Ideias para Debate

Wednesday, December 07, 2005

Corrupção

Neste dia em que o Ideias Para Debate foi considerado o melhor blog político pelo Maschamba (É só clicar aqui ao lado.Obrigado JPT) entra no debate um novo parceiro, o Daniel Doku:

A Corrupção: Uma perspectiva
Tenho estado a acompanhar, com alguma dificuldade, devo dizer, o debate sobre a corrupção. Não pretendendo aqui afirmar nem negar a existência de corrupção em Moçambique, vou limitar-me a analisar um dos argumentos de Elísio Macamo. Saliento, desde já, que sou recém-chegado à língua portuguesa, pelo que é possível que tenha entendido mal os textos no blog. Se isto se verificar, peço imensa desculpa pelo que se terá então tornado uma digressão desnecessária.
O argumento
O argumento particular de Elísio é o seguinte:
Conclusão: Não há corrupção em Moçambique.
Premissas:
1. Nas condições actuais do nosso país não é possível definir a corrupção com utilidade, pois isso pressupõe um sistema político e económico com uma estrutura minimamente clara.
2. As várias definições até aqui ensaiadas pecam por serem demasiado prescritivas; estão a descrever o país que somos, mas sempre numa perspectiva de explicar porque as coisas são como são e como devem ser resolvidas. São portanto circulares.
Suponhamos, por um simples exercício, que as premissas são verdadeiras. Teremos então pelo menos duas possibilidades. Em primeiro lugar, e como apontado por Ciprix, a coisa em si é distinta da sua definição. Aceitando esta distinção verificaremos que a impossibilidade de uma definição não implica necessariamente que a coisa não existe. Portanto, a conclusão de Elísio não deriva da premissa 1. Ou seja o argumento é inválido.
Em segundo lugar, as premissas são de facto negações das razões dadas pelos que afirmam a existência de corrupção em Moçambique, afirmação essa que tentam fundamentar através de definições e exemplos. Portanto, uma vez mais, a conclusão não deriva da premissa 1 nem da premissa 2. Quer dizer, o argumento é inválido.
Ao que atrás foi dito, acresce que, e não menos importante, tudo isto nada nos diz sobre a afirmação de que há corrupção em Moçambique.
Em resumo, mesmo na hipótese de as premissas serem verdadeiras, a situação até aqui é a seguinte: o argumento acima é inválido. Quer dizer, precisamos ainda de um argumento convincente relativo à não existência de corrupção em Moçambique. Por outro lado, o argumento não tem nenhuma implicação sobre a afirmação de que há corrupção em Moçambique, embora negue as razões que fundamentam essa afirmação.
Mas, serão as premissas verdadeiras?

As premissas
Deixemos a premissa 2 de lado. Isto porque não podemos analisar todas as definições até aqui dadas, além de que deixar de lado aquela premissa não afecta negativamente a nossa discussão.

Quanto à premissa 1, Elísio introduz o que ele considera uma pré-condição necessária para definir a corrupção em Moçambique. Ou seja, precisa-se em Moçambique de um sistema político e económico com uma estrutura minimamente clara antes de se poder definir a corrupção. Parece-me tratar-se de um constrangimento arbitrário, pelo que precisaria de um argumento próprio antes de ser introduzido. Mas talvez Elísio já tenha proposto algures tal argumento e eu simplesmente não me tenha dele apercebido. Se assim for, peço uma vez mais as minhas desculpas.
Mas, mesmo assim, parece-me que a referida pré-condição não se coaduna bem com as outras declarações de Elísio. Segundo ele, “a corrupção, por exemplo, é uma reacção racional, ainda que moralmente indesejável, à presença de fundos, externos ou não, cuja utilização não está sujeita a grandes controlos.” A reacção é racional porque deriva de lógica situacional, segundo a qual “as pessoas procuram sempre tirar proveito próprio de situações.”
Suponho que se possa descrever a reacção como também economicamente indesejável. Parece-me ainda não haver necessidade lógica da palavra “grandes” uma vez que a lógica situacional como tal não depende do tipo de controlo. Portanto, podemos substituir a palavra “grandes” pela palavra “adequados”. Posto isto, até aqui podemos dizer o seguinte:
A corrupção é uma reacção racional das pessoas, ainda que moral e economicamente indesejável, à presença de fundos, externos ou não, cuja utilização não está sujeita a controlos adequados.
Chamemos a isto uma definição limitada. Note-se que de forma alguma representa uma definição completa de corrupção, sendo apenas uma definição útil, eu aventaria, e, se funcionar, um ponto de partida. Como não quero perder o fio à meada, não especularei sobre como se poderia alargar e refinar essa definição limitada. (Aliás, Manuel Tivane chamou a nossa atenção para a lei anti-corrupção moçambicana: Lei nº 6/2004, de 17 de Junho (BR nº 24, I série, que define corrupção passiva e corrupção activa).
Os que afirmam a existência de corrupção aceitariam esta definição limitada. Mas o facto é que não se podem apontar exemplos concretos sem a devida investigação, e talvez seja por isso que Elísio rejeita os exemplos dados.
Por outro lado, os que, como Elísio, negam a existência de corrupção também podem aceitar a definição limitada. Neste caso, eles apenas poderão dizer que até aqui não houve corrupção em Moçambique e só neste contexto limitado. Significará ainda que a premissa 1 é falsa uma vez que a nossa definição limitada não pressupõe nenhum particular sistema político ou económico. Se, pelo contrário, eles não aceitarem a definição limitada, as suas razões ajudar-nos-ão a entender melhor a sua (deles) posição no assunto.
O individual e/ou o sistema
Se aceitarmos a definição limitada verificaremos que há dois elementos a considerar para reduzir a corrupção – o comportamento das pessoas e os processos de controlo. Portanto, para se reduzir a corrupção faz sentido atacá-la de ambos os lados.
Neste debate, parece-me que Elísio realça demasiado o papel dos sistemas e presta menos atenção ao comportamento das pessoas, embora, segundo ele, “o que tem acontecido é que há uma espécie de agregação de reacções individuais à situação que [ele] chamaria de lógica situacional – que torna a reprodução dos sistemas políticos e económicos dependente da extracção” de fundos indevidamente.
Digo isto não porque não pense que valha a pena reformar os sistemas, mas porque considero que não se pode sublinhar demasiado a importância e a necessidade de reformar tais sistemas. É que, no meu entender, não é o combate à corrupção que o exige.
Explico-me. Tendo enfatizado, correctamente, penso, a importância e centralidade do comportamento das pessoas através do conceito de lógica situacional, parece-me que Elísio se retira dessa posição. Segundo ele, “A corrupção... é a resposta do nosso sistema político e económico à presença [da] oportunidade de apropriação de recursos sem referência ao jogo político normal.” Então, “só atacando esses problemas [estruturais] é que teremos uma pequena chance de, a longo prazo, começar a acabar com a corrupção de que tanto falam.”
Esta subtil mudança de perspectiva, do comportamento das pessoas para os sistemas, é desnecessária e indesejável, mas pode ser significativa também. Sê-lo-á se isto se tornar fonte de desacordo entre os dois lados do debate.
Essa mudança é desnecessária porque existe já um argumento independente, persuasivo e ainda mais forte pela reforma dos sistemas no país: um país democrático como Moçambique há-de ter instituições fortes que garantam a liberdade, a justiça social os direitos políticos, económicos, legais e sociais, sistemas transparentes e respeito pela propriedade, incluindo a pública. Eis um melhor argumento pela reforma dos sistemas. Note-se que estas reformas reduzirão o desperdício e a ineficácia que, e aqui concordo com Elísio, não constituem corrupção. Saliento também que, embora tais reformas não sejam necessárias para se reduzir a corrupção, elas têm um efeito instrumental sobre a corrupção. Quer dizer, produzem processos de controlo adequados que, por sua vez, podem impedir um aspirante a corrupção, embora não travem um corrupto resoluto. E é neste âmbito estrito que acima recomendo um ataque à corrupção por ambos os lados, o dos sistemas e o do comportamento dos indivíduos.
Finalmente, aquela mudança de perspectiva é indesejável pois concentrar-se em sistemas, como meio para combater a corrupção, pode emitir sinais errados, e até ser uma apologia de comportamentos prejudiciais ao público, ao invés de se incidir sobre o comportamento das pessoas corruptas. De modo algum implica isto uma cruzada moral, senão que as pessoas hão-de ser responsáveis pelas suas acções, afirmando-se portanto a convicção de que as pessoas são capazes de mudar de atitude.
Conclusão
Nesta contribuição, aventei que a afirmação de Elísio de que não há corrupção em Moçambique é infundada pois é possível definir a corrupção em Moçambique e que, por isso mesmo, precisamos ainda de um argumento persuasivo para alicerçar essa afirmação. Argumentei, ademais, que no combate à corrupção o enfoque há-de ser a responsabilidade pessoal, embora a reforma de sistemas possa ser útil.

Daniel Doku
Maputo, 6/12/05