O Centro de Integridade Pública lançou este Alerta:
CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA
Alerta nº 1-2007
Tendências contra o pluralismo dos Media em Moçambique*
O ante-projecto da Lei de Imprensa dá ao Governo maiores poderes de controlo sobre os Media, nomeadamente na suspensão do registo e na suspensão da circulação; propõe uma carteira profissional obrigatória, regulada pelo Governo; os julgamentos nos Tribunais vão ser vedados à cobertura jornalística; pela segunda vez no espaço de um ano, a Assembleia da República discute o relatório da Comissão de Petições à porta fechada; a mesma Assembleia da República recusa-se a debater uma proposta de Lei de Acesso à Informação entregue há mais de um ano pelo MISA.
Moçambique caminha para uma nova fase em que o direito e o acesso à informação será limitado e a comunicação social alvo de uma vigia cerrada por parte do Governo. Estaremos a nos zimbabweanizars, nós já fomos elogiados mundialmente pelo pluralismo da nossa sociedade?
O Governo moçambicano está em vias de receber para aprovação e remissão à Assembleia da República (AR) um ante-projecto de Lei de Imprensa que vai representar o maior retrocesso em termos de liberdade de imprensa e de expressão em Moçambique. O ante-projecto está a ser promovido pelo Gabinete de Informação (Gabinfo), que se subordina directamente à Primeira Ministra, e tem o suporte do Sindicato Nacional de Jornalistas (SNJ), do Misa-Moçambique e do EditMoz.
Uma das novidades da Lei é o estabelecimento de uma Carteira Profissional para jornalistas. A Ideia de fundo dos proponente é esta: o jornalismo está "infiltrado" de pessoas que não o dignificam, está “mergulhado na selva”, e, para contrariar esse "estado lastimável", é urgente que se estabeleça o imperativo de o exercício da profissão ser reconhecido apenas a quem tiver sido atribuída uma carteira profissional. O ante-projecto de Lei de Imprensa prevê, no seu artigo 38, a introdução de uma Carteira Profissional obrigatória como condição para o exercício da profissão de jornalista. Os pro- ponentes têm explicado que o estabelecimento da carteira profissional é um processo de auto-regulação; mas também admitem que um futuro regulamento da carteira profissional vai ser aprovado por via de um decreto do Conselho de Ministros.
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Mas a questão da carteira profissional não é o único aspecto controverso desta proposta de Lei, como tem sido feito crer. A proposta, em vez de aumentar as margens de liberdade dos Media, pretende limitá-la, dando ao Governo maiores poderes administrativos de tutela.
Tendência de governamentalização dos Media
O ante-projecto de Lei de Imprensa, a ser aprovado como está, vai dar ao Governo maiores poderes administrativos sobre os Media. E o poder judicial só aparecerá a intervir em determinados processos em sequência a processos de ordem administrativa instaurados em primeira instância pelo Governo, através do Gabinfo. É, esta, uma tendência de governamentalização dos Media em Moçambique. Senão vejamos:
O Artigo 31 do ante-projecto, sobre o cancelamento do registo de órgãos de informação, no seu nº 2, reza assim, ipsis verbis:
• O registo de órgão de informação é suspenso preventivamente quando seja verificado incumprimento do estatuto editorial declarado no acto do registo
Este artigo 31 tem problemas, uma vez que prevê a suspensão de um órgão de informação no caso de este violar o seu próprio estatuto editorial. Ora, um estatuto editorial é um enunciado de princípios e valores universais; sendo assim, a sua avaliação envolverá sempre considerandos de ordem subjectiva, abrindo-se aqui uma porta para o Governo mandar suspender este ou aquele jornal sem a intervenção do Judiciário. A não ser que o Governo esteja a preparar um check list de critérios a que todos os estatutos editoriais de todo o tipo de jornais deverão responder. Se for isso, a coisa agrava-se ainda mais, limitando-se o pluralismo das publicações.
A alínea h do artigo 39 diz que um dos direitos dos jornalistas é “ser portador da carteira profissional”. Aqui não se compreende como é que uma carteira profissional estabelecida sob o pressuposto de ser condição sine qua non para o exercício da profissão possa ser igualmente um direito. Uma condição necessária é uma condição de vinculação e, por isso, não pode ser um direito. É um dever.
A alínea b do artigo 40 diz que o jornalista deve ter como um dos objectivos “produzir uma informação completa, imparcial e objectiva”; na anterior formulação da Lei de Imprensa, o termo imparcial não existia, e justamente. Na nossa opinião, não há jornalismo imparcial; há jornalismo objectivo. A noção de imparcialidade é bastante difusa, fluída; o jornalismo é uma teia de vasos comunicantes infindáveis; se reportamos sobre o massacre do paiol podemos descrever a matança objectivamente, mas dentro de um substracto ideológico que nos empurra para a defesa da socie- dade contra o Estado. O jornalismo investigativo é por excelência parcial em defesa do bem público.
O artigo 59 do ante-projecto diz respeito às medidas de suspensão de um órgão de informação. No seu nº 1 lê-se, ipsis verbis:
“A circulação de publicações que contenham escritos ou imagens, ou a difusão de programas radiofónicos ou televisivos de conteúdo obsceno ou outro susceptível de incriminação nos termos da lei penal será suspensa imediata e preventivamente, mediante constatação directa da autoridade competente ou denúncia suportada com prova bastante”.
Este artigo tem dois problemas. O primeiro relaciona-se com o conceito de obsceno, que é também passível de interpretação em função dos preceitos morais de cada indivíduo. A jurisprudência norte-americana está cheio de batalhas legais infindáveis à volta do que pode ser obsceno. Por outro lado, o artigo dá poderes administrativos ao Governo para suspender imediata, mesmo que preventivamente, um jornal que tenha cometido uma infracção susceptível de incriminação nos termos da Lei. Ou seja,
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mesmo antes de o Judiciário intervir, e pontapeando-se o princípio da presunção de inocência, o Governo vai poder decidir encerrar este ou aquele jornal, através do Gabinfo. Esta formulação só encontra paralelo em regime autocratas, centralizados, repressivos.
Se assim for, o Gabinfo vai ser uma espécie de julgador dos Media em Moçambique, em vez de órgão de licenciamento e registo de publicações (num debate recente, Ricardo Malate, técnico do Governo que participa na elaboração desta Lei, disse que a intervenção administrativa do Governo neste domínio era uma forma de evitar que os jornais fossem sempre parar aos tribunais, pois isso era desprestigiante para os jornais).
Legalizar a limitação das liberdades
Relativamente à carteira profissional, os proponentes têm vindo a declarar que se o Governo, no actual contexto legal, quisesse limitar a liberdade de expressão e de imprensa, fa-lo-ia. É claro que fa-lo-ia, mas violando os preceitos estabelecidos constitucionalmente; fa-lo-ia ilegamente. E mais: a recusa de registo de jornais ligados a figura críticas ao Governo seria vista como uma grosseira limitação da liberdade de imprensa; a cassação da licença de jornais potencialmente críticos seria uma prova clara de limitação da liberdade. E o mundo revoltar-se-ia, como fazemos com o Zimbabwe.
É claro que também entendemos que o Governo poder limitar os jornais, no actual contexto legal e sem violar a Lei, nomeadamente através de práticas selectivas de publicação de anúncios do Estado, fazendo, por um lado, com que jornais críticos percam uma fonte de rendimentos e, por outro, aumentando a sua influência nos jornais onde publica esses anúncios - esta é, de resto, uma prática hoje reportada em algumas democracias latino-americanas, onde as mãos da censura aumenta todos os dias os seus tentáculos contra os Media independente.
O que os proponentes pretendem é que o Governo não reprima a liberdade de expressão violando a Lei; os proponentes pretendem que é dar ao Governo força legal através da qual o executivo aumenta o seu poder de intervenção sobre os Media; em vez de uma repressão ilegal, os proponentes preferem a repressão legal, em que a liberdade é legalmente limitada como no Zimbabwe, onde a Lei limita aos jornalistas críticos o exercício da profissão.
Alguns argumentos enunciados
Um argumento que tem sido veiculado é o de que é preciso responsabilizar, através da carteira profissional, os jornalistas pelos seus actos. É um argumento falacioso pois a Lei de Imprensa em vigor contém cláusulas suficientes para a responsabilização de jornalistas nos casos em que estes incorram em práticas proibidas por Lei (cláusulas contra difamação, contra a incitação ao ódio e a obrigatoriedade do direito de resposta).
Também se diz que se trata de um processo de auto-regulação; ora um processo de auto-regulação não requer a aprovação pelo Governo de um decreto; se for esse o procedimento não estaremos perante uma auto-regulação; tratar-se-ia de regulamentação governamental com efeitos vinculativos; um processo de auto-regulação é um processo de codificação de comportamentos, cujo fim último é o estabelecimento de códigos de conduta e ética profissional. Enquanto a Lei de Imprensa estabelece os deveres e os limtes do jornalistas, um código de conduta é um conjunto de princípios e valores morais.
Também se tem argumentado que em Portugal, onde existe uma carteira profissional para jornalistas, há mais liberdade no exercício do jornalismo que no Zimbabwe, onde não existe. Curiosa comparação!!! Todos sabemos que no Zimbabwe o Governo emite licenças anuais para jornalistas e em Portugal não; e é justamente esta intervenção do Governo zimbabweano que coarcta o exercício do jornalismo naquele país.
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A introdução da carteira profissional é inconstitucional pode ser matéria de foro constitucional, tal como se diz que é a descriminalização da difamação, assunto pelo qual os proponente deveriam bater-se a todo o custo. A Constituição da República é muito clara: todos os cidadãos podem criar órgãos de informação. Todos, e não apenas aqueles que têm uma carteira. O estabelecimento de uma carteira profissional vai abrir espaço para que sejam os Governos (o actual e os futuros) a definir quem pode exercer a profissão em Moçambique (atenção: não se trata de definir o que é ser jornalista; trata-se de definir quem deve exercé-lo).
A remoralização do jornalismo não passa pela Carteira Profissional
A remoralização do jornalismo moçambicano pode ser feita apenas com a observância da actual Lei. Outras práticas incorrectas dos jornalistas podem se enquadradas no domínio da Ética e Deontologia profissionais e, nesse sentido, a codificação de comportamentos dentro da classe é de extrema importância. Por outro lado, caberá a cada órgão de comunicação social identificar claramente quem são os seus jornalistas e exercer a devida autoridade sobre eles.
O estabelecimento de uma carteira profissional não leva automaticamente à mudança de comportamentos; não é carteira que dignifica o jornalista, mas o conteúdo do que escreve, o produto do seu trabalho. A ideia da carteira profissional é uma importação da legislação portuguesa (e é mais restritiva do que a portuguesa), mas a maior parte dos países democráticos não tem nenhum sistema de licenciamento de jornalistas, mas apenas formas de identificação de trabalhadores dos Media.
Os proponentes argumentam que o Governo não vai ter nenhuma intervenção numa tal comissão da carteira profissional, a ser constituída por representantes da associações profissionais de jornalistas. Mas é, no entanto, difícil estabelecer o princípio da carteira profissional sem se estabelecer previamente o perfil dessa comissão e o regulamento dessa carteira. Trata-se de uma rasteira em potência. Primeiro porque o facto de ser o Governo a aprovar o regulamento implica a possibilidade de o mesmo meter a sua colher na panela; por outro lado, sendo este processo de natureza mimética, inspirada mais na legislação portuguesa e menos na dos que países que nos rodeiam, era fundamental saber se, no nosso caso, a comissão seria presidida por um magistrado, como é o caso de Portugual.
E se for assim? Será que moçambique tem uma magistratura judicial independente do executivo? O nosso Conselho Superior de Magistratura Judicial, um órgão que devia ser de oversight, é um entidade amorfa e, pior, é presidida pelo Presidente do Tribunal Supremo, o qual, teoricamente devia ser “fiscalizado” por esse Conselho (mas isto é um outro debate).
Dois exemplos de fora
A acreditação de um jornalista na Comissão Europeia não exige um “Professional Card”; so se exige isso no caso de jornalistas em visita breve e em caso de nos seus países de origem haver um tal documento; se não houver, basta uma carta da empresa onde trabalha, assinada pelo Editor ou pelo Director para que esse jornalista em visita seja acreditado.
O exemplo da Inglaterra é ainda mais interessante: o press card é um documento voluntário e não obrigatório; por outro lado, são várias as entidades que o podem emitir, nomeadamente empresas como a BBC, a SkyNews, agências de informação e de fotografia, e associações profissionais. O conceito inglês é o de que qualquer pessoa que faça jornalismo pode obter o press card. Não se trata do inverso; não se trata de o press card ser um documento obrigatório, condição sine qua non para o exercício da profissão. O principal critério de elegibilidade é ser-se jornalista, não importa a formação académica, a experiência profissional; importa é que o jornalista viva de jornalismo; não importa que
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faça parte de uma associação profissional; não interessam as opiniões de um órgão público ou privado sobre esse jornalista.
E sobretudo, a ideia central do press card britânico não se baseia nessa ataque de elitismo que encerra o processo moçambicano, na ideia de que “há infiltrados” no jornalismo moçambicano que devem ser banidos, que vão aos coquetéis sem serem convidados, e que isso “suja a nossa imagem”, como se o jornalismo moçambicano fosse propriedade de meia dúzia pessoas e como se não tivessemo assuntos mais importantes para investigar e debater..
Novos tempos difícies
A comunicação social moçambicana vai atravesssar momentos defíceis nos próximos tempos. É uma tendência de centralimo, de redução das liberdades, que deve merecer mais debate. Um dos sinais é o facto de que é ainda muito difícil obter informação de fontes ligadas à administração pública, onde continua a vigorar uma cultura de secretismo herdada do anterior Estado monopartidário e vincada pela excessiva partidarização do Estado. Por outro lado, o direito à informação sobre determinados processos judiciais é negado aos cidadãos sob pretexto do segredo de Justiça, quando esta prerrogativa não impede, nunca, que se forneça informação sobre o curso de uma dada investigação judicial.
Grave é o facto de o próprio Governo estar já a estabeceler a urgência de se restringir a cobertura directa de julgamentos. É uma tendência de sonegação de informação que começou com a famigerada Comissão de Petições da Assembleia da República, a qual decidiu fechar as suas portas, no ano passado, aquando da apresentação de um relatório, privando a informação aos peticionários e ao público em geral. Esta situação repetiu-se esta semana com o beneplácito da maioria parlamentar. De repente, o Estado sentiu-se na obrigação de proteger o “bom nome” de potenciais prevaricadores, mesmo quando há indícios bastantes, como acontece nos casos da gestão do Banco Austral e do assassinato do economista Siba Siba Macuacua. Quando falamos na necessidade de melhor a admnistração da Justiça, o Estado diz que é desprestigiante ir parar aos tribunais.
A ideia da protecção do “bom nome” radica da consciência de que a maior parte dos casos de injustiça e prevaricação que chegam à Comissão de Petições e aos Tribunais provém do campo do poder. Mas a noção de “bom nome” não é estática; o bom nome conquista-se pela via da não prevaricação; não é depois da prevaricação (em que se afecta milhares de cidadãos) que o bom nome deve ser protegido. Por outro lado, o fechamento da Comissão de Petição é um convite ao fechamento da AR. Não tem paralelo em nenhuma democracia.
Uma nota final: questões relativas a liberdade de imprensa e de expressão, carteira profissional de jornalistas, acesso à informação etc, não são exclusivas dos jornalistas; são assuntos que envolvem todo o conjunto da sociedade e, por isso, é urgente que algumas das suas vozes notáveis se pronunciem sobre eles. Talvez por aí consigamos travar este retrocesso sem precedentes na edificação de uma sociedade pluralista em Moçambique.
*Artigo preparado por ocasião do 3 de Maio, dia Mundial da Liberdade de Imprensa;
O Centro de Integridade Pública (CIP) é dirigido pelo jornalista Marcelo Mosse
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