Ideias para Debate

Sunday, June 05, 2005

Línguas Nacionais

Da Fátima Ribeiro recebi mais um contributo para o tema das línguas nacionais:


Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 e política de línguas para o ensino

Aproveitando este período morno do blog, gostaria de deixar para reflexão dos que se interessam pela gestão da multiplicidade linguística, pelo ensino das línguas “moçambicanas” e pela problemática do ensino bilingue no nosso país alguns excertos do Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 publicado pelo PNUD. Dedico esta minha intervenção a Maria de Lurdes Torcato e Patrício Langa pelo particular interesse que têm demonstrado:

Logo na capa do RDH 2004, todo ele dedicado ao tema Liberdade Cultural num Mundo Diversificado, podemos ler o seguinte:
“Satisfazer as exigências crescentes das pessoas de inclusão na sociedade e de respeito pela sua etnicidade, religião e língua exige mais do que democracia e crescimento equitativo. Também são necessárias políticas multiculturais que reconheçam diferenças, defendam a diversidade e promovam liberdades culturais, para que todas as pessoas possam optar por falar a sua língua, praticar a sua religião e participar na formação da sua cultura - para que todas as pessoas possam optar por ser quem são.”

Já na página 61, ao debruçar-se especificamente sobre a política linguística nas escolas, refere-se o relatório nos seguintes termos aos países africanos: “Esses países podem achar a introdução da educação em língua local particularmente difícil, por causa das muitas línguas faladas. Mas a maioria das línguas estão relacionados umas com as outras e há apenas 15 grupos linguísticos nucleares nos 45 países subsarianos (Caixa 3.8). Desenvolver a educação em língua local exigiria maior investimento e cooperação regional para normalizar e desenvolver essas línguas. A normalização exigiria a tradução de textos para essas línguas e a introdução dos textos para educação nos níveis mais altos. Esses custos poderiam ser suportados através de algum apoio adicional dos doadores.”
“A normalização de textos e a tradução nas 15 línguas nucleares partilhada por comunidades espalhadas por vários países ajudaria a manter os custos baixos através de economias escala. Seria necessária comparação entre países da região para fazer esse trabalho. A médio prazo, essa normalização ajudaria a reforçar o papel dessas 15 línguas nucleares como línguas francas e como línguas de educação e dos sistemas administrativos (legislativo e judicial) do Estado.”
“A escolarização bilingue pode começar a ter apreciações desfavoráveis, problemas de transição da primeira para a segunda língua e maus sistemas de acompanhamento, avaliação e apoio. Mas a maioria desses problemas está ligada ao mau planeamento e à falta de ajustamentos nos currículos, no ensino, e na formação e promoção e uso da língua nas esferas oficial e pública. Uma vez satisfeitas essas condições as estratégias bilingues melhoram a aprendizagem, contribuem para uma identidade multicultural e têm um efeito transformador na sociedade.”
“Uma vez que o conhecimento das línguas ocidentais é muitas vezes um meio de mobilidade ascendente, o objectivo não é eliminar as línguas ocidentais, o que estreitaria as escolhas e o acesso ao conhecimento internacional. O objectivo é dar às línguas locais estatuto igual ou superior. E isto reduz o pesado fardo da repetência e do abandono e, assim, cria qualificações humanas.”

Finalmente, a Caixa 3.8, com o título “Quantas línguas existem em África? 85% dos africanos fala 15 línguas nucleares” diz-nos o seguinte:
“A profusão de línguas em África dá a impressão de uma fragmentação sem fim. Um exame mais atento revela convergências e semelhanças estruturais em relação a culturas, clãs e línguas superficialmente distintas. Os administradores coloniais e os missionários, umas vezes por conveniência administrativa e outras por razões de proselitismo (traduções bíblicas, em particular), elevaram pequenos dialectos ao estatuto de línguas e pequenos grupos locais ao estatuto de tribos. Tal como etnólogos da era colonial “descobriram" avidamente tribos, que muitas vezes eram mais propriamente partes de grupos muito maiores, também as línguas em África têm uma afinidade muito maior entre si do que vulgarmente se pensa.”
“Muitas das línguas inventariadas como distintas em África são, na realidade, dialectos de línguas nucleares. Com falantes de primeira, segunda ou terceira língua (a maioria dos africanos é multilingue) Mais de 75% dos africanos fala 12 línguas nucleares: nguni soto-tsuana, suahili, amárico, fulful, mandingas, ibo, haúça, ioruba, luo, interlacustre oriental e interlacustre ocidental (Kitara). Cerca de 85% da população africana do continente fala 15 línguas nucleares (as outras três línguas são o somali-samburu, o oroma-borana e o gur). Embora lexicalmente diferentes, estas línguas são morfológica, sintáctica e foneticamente semelhantes.”
“Se os linguistas dos diferentes países da África subsahariana cooperassem para normalizar vocábulos, seria possível usar essas línguas para ensinar, não só nos três primeiros anos da escola primária, mas até nos anos mais adiantados.”
(Fonte: Prah, Kwesi Kwaa, 2004? African Languages for the Mass education of Africans. Cape Tow. CASAS)

Sabendo todos nós da importância global deste tipo de documentos das Nações Unidas, que frequentemente dão o mote a toda a “cooperação e desenvolvimento”, gostaria de pôr à vossa consideração o seguinte:
Não haverá contradição entre o que fundamenta as políticas multiculturais pretendidas no RDH e a política linguística proposta para as escolas africanas?
Reconhecendo os esforços humanos, técnicos e financeiros que implica a introdução das línguas africanas no ensino, o RDH propõe a conjugação de esforços na sua normalização, tradução e introdução na educação com partilha de custos entre os vários países africanos e apoio adicional dos doadores. Seriam elaborados materiais escolares apenas nas 15 línguas aqui chamadas nucleares para 45 países subsaharianos. Em Moçambique, a política linguística para a educação aponta para materiais diversificados em 20 línguas!!! (Abstraindo-nos do facto de estas línguas serem “dialectos” ou não, a verdade é que são manifestações linguísticas diferentes, implicando meios didácticos também diversificados). Estaremos nós tão mais desafogados em recursos que os outros países africanos?
A ser implementada esta proposta do RDH do PNUD, que língua(s) nucleares nos caberia(m) a nós? O nguni? O soto-tsuana? O suahili? E que variedade(s) da(s) língua(s) seria(m) considerada(s) padrão para a elaboração dos matérias de ensino? Teríamos nós zulo em Maputo? Suahili em Cabo Delgado e Niassa? Que caberia ao nosso grande grupo de falantes de emakhuwa e elomwe?
Para o RDH, “o objectivo não é eliminar as línguas ocidentais”, mas “dar às línguas locais estatuto igual ou superior [ao das línguas ocidentais]”. Com a política proposta não se criará uma nova hierarquia entre línguas, povos e culturas, com novas relações dominante-dominado, agora entre africanos? Que consequências políticas, económicas e sociais daí advirão?
Muitas outras questões nos levantam os excertos apresentados, mas, para já, e esboçadas um pouco à pressa, ficam estas. Ideias para debate espero bem que sejam.

Fátima Ribeiro

2 Comments:

  • Tenho acompanhado com muito interesse as suas reflexões críticas sobre a problemática do ensino bilingue no País. Também acho a forma como ele está a ser introduzido algo precipitada e mal informada. Parece-me característica duma forte tendência nacional de procurar soluções para problemas mal definidos. Ainda não consegui perceber que problema se pretende resolver com o ensino bilingue ou em línguas nacionais.
    Um aspecto, contudo, que não deve ser descurado é o que diz respeito à necessidade de conservação e preservação das línguas nacionais, independentemente da sua utilidade para o ensino. Apesar de nunca ter analisado o assunto com a profundidade necessária, tenho em mim que existe um problema sério de domínio de línguas no País. Falamos mal português e as nossas próprias línguas. Tenho, neste momento, em minha casa dois hóspedes de Singapura que me falaram do que se faz no seu país a este respeito. Se calhar este teria sido o modelo ideal para o nosso. Em Singapura, que é também um país multilingue (cantonês, hindi, malaio...), o ensino é em língua inglesa, mas todos os dias os alunos têm uma hora e meia de aulas da sua própria língua materna. Uma vez por semana têm uma hora de leitura obrigatória de livros na sua própria língua. É verdade que eles têm muito menos línguas e muito mais recursos financeiros do que nós. Mas acho a ideia brilhante. Será que é tarde para adoptar um modelo destes no nosso País? Já agora, como é que saímos do debate de ideias aqui na internet para a acção? Como é que nos fazemos ouvir?

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:21 AM  

  • Cara Fátima Ribeiro,
    Dou-lhe razão. Acho este problema sintomático. Infelizmente, as decisões que tomamos sobre vários assuntos raramente são precedidas de reflexões abrangentes e críticas. É uma pena, grande mesmo.
    Ao mencionar o modelo de Singapura queria apenas sugerir que se definisse um outro problema: o problema do fraco domínio das línguas faladas no País, sejam elas nacionais ou a língua portuguesa. Achei que o modelo de Singapura fosse bom: não ensinar em línguas nacionais, mas sim ensinar as línguas nacionais. Isso implicaria, evidentemente, todo o tipo de esforços de harmonização da ortografia (acho que o NELIMO fez algo parecido com isso), produção de literatura (para além da religiosa), etc. Seria um programa a longo prazo que não devia interferir, a curto e médio prazo, com o ensino.
    É apenas uma ideia.

    By Blogger Elísio Macamo, at 9:41 AM  

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