Corrupção
Entretanto recebi o seguinte texto do Elisio Macamo. O próprio autor o considera como uma provocação. Sintam-se provocados:
Corrupção e desenvolvimento
Elísio Macamo
O silêncio que se abateu sobre o “blog” após a minha pergunta sobre o que é corrupção em Moçambique é interessante. Ou melhor, interpreto-o assim. É possível que haja outras razões para esse silêncio. Se calhar estão em exames ou ocupados a escrever novas opiniões para voltar a dar vida à esta página. Espero que seja isso mesmo.
De qualquer maneira, interpreto o silêncio como sendo interessante porque algo me diz que tem a ver muito com a pergunta. Todos sabemos o que é a corrupção até alguém nos pedir para a definirmos. Aí começam os problemas. De repente, aquelas coisas todas que interpretávamos como corrupção começam a ficar tremidas. Afinal, aquele ministro ricaço pode ter ganho lotaria; se calhar a criação de patos dá mesmo tanto dinheiro; quem sabe, não desapareceu realmente nenhum dinheiro do projecto não-sei-quantos, o que aconteceu foi apenas que o projecto foi mal concebido, mal gerido, etc. Em suma, de repente podemos nos dar conta de que, afinal, estamos apenas a utilizar a palavra corrupção como abreviatura para tudo quanto consideramos mau, não sabemos explicar, mas queremos de alguma ou de outra maneira perceber. Queremos, sobretudo, explicar o que não percebemos porque temos esta mentalidade profundamente supersticiosa que nos obriga a encontrar explicação para tudo. Mesmo ao preço de uma má explicação. Estou a exagerar, a ser injusto, generalizar, etc. Sei muito bem.
Sempre me opus à forma como discutimos a questão da corrupção no nosso País por uma razão muito simples: Nunca cheguei a perceber a utilidade analítica dessa discussão. O que mais me incomoda nessa discussão é que no final de todas as contas fala-se de integridade, como se a questão se resumisse – como bem diz Gabriel Muthisse – à degeneração moral da sociedade. A corrupção não é o problema que pensamos ser, mas mesmo assim devemos ficar preocupados. É um problema relacionado com o funcionamento das instituições, com a capacidade dos funcionários públicos de realizarem (tecnicamente) bem o seu trabalho, portanto, a sua formação, o seu brio profissional bem como o contexto jurídico em que eles trabalham. Aquilo que muitos de nós chamam de corrupção é muitas vezes o resultado da incapacidade do nosso País de fazer o tal desenvolvimento que dele se espera. Na verdade, para se desenvolver o nosso País precisava de ser já desenvolvido porque essa tarefa é tão complicada que ultrapassa as capacidades de um país como o nosso.
E é aqui onde, para mim, reside o problema. O “desenvolvimento”, isto é os projectos, as ajudas, os seminários, os reforços orçamentais, os mega-investimentos, etc., etc., chega ao nosso País em forma de rendas. Não sei exactamente se essas rendas produzem grupos de pessoas que se especializam na sua extracção, mas a verdade é que uma boa parte do nosso sistema político e do nosso sistema económico começa apenas a responder à presença dessas rendas. Roubos directos como os que aconteceram no BCM são uma excepção. É um pocuo o que escrevia Joseph Hanlon quando dizia que a nossa classe política aprendeu a dizer aquilo que a indústria do desenvolvimento quer ouvir. É isso mesmo. Não roubam, respondem apenas à presença da indústria do desenvolvimento. Na verdade, o que tem acontecido é que há uma espécie de agregação de reacções individuais à situação – que eu chamaria de lógica situacional – que torna a reprodução dos sistemas políticos e económicos dependente da extracção desta renda. A argumentação é um pouco marxista, mas não vejo, em princípio, nenhum mal nisso. Pelo menos ajuda-me a perceber a coisa.
Portanto, a renda extraída do “desenvolvimento” circula dentro de um grupo quase fechado de indivíduos que inclui políticos – governo e oposição – mundo de negócios através, por exemplo, de outorgação de contractos, sociedades, etc., e, naturalmente, vai para o consumo, um consumo muitas vezes conspícuo – como diria um sociólogo americano Thorsten Veblen e que Mia Couto ecoa muito bem nos seus “Sete sapatos sujos”. A circulação de rendas cria laços orgânicos entre os que beneficiam de tal maneira que tem um alto potencial de co-optação sem, contudo, produzir uma acção concertada como alguns de nós muitas vezes costumam supor. Funciona um pouco como aquilo a que Mangue se referia quando apelava para que recusássemos o conforto de soluções rápidas sempre que isso implicasse ir contra as regras de funcionamento de uma instituição: de cada vez que queremos ser membros de uma delegação para o exterior, sermos convidados a um seminário, ganharmos uma consultoria, sermos convidados a integrar o conselho de administração de uma empresa, sermos nomeados directores, tirar o passaporte, arranjar emprego para o primo ou sobrinho, etc. contribuimos, inadvertidamente, para transformar os nossos sistemas políticos e económicos em artefactos da intervenção externa. É às rendas que eles passam a reagir e não às necessidades de realmente desenvolver o País, seja lá o que for que isso significa.
Os economistas aqui me podem ajudar. Suponho que um dos efeitos nefastos desta situação seja o atrofiamento da concorrência, uma vez que os agentes económicos conseguem quase tudo que querem através dos laços que mantéem com os decisores políticos. Os preços sobem e descem ao sabor da vontade dos comerciantes, muitos dos quais metem os produtos sem pagamento dos devidos impostos. Não é, portanto, a corrupção que faz com que não haja investimento – ou que o investimento seja pouco – mas sim a falta de procura interna que poderia estimular a actividade económica. Do ponto de vista político o grande efeito é que nenhum partido político, nem mesmo a Frelimo, é capaz de produzir uma filosofia política capaz de servir de fio condutor à sua intervenção pública. A maior preocupação estratégica da Frelimo – que é legítima numa perspectiva individual, mas devastadora para a saúde do País – é de tornar a oposição irrelevante. A oposição, sobretudo a que é representada pela Renamo de Afonso Dhlakama, ajuda a Frelimo exigindo condições especiais para si própria – cimentando dessa maneira a subserviência à lógica das rendas – e, sobretudo, com a sua incapacidade de articular interesses sociais claros. Num País onde o desemprego é um grande problema e as condições laborais são uma grande lástima é estranho que o principal partido de oposição não consiga se afirmar como defensor desses interesses. A oposição perde mais tempo com discursos regionalistas muito fáceis de integrar na acção política dos que hoje deteem o poder político e, por via disso, inutilizar.
Qual é a solução? Não sei, ou melhor, há várias. Uma seria de parar completamente com o auxílio externo e obrigar a classe política – e isto inclui o governo, a oposição, os sindicatos, as organizações não-governamentais – a procurar no País as soluções para os problemas do País. Isso, como é mais do que óbvio, nunca vai acontecer. A própria indústria do desenvolvimento passou a depender tanto de “dar ajuda” que se não pode permitir o luxo de parar. A outra solução seria de encontrar maneiras de tornar o nosso sistema político mais democrático do que é agora para permitir que haja realmente debate de ideias. Pessoalmente privilegio esta solução. Enquanto o debate de alternativas de governação ocorrer só no interior da Frelimo, enquanto não houver espaço de articulação de conflitos fora da Frelimo e enquanto o melhor que a nossa oposição tiver a oferecer for o triste espectáculo do líder da Renamo e “intelectuais” que só falam de ladrões, de regionalismo, de transformação de bandidos em “heróis nacionais” (Matsangaíssa) teremos muitas dificuldades em eliminar a pobreza.
Guebuza tem razão quando insiste na ideia de que o nosso maior desafio é o combate à pobreza. Tem razão sobretudo porque tira as nossas atenções da chatice que é o tema corrupção. O grande problema que ele tem em mãos, contudo, é que a pobreza não se vai combater com o aumento da produção e com a moralização da função pública. A pobreza vai se eliminar a partir do momento em que ele reconhecer que o nosso sistema político é deficiente e que precisa de se livrar da teia insidiosa do auxílio ao desenvolvimento. Como isso vai ser feito no concreto, não faço a mínima ideia.
4 Comments:
Caro Macamo,
Você levanta em seu texto vários elementos interessantes. Em muitos aspectos estamos de acordo, mas, creio que desses elementos, cada um deles seria um debate a parte, cujo tema seria, talvez, o papel das instituições públicas ou da oposição; o papel..., etc. Mas, por ora, atenho-me à questão da "definição da corrupção", inclusive em Moçambique, atrazendo, de novo, a resposta ao comentário do texto anterior, mas sem, antes, deixar de reforçar em três aspectos para que a corrupção se caracterize como tal:
1 - a presença de um (vários) corruptos e corruptor (com variações, entre as quais a mesma pessoa pode, inclusive, exercer os dois papéis);
2 - os valores transacionados não têm muita importância no que diz respeito à caracterização desta;
3 - o mais importante da corrupção é o regime que se segue, como fruto da ruptura com o modo ordinário de se fazerem as coisas, conferindo privilégios a certos grupos.
Segue o comentário ao comentário relacionado ao texto anterior:
A preocupação em fazer um texto brevíssimo tem esses inconvenientes. Não consegui expressar com clareza o ponto de vista. Mas não esperava que ficasse tão breve e que, por isso, fosse simplificado ao ponto de só coincidimos no facto de eu ter exposto a idéia em dois ângulos, cabendo correção nos outros aspectos.
A idéia é de que, no primeiro ângulo, as circunstâncias e a oportunidade é que fazem o corrupto e corruptor (com algumas variações, em que, algumas vezes, o corrupto é fixo e outras o corruptor é que é – este só resolve as coisas dessa forma). Mas a principal característica é que é situacional, esporádica e oportunista. Como referi na nota explicativa no outro texto, esta também é corrupção, mas neste nível recorre-se ao eufemismo, alegando-se deficiências de outra ordem (baixos salários, etc.), o que ofusca o facto em si e como tal (corrupção). É oportunista porque, ocasionalmente, vai-se a uma instituição para obter um determinado documento, o B.I., por exemplo. Satura-nos a sucessão desse mesmo acto para outros documentos e instituições. Mas, na realidade, são isolados um do outro. Disso, o que podemos ter como visão geral, é a soma aritmética e esporádica de vários casos (o que não significa que seja menos preocupante – arranha os direitos das pessoas).
Por outro ângulo – e, neste, concordo com o Maximiano, que a questão não pode ser tão simplificada e representada pela apropriação (ou dividendos) indevida, porque o simples roubo ou o caso acima já caracteriza a apropriação indevida – a coisa é mais complexa. Não tem nada a ver com “o enriquecimento de uns em detrimento de outros” - depende da lógica de enriquecimento; aliás, o mais importante é a lógica subjacente e nem tanto os resultados (se se fica rico ou não) – e, menos ainda, tem algo a ver com o facto de tudo ser corrupção. Neste caso, e para ilustrar, não escolhi o cancro por acaso. É uma doença, mas nem toda a doença é cancro, como te pareceu.
O cancro, daí a analogia com este nível de corrupção, tem uma característica peculiar: primeiro, a forma ordenada de crescimento e reprodução celular, o que seria equiparado às instituições e às formas regulares de participação social. Mas, já num segundo momento, alguns fatores dentro das células (que se entenda de forma ampla dentro da analogia, instituições, por exemplo) provocam alterações que levam a uma mudança de funcionamento normal da célula, de forma rápida e incontrolável, que, por sua vez, em estágios avançados, pode passar de um tecido (órgão) para o outro e inclusive ser “assassina celular” transmitindo “informação invertida” (em relação ao inicialmente programado ou à forma ordenada). Aí surgem os tumores; aí está a corrupção.
Neste caso, não estamos diante de uma (várias) doença qualquer. Mas diante de um processo que em tudo se parece com o ordenado (daí a dificuldade dos anti-corpos de agir), menos na sua missão, na medida em que sofre mutações (influenciadas interna ou externamente, isto é, parte de corrupto ou corruptor interno ou externo à instituição) em que se estabelece o governo (no sentido de direcionamento) sustentado numa lógica invertida e pervertida; mutações estas que não só se estabelecem mas também tornam-se pré-estabelecidas, isto é, as pessoas passam a introjectar esta lógica como a forma “certa” de fazer as coisas. Neste caso, como diria Ruben Alves, “num mundo de fugitivos, quem estiver no sentido oposto, parece estar fugindo”. Ou seja, quem agir conforme o ordenado, parece ser corrupto (ou corruptor. São necessários os dois atores, embora, a dado momento, não precisem estar directamente relacionados; não sejam facilmente identificáveis). Isso acontece de várias formas: suborno, tráfico de influências, formação de cartéis, etc., que, em última análise, não só arranham, mas anulam o direito inclusive natural das pessoas.
Sem dúvida, é mais complexo do que isso. Mas, muito mais complexo que a apropriação indevida. Um contabilista de uma empresa pode se apropriar do que não lhe cabe, mas nem por isso ser corrupto; afinal, uma pessoa com cancro pode também estar com gripe (ou ter gripe sem cancro. A gripe, que é uma apropriação indevida do corpo pelo virus). O que é preciso é ver se está ou não a serviço daquela lógica invertida que “roe e sopra; roe e sopra” ou como faz o cupim na madeira: um serviço extremamente organizado de destruição.
Mas, mais complexo ainda do que definir a corrupção é estabelecer a dimensão real dela. Por exemplo, se se quer perceber a quantas anda o mercado de trabalho, não podemos limitar-nos a dizer que, se em 2004 foram criados 5 postos de trabalho e em 2005 mais 3, houve, portanto, um aumento. Mais do que isso, é preciso, também, um estudo comparativo para se verificar quantos postos deixaram de ser criados. Idem em relação à corrupção: quantas bolsas de estudo deixaram de ser criadas; quanto deixou-se de arrecadar (embora a arrecadação tenha aumentado nos serviços aduaneiros. Este número pode ser maior inclusive que o valor base); e em ultima instância, quanto de direito natural foi recusado...
By Mangue, at 5:19 AM
A pergunta do IO só o próprio Guebuza é que pode responder. Só oico dizer que é rico, mas como ainda nao deu a conhecer essa riqueza, nao parece prudente andar a especular. Se for rico, porém, nao vai ser por ter "roubado" seja o que for, mas sim por ter estado em posicao de tirar proveito das rendas do desenvolvimento. Neste ponto, estou em plena concordância com o Gabriel Muthisse quanto à inutilidade da caca às bruxas. Penso que falta acrescentar à essa observacao a necessidade imperiosa de nos preocuparmos mais ainda com a introducao de uma cultura de responsabilidade: as pessoas têm que ser forcadas a assumir responsabilidade pelo insucesso no trabalho que lhes foi confiado. Fazemos, a esse respeito, infelizmente, muito pouco ainda.
Quanto ao comentário feito pelo Mangue nao creio que a dificuldade esteja na falta de espaco para expôr as ideias. Está, talvez, na linguagem, que constitui um verdadeiro desafio para mim. Nunca tenho a certeza se o percebi bem. O seu argumento parece-me algo circular. Diz que para a corrupcao ser reconhecida como tal é necessário que haja um corrupto e um corruptor. A pergunta mantém-se: o que é a corrupcao? O que é um corruptor? O que é um corrupto? Parece-me pressupor justamente o que precisa ainda de ser explicado. O segundo critério nao me parece substancial, e o terceiro envereda, outra vez, pela circularidade: a corrupcao é aquilo que é produzido pela corrupcao!
Acho a imagem do câncro bastante interessante e gostaria de convidar o Mangue a explorar isto ainda mais. Se, como diz, a corrupcao é o tumor - e eu concordo - entao é preciso identificar o câncro. O câncro, o nosso problema, é o auxílio ao desenvolvimento, a dependência, os que nos querem desenvolver. O discurso anti-corrupcao mantém-nos captivos desse câncro.
A nossa resposta a este problema deve consistir em reflectir sobre as formas de tornar o nosso espaco político mais crítico, mais construtivo e mais nacional. Precisamos, já disse, de mais cultura de responsabilidade. O "desenvolvimento", atrevo-me a dizer, nao nos vai desenvolver...
By Elísio Macamo, at 12:13 PM
Acréscimo: distingo o câncro dos tumores que surgem na sua sequência e como resultado do tal crescimento celular.
By Elísio Macamo, at 12:17 PM
Não me parece que se possa dissociar a questão do «auxílio ao desenvolvimento», da corrupção e do neoliberalismo, assim como da questão da colinialidade do poder. Em todo o caso, apenas queria dizer que já chega de chavões... !!!
By Nkhululeko, at 2:20 PM
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