Ideias para Debate

Wednesday, November 16, 2005

Novo texto do Elisio Macamo

Para além do comentário que colocou no meu anterior post o Elisio Macamo mandou mais o seguinte texto:


O combate à corrupção

E. Macamo

O Machado da Graça levantou uma questão muito pertinente sobre o destino que é dado aos impostos que ele, como cidadão consciente, paga. Ele não quer, e com toda a razão, que o seu dinheiro seja desviado por gente corrupta. O dinheiro que ele paga deve servir para melhorar as condições de vida gerais no País, única condição para que cada um de nós possa, de facto, alcançar objectivos individuais de forma lícita e justa.

Esta questão é pertinente porque nos remete para o verdadeiro problema por detrás da corrupção. Embora concorde com o Machado da Graça que não é nem correcto, nem justo, que se usem os impostos pagos pelos contribuintes para fins ilícitos e amorais, a maior tragédia em toda esta história reside no facto de que os impostos que cada um de nós paga em Moçambique são completamente irrelevantes para a estabilidade económica do país. Ao contrário de outras sociedades civilizadas, no nosso país a condição de contribuinte não nos confere nenhum protagonismo político. Moçambique não se reproduz a partir dos nossos impostos, mas sim a partir das rendas do auxílio ao desenvolvimento. Tal como acontece em países com uma forte dependência de rendimentos provenientes de um recurso natural – o petróleo, por exemplo – muitos dos problemas que temos resultam das deficiências do sistema de representação.

O Severino Ngoenha diz que o nosso sistema político não opõe partido no poder a partidos na oposição, mas sim classe política nacional e indústria do desenvolvimento. A corrupção de que tanto falamos – e conforme tentei explicar no artigo recentemente reproduzido aqui no blog – é a resposta do nosso sistema político e económico à presença desta oportunidade de apropriação de recursos sem referência ao jogo político normal. É daí que muitas vezes é fácil simplesmente co-optar os que reclamam muito. Arrisco-me aqui a aventar uma hipótese feia: se a corrupção fosse o bicho que dizem ser, a senhora que esteve à frente da Unidade Anti-Corrupção teria sido morta – pelo barulho que fez – ou teria apresentado casos sérios. Nada disso aconteceu e suponho que a razão tenha sido o facto de que muitas das coisas atrás das quais ela corria, não eram o que ela pensava que fossem. Era o mau funcionamento das instituições. A própria Unidade Anti-Corrupção era uma resposta a isso, isto é, também uma oportunidade para viver à grande (e não à custa dos nossos impostos que estes são totalmente irrelevantes).

Por isso volto a insistir: o nosso sistema político está doente, é ele que deve ser reformado. Alguns já me perguntaram como, se posso dar alguns subsídios. A democracia não é coisa fácil para uma sociedade como a nossa, onde há ainda muito espaço para consenso entre os vários grupos sociais. Suponho que a democracia, no Ocidente, tenha sido uma resposta ideal para conflitos entre grupos sociais que não tinham outra maneira de se articular de forma não violenta que senão pela transparência e legalidade.

Infelizmente, no nosso país, a democracia só tem lugar no interior de um único partido político, a Frelimo, o que atrofia, naturalmente, a esfera pública. Enquanto for possível fazer arranjos dentro da Frelimo, continuaremos a ter esta tendência de reproduzir um sistema político e económico que reage à presença do auxílio ao desenvolvimento. Para isto acontecer, não é necessário que a malta da Frelimo teça malhas de conspiração entre si. O único que é necessário é que cada um de nós responda ao seu instinto individual, que cada um de nós, enfim, faça o que está ao seu alcance para tirar proveito da actual situação. O resto segue: o mundo de negócios não se reproduz através da concorrência sã dentro dos limites marcados pelo mercado, mas sim com base nos arranjos feitos com aqueles que podem tomar decisões; da mesma maneira, o sucesso da política não se mede pelos resultados realmente alcançados, mas sim pela estabilização das oportunidades de apropriação dos recursos externos. Tudo isto acontece dentro dum clima perfeitamente legal em que os casos de roubos são raros.

Isto significa que uma das nossas prioridades deve ser a diversificação da esfera pública: devemos convidar os outros partidos políticos a articularem interesses sociais; devemos convidar a Frelimo a ver mérito numa estratégia de democratização real da sociedade; devemos criar organismos de defesa dos direitos do consumidor – que poderiam organizar boicotes contra instituições que funcionam mal, contra empresas que prestam maus serviços, etc.; devemos tornar claro aos vários grupos sociais que existem na nossa sociedade que alguns dos seus interesses são melhor protegidos numa esfera pública transparente, dentro de um clima de legalidade; devemos, inclusivamente, recorrer à desobediência civil em nome da responsabilização dos decisores políticos. O homicído praticado contra o chefe da cadeia da Machava, por exemplo, devia ter custado o emprego ao Ministro do Interior ou à Ministra da Justiça. Nenhum deles é corrupto, como muitos que gostam deste termo iriam logo dizer. Eles estão a trabalhar dentro de sistemas com procedimentos pouco claros, onde as responsabilidades provavelmente não são claras e onde não há critérios de avaliação de desempenho. Na acepção bastante inflacionária do termo corrupção preferida pelo Machado da Graça, tudo isso é corrupção. E considero essa maneira de ver as coisas muito problemática.

Devemos insistir num sistema político que devolve a responsabilidade pelas coisas às pessoas. O sistema de governação que temos, que prevê governadores provinciais nomeados pelo Presidente da República é mau. Para além de que essa instância é completamente desnecessária, ela asfixia o impulso de responsabilização que poderia existir se as pessoas fossem encorajadas pelo sistema político a zelarem por si próprias. Enquanto o nosso sistema político não conseguir devolver a responsabilidade pela limpeza de um bairro aos moradores desse bairro, será difícil criar essa cultura de responsabilidade. A responsabilidade não significa, neste caso, que as pessoas devem limpar as suas ruas. Significa apenas que deve estar claro para todos quem é o responsável pela limpeza e que existem mecanismos para obrigar essa pessoa a fazer o que deve fazer.

É por esta e muitas outras razões que considero problemática a insistência na corrupção, pois passa vista grossa à enormidade dos problemas que temos. É por esta razão que penso que temos a obrigação de insistir em definições apoiadas num jargão académico que não procura simplificar as coisas só porque “tudo está claro” e porque devemos “deixar de chavões”. A minha observação, segundo a qual as pessoas seriam de menor importância é, neste sentido, infeliz, pois de facto quem deve fazer as coisas são as pessoas. Queria apenas chamar atenção aos aspectos estruturais que parecem desaparecer das nossas considerações e mostrar que o problema é muito mais complicado do que pensamos.

Só mais uma coisa: ao abordarmos o sistema político devemos resistir à tentação de aceitar financiamentos da indústria do desenvolvimento, pois esse será, de novo, o princípio do fim...

1 Comments:

  • Já levantei algumas questões ao seu anterior texto. Não tenho a pretensão de que sejam importantes, mas procuro apenas partilhar algumas das dúvidas que se suscita a sua abordagem.
    1) Intriga-me que se diga que os nossos são «completamente irrelevantes». Se assim é, se nos isentassem o pagamento agradeciamos bastante;

    2) se a preocupação é com o «auxílio ao desenvolvimento», questiono-me se isso não onera o presente e as gerações futuras que terão de suportar o peso da dívida. E a questão fiscal é e será importante nesse caso;

    3) «outras sociedades civilizadas»?! gostava de perceber a que se refere.

    4)Não conheço o funcionamento interno dos partidos. Mas suspeito que se o partido frelimo fosse tão democrático como sugere, que isso, de alguma forma, reflectir-se-ia na sua governação. O seu argumento autoriza-me a concluir que a governação não é democrática. Estranho...!

    5) Quanto menos a academia se distanciar do quotidiano, pode ser que efectivamente as coisas estejam mais claras e que não seja necessário recorrer à chavões para explicar (ou desexplicar) o que toda a gente sabe. O que nos falta é acção! Ainda assim, há quem o faça...

    By Blogger Nkhululeko, at 7:17 AM  

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