dos trabalhadores trabalhem nos serviços. De agora em diante, as lutas sociais terão de encontrar critérios de distribuição da riqueza fora dos limites do emprego e do trabalho tradicionais. Isto significa encontrar formas de distribuição da riqueza fora dos paradigmas tradicionais.
Não há, obviamente, motivo para pensar que a distribuição do rendimento que emerge dos processos de mercado seja desejável ou aceitável. As forças de mercado descontroladas actuando livremente, sem o controlo do governo podem levar um grande número de pessoas a viver abaixo do nível de subsistência. Sabe-se que as forças económicas sem controlo podem conduzir a grandes expansões e a grandes recessões. Sabe-se que o mercado pode levar à poluição. Todas estas são áreas em que existe um importante papel a desempenhar pelo governo. Sabe-se que haverá insuficiente investimento em bens públicos. E quando pensamos na economia da inovação, devemos recordar que a maior parte da inovação do sector privado é baseada em investigação financiada pelo governo.
No período recente, a aceleração do processo de globalização e as oportunidades abertas de investimentos financeiros em escala transfronteiriça, retomou as tendências de concentração de renda observadas na época da segunda revolução industrial, quando Pareto elaborou as suas teorias neoclássicas. Mas, trata-se de um processo que pode ser corrigido, não apenas em função de uma aplicação “óptima” do “óptimo paretiano” como, essencialmente, mediante a introdução de correctas políticas redistributivas por parte do Estado. Mas, atenção, o “óptimo paretiano” conforma uma situação de equilíbrio pela qual qualquer tentativa de melhorar substancialmente a situação de um dos lados redunda em perdas para o outro, o que concretamente pode significar evasão fiscal, desinvestimento e fuga de capitais por parte dos empreendedores internos e dos investidores estrangeiros. O aumento moderado da taxação direta deverá ser combinado com políticas sociais adequadas para refrear tendências e padrões anormalmente elevados de distribuição da renda em Moçambique. O “óptimo paretiano” é, assim, uma modesta lembrança que as melhores intenções têm de prestar atenção para certas realidades económicas para não provocar efeitos indesejados e resultados contrários aos inicialmente pretendidos. Que seriam uma maior justiça social.
Para além do “deixa andar”
Falava com um amigo que o tal “espírito” esconde, talvez, uma falácia, em que muito mais do que se deixa andar é o que não se deixa andar no nosso país - deliberadamente ou como conseqüência.
Mas o que me leva a estas escritas é um outro aspecto. É o facto de que, não só neste espaço mas também em outros, parece que, cada vez mais, se estabelece um consenso quanto aos motivos do tal “espírito”; estabelece-se uma relação entre os baixos salários (a falta de motivação, na seqüência, etc.) e o já tão explorado espírito do “deixa andar”; estabelece-se uma espécie de causalidade mecânica que, a meu ver, deturpa a busca de soluções para a questão.
Penso que há dois aspectos que seriam relevantes para a abordagem deste fenômeno (ou de qualquer outro). Por um lado, a questão da abstração. Ou seja, em que um determinado fenômeno, sob a influência de alguns elementos do ambiente, mantém as suas principais características e propriedades. Entretanto, importa observar que isso acontece até certo ponto; até um certo limite. Isto é, enquanto é influenciado - e a semelhança dos signos - sofre o processo de degenerescência: depois do limite o fenômeno não é mais o mesmo ou, como em muitos casos, sobra apenas a sua face cosmética, por assim dizer.
O problema está, justamente, quando se interpretam os acontecimentos a partir desses derivados.
Mas o que mais interessa neste assunto é o segundo aspecto, relacionado à (falsa) causalidade. Ou seja, se por um lado, o fumo pode “causar” cancro do pulmão; por outro, temos pessoas que fumam, mas não desenvolvem o cancro; e, por um terceiro lado, pessoas que não fumam e, no entanto, desenvolvem esse cancro. Isso evidencia que algum outro elemento (além do fumo) contribui de forma decisiva para que apareça a doença. Isso exige uma análise um pouco mais aguçada no sentido de caracterizar tal elemento que, uma vez associado ao fumo, condiciona o desenvolvimento da doença em questão.
Nesse caso, se existe uma relação de causalidade (eu falaria em predisposição) é, necessariamente, uma causalidade casada. Por outra, o fumo, por si só, não provoca a doença e depende de um outro elemento - em maior ou menor grau - para que juntas, provoquem tal efeito.
Do mesmo modo, por um lado, temos pessoas com baixos salários que “deixam andar”; por outro lado, pessoas com baixos salários que, no entanto, não “deixam andar”; e por um terceiro lado, pessoas com altos salários e que, não obstante, também “deixam andar”. Isso significa que os baixos salários não podem ser responsabilizados por esse “espírito”; estes, por si só, não o condicionam. Quando esse fenômeno ocorre, um outro elemento (necessariamente em maior grau, já que há altos salários que também “deixam andar”) condiciona esse comportamento.
Isso, entretanto, não nega a existência do baixo salário. O que se quer destacar é que este não constitui condição nem necessária, nem suficiente para o “deixa andar”. Aliás, o salário é sempre baixo, até para o Bill Gates, dizia um amigo: se fosse a depender do salário, este não seria suficiente para satisfazer as suas “necessidades” (chamaria desejos) básicas.
Portanto, mais do que os baixos salários, vivemos, hoje - em toda a parte do mundo ocidental e em pior grau nos nossos países – sob os domínios do monopólio privado da cultura (no seu sentido mais amplo). Ou seja, vivemos, hoje, um liberalismo econômico (tardio) fruto de um pensamento liberal que o antecede e em que tudo se simplifica e se materializa; em que o modo de estar, as expressões, os pensamentos, etc., tudo se transforma em grandeza mercadológica; em que os hábitos e costumes estão a serviço da obrigatoriedade pragmática de “fazer dinheiro”.
Já que falamos em espíritos, paira subjacente ao do “deixa andar” um espírito subtraído, esvaído, e que sucumbe ante os mecanismos de “fazer dinheiro”. Com isso, pouco ou nada mais interessa: um extra para cá; uma “luva” pra lá, sejam em altos ou baixos salários. É uma prática que organiza a si mesmo e desorganiza todo o resto. Isso é, hoje, um estilo de vida, cujo auge coincide com o aniquilamento de todas as outras dimensões coletivas: um mundo de missão e moral mínimas.
Hoje, é caso de manchete no jornal (se não é, deveria), fazer uma viagem, ter que parar por falta de água no radiador e não ouvir “quanto é que vais me pagar”. Hoje, as crianças já negociam para ir à padaria e, quem diria, até para ir à escola... (a moeda às vezes varia, da periferia para a cidade, mas a lógica é a mesma).
Invocar o baixo salário, por ele mesmo, como causa do “deixa andar” é um ludíbrio, na medida em que vem suplantar (ao mesmo tempo em que antecipa) uma forma de pensar e viver que numa abordagem direta não seria aprovada pela sociedade. À sombra, entretanto, torna absoluto um estilo de vida que, a partir dos derivados do baixo salário e da pobreza, tudo justifica quando se trata de “fazer dinheiro”, especialmente quando é para fazer “mais dinheiro”. Enfim, estabelece-se um estilo de vida em que a única forma válida de pagamento é a monetária.
Esse é, em maior grau, o outro elemento.
Depois vem o papel do esquecimento. Isto é, com o tempo reclamaremos cada vez mais da violência porque esquecemo-nos de que a abstração desse processo é, justamente, o aniquilamento da própria condição humana, reduzindo-o a um Hércules instintivo (que pensa, mas não reflete; a face cosmética, portanto) e monetário.
Isso pode ser combatido pela coerção, via Governo-Estado. Mas e o papel da consciência? o papel do Eu-Estado? Será que não estaremos numa fase em que o “deixa andar”, pelo contrário, predispõe os baixos salários?
Acho que há uma responsabilidade individual que precisa ser assumida nesta questão. Caso contrário, será apenas uma falácia. Quanto à responsabilidade individual, quantos professores universitários, por exemplo, deixariam de ser vulgos “picaretas bem pagos” para tornar máximas a missão e moral de docência, ao invés de regurgitar, de canto a canto, fórmulas feitas?
Lembrando que, mais cedo ou mais tarde, “pau que bate no Chico, dói no Francisco”.