Ideias para Debate

Monday, June 13, 2005

30 anos - resposta ao Elisio

O Elisio Macamo colocou um comentário ao meu texto sobre os 30 anos da independência. Gostou de umas coisas e não gostou de outras. Mas, costumo dizer, até quando discordamos gosto de ler o que ele escreve. Dá gosto trocar ideias com ele.

Um dos pontos em que não estamos de acordo é quando eu digo que a época de Samora foi a época do sonho e que este morreu em Mbuzine. Ele prefere os tempos que vieram depois, a liberdade (até para morrer de fome).

Ora eu, que também gosto muito da liberdade, começo por discordar desse conceito de liberdade para morrer de fome. Ninguém morre de fome por ter liberdade para isso mas sim porque é obrigado a isso. É exactamente o oposto da liberdade.

Mas, voltando ao sonho, eu creio que todos os que o vivemos podem dizer que foi ele que nos levou a fazer coisas que nunca nos passariam pela cabeça a sangue frio. Eu andei a cavar latrinas nos bairros suburbanos. E ninguém me obrigou. Fui porque queria e acreditava que, com esse esforço, estava a ajudar a melhorar a vida das pessoas do meu país. Ora é claro que esse tipo de coisas só se faz quando se acredita no que se está a fazer. É isso o sonho.
Hoje, quando ninguém faz nada sem ser pago, por cima ou por baixo da mesa, alguém faz alguma coisa destas? Não. Porque o sonho morreu e resta-nos esta realidade cinzenta e desmobilizadora.
Samora desafiou, num célebre discurso, o governo do apartheid, dizendo: "Que venham! Porque a guerra há-de acabar em Pretória". Perante a diferença de poderio militar e económico qualquer realista terá pensado que esse sonho de Samora era uma loucura. Mas a verdade é que, embora Samora não tenha vivido para o ver, a guerra acabou em Pretória no dia da tomada de posse de Nelson Mandela.

Outro ponto em que estou em desacordo com o Elisio é na definição das prioridades actuais. Eu concordo com Guebuza que a primeira prioridade é arrumar a casa, limpar o lixo acumulado e pôr a máquina do Estado a funcionar eficaz e honestamente. O Elisio acha que a prioridade é definir um projecto de Estado.
Ora eu também acho que é necessário definir esse projecto. Simplesmente penso que ter um projecto mas querer pô-lo em prática com um aparelho de Estado corrompido até à medula é uma tarefa impossível. Não há óptimo projecto que resista ao saque diário a que assistimos (neste momento estão na cadeia TODOS os funcionários de uma delegação bancária na Beira, coniventes em mais uma grande fraude bancária!). Quanto a mim só depois de se arrumar a casa é possivel lançar esses projectos. O que não quer dizer que eles não vão sendo pensados e debatidos desde já.

O Elisio diz que Samora morreu no momento certo. Talvez vendo em termos históricos isso seja verdade. Mas não deixa de me preocupar o pensamento de que alguém, ou alguéns, com uma visão histórica demasiado apurada, tenha pensado o mesmo e actuado em conformidade.

Um outro comentário lança a questão de se Samora ainda acreditaria no sonho, na fase final da sua vida. Creio que não. Creio que estava muito amargurado com o rumo dos acontecimentos que já não conseguia controlar como queria. Mas, apesar de tudo, creio que o inevitável teria sido, se dirigido por ele, menos desgastante em termos de uma moral governativa.
Mas isto é entrar na especulação e não gosto de me aventurar por esses terrenos.

(como não sei voltar à página do blog para reler os comentários sem apagar o que estava a escrever aqui, as citações estão feitas de memória)

1 Comments:

  • Caro Machado,
    Gostei de tudo o que escreveste, apenas não concordei com algumas coisas. E receio continuar a não concordar. Para já, sabia que ias pegar logo nessa da liberdade de morrer de fome. Exagerei. Dou a mão à palmatória. O que eu queria dizer, contudo, é que prefiro um Estado que responsabiliza o indivíduo, como o podíamos ter agora, não um Estado que se responsabiliza pelo indivíduo, como o tivemos no passado. É difícil, nessas condições, criar o espaço político necessário ao debate.
    Os outros dois pontos são bicudos. Quem corre por gosto não cansa. Acredito que tenhas cavado latrinas por gosto, não por obrigação, mas o que eu sei e vivi desse período da nossa independência é que os que não gostavam de cavar latrinas tinham que guardar isso para si próprios e nunca podiam dizer "não" sob pena de serem chamados reaccionários, inimigos do povo, xiconhocas, infiltrados, etc. Todos os sábados fazíamos "trabalho voluntário obrigatório". Isto não quer dizer que eu não tenha feito certas coisas com gosto; só que o gosto era, na altura, o ingrediente menos importante.
    Nada nos impede hoje de fazer aquilo que consideramos eticamente correcto. Dou aulas duas vezes por ano na UEM, acompanho teses de estudantes tudo isso por achar que eles precisem, não porque ganhe alguma coisa. De resto, uma parte do que ganho vai direitinha à uma escola primária comunitária que há cerca de oito anos vive basicamente do dinheiro que dou. Quando comecei nos finais da década de 90 dava anualmente o equivalente a um mês do meu salário e isso servia para pagar os vencimentos de dois professores! Quem beneficiava, e continua a beneficiar, são cerca de 140 crianças que doutro modo não teriam acesso ao ensino. Não é por causa da presença de dólares que hoje não somos solidários.
    Sobre o projecto de Estado penso que é a história do ovo e da galinha. Acho estranho que não estejamos de acordo neste ponto, pois é neste aspecto que penso que o tempo de Samora tenha sido de longe melhor. Havia, de facto, um projecto e foi na base desse projecto que se procurou moldar o Estado. Toda a coerência da ofensiva política e organizacional partiu desse projecto de Estado. Acho bem que o actual presidente esteja preocupado com o mau funcionamento do aparelho de Estado e espero que se saia bem. Tenho, contudo, as minhas dúvidas, pois não vejo ainda nenhuma reflexão que indique uma ideia clara da razão que o leva a querer um Estado funcional. É para fazer o quê? Para explorar melhor o povo? Para gerir melhor o País em nome da indústria do desenvolvimento? Para devolver a dignidade aos moçambicanos?
    Eu sei, pediste para manter os comentários curtos, mas está difícil. Sei que não querias dizer isso, mas talvez fosse bom tornar claro que não tive nada a ver com a morte de Samora. Foi um homem de qualidades excepcionais, mesmo se, como escreveu o cientista social francês Michel Cahen pescasse uma parte do seu carisma no facto de ser o único que podia falar mal ou bem das coisas. O seu desaparecimento é uma perca muito grande, disso não pode haver dúvidas. Continuo a pensar, contudo, que do ponto de vista político foi melhor assim. Não consigo ver aquele homem a fazer a paz com a Renamo, apesar da evidência clara dum exército indisciplinado e completamente ineficiente; não o consigo ver a abrir o sistema político para acomodar outros pontos de vista. Perdemos um grande homem, mas ganhamos mais opções. Foi tão grande como homem que a sua morte vai alimentar teorias de conspiração até ao fim do tempo.
    Um abraço

    By Blogger Elísio Macamo, at 12:16 AM  

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