Ideias para Debate

Saturday, July 16, 2005

Espíritos

O Sergio Gomes mandou esta interpretação, pela via tradicional, do "espírito do deixa-andar":

Reflectindo Sobre o Espirito de Deixa Andar e o seu Combate

Tenho assistido à intervenção de varias personalidades de diferentes quadrantes de vida em Moçambique desde cidadãos comuns, politicos e académicos num exercício que visa perceber, esclarecer senão definir o conceito de ‘Espirito de deixa Andar’. O próprio Presidente da Republica (percursor do conceito) numa concentração em Gaza, e já apercebendo-se das contradições que o conceito criava, avançou a sua percepção sobre o conceito afirmando que se trata da “falta de humanismo e consideração sobre o sofrimento do próximo”. Visto desta forma, a implicação imediata é a necessidade de se humanizar as relações sociais e, sobretudo, aquelas que se desenvolvem entre o funcionário público e o utente dos serviços públicos. Ate aqui tudo bem estamos todos de acordo. O problema surge quando se procuram operacionalizar as implicações do proprio conceito, ou seja, que técnica, mecanismos ou etratégias devem ser aplicadas para a humanização das relações entre o funcionário e o utente dos serviços publicos? em suma, como credibilizar o sector público? Talvéz tenha sido este problema que fez com que um colega meu e amigo (William) procurasse saber a minha percepção sobre o conceito acima referido por, segundo ele, estar a provocar contradições. Ora, pelos dois textos publicados neste blog sobre o assunto, o presente do Alvaro Mabunda e um outro anterior do Tivane, e tambem pelas reações que tais textos provocaram entendo que a questão do fundo está nas formas de combate ao Espirito. Pretendo contribuir nesse aspectos trazendo primeiro a perepção que tenho sobre o conceito de Espirito de Deixa Andar.

Sobre a Origem do Espírito

Uma das formas mais fáceis, que encontro, para explicar o conceito de ‘Espirito de Deixa Andar’ é fazendo uma analogia (resumida) com as práticas tradicionais de certos povos do Sul de Moçambique e porque também acredito que foi de lá onde o percursor do conceito buscou a ideia do ‘Espírito’. Tradicionalmente um Espirito pode ser benigno quando ajuda e protege; e malígno quando prejudica a vida do seu portador. Nesta segunda dimensão, o Espirito encarna numa determinada pessoa muitas vezes exigindo uma divida incumprida ou porque a pessoa em causa tenha sido prometida ao espirito no passado. Como forma de se livrar do tal espirito, o portador deve ser submetido a um banho ou a um processo de lavagem para a remocao do espirito que é seguidamente acompanhado ao seu legitimo proprietario[1]. Portanto, o Espírito aqui tem dono que o recebe de volta livrando desta forma a vida do seu antigo hospedeiro e permitindo que esta pessoa passe a ter uma vida mais tranquila.

Como podemos ver, neste caso, o espirito encarna e prejudica apenas ao portador e seus próximos e a ele pertence a iniciativa para se livrar do tal Espirito. Diferentemente, o Espirito no sector público encarna no servidor publico, multiplica-se no ambiente do trabalho mas, preijudica não necessariamente o seu portador mas sim o utente do servicos publicos que é tratado duma forma desumana. O servidor publico afectado pelo Espírito fica insensivel aos problemas de quem o procura provocando danos por vezes iRreparáveis neste último. Este Espírito não tem sua origem em algo sobrenatural mas sim no proprio indivíduo que o acomoda. Há quem diga que este Espírito tem a sua natureza nas politicas de liberalização introduzidas a partir da segunda metade da década 80 e que foram percebidas como libertinagem por algumas pessoas no sector público. Ele encontrou mais espaço para reprodução e consolidação numa altura em que as pessoas passaram a olhar mais para si do que para os outros, quando o individualismo exacerbado venceu sobre o colectivismo, em fim, quando o Lobo venceu ao ser social.

Sobre o deixa Andar

O efeito imediato do espirito, na sua dimensão tradicional maligna, é de ‘não deixar andar’. Portanto, a pessoa afectada pelo espírito, fica quase bloqueada, tudo no que mexe dá errado, o azar e a má sorte passam a ser-lhe visitantes assíduos. Já na dimensão actual das relações servente/utente público, o Espírito provoca o deixa andar percebido como a indiferença perante as preocupações de quem procura o serviço publico bem como a demissão do funcionário das suas responsabilidades como servidor público. O Espírito provoca ainda o burrocratismo visto como excesso de formalidades e de procedimentos burocráticos que facilmente poderiam ser simplificados sem o prejuizo de processos administrativos ou da coisa pública.

Se aquele espirito tradicional é algo sobrenatural fora do controle de quem o hospeda, já o Espirito de deixa andar é humano, ou pelo menos, dominado por seu hospedeiro e age sobre a atitude e o comportamento deste em relação a segundos e terceiros na sua actividade laboral. Desta forma, definiriamos o Espirito de deixa Andar como “a predisposição do funcionário público para perturbar o decurso normal dos processos (administrativo, jurídico etc) bloqueando desta forma o fornecimento dum serviço publico de qualidade aos utentes”.

O Espirito de deixa andar é diferente da Corrupção. Contudo, uma pessoa afectada pelo Espírito de deixa andar é mais propensa a cair em actos de corrupção devido ao desespero dos utentes e à urgência que eles têm em ver tramitados os sus processos. É, no entanto dificil alinhar a relação causa efeito porque seria o mesmo que procurar saber o que veio primeiro entre a galinha e o ovo. É no entanto para reter o facto de ambos serem desvios que se alimentam e retroalimentam. O combate de um pode levar à liquidação do outro aspecto.

Como Combater?

Aquele Espírito tradicional é combatido via banho, e posterior acompanhamento ao seu legitimo proprietário. Casos há em que o espirito, porque forte, não pode ser removido. Aí, ele é isolado impedindo-se, deste forma, que ele exerça alguma influencia sobre a vida do seu hospedeiro. No presente caso, podemos dizer que porque este Espírito surgiu com a introdução do liberalismo em Moçambique, então, devemos devolve-lo às fontes do liberalismo. Errado. Ele não teria acomodação porque lá (Ocidente e suas instituições) não reina o deixa andar mas sim a perfeição, pontualidade, eficiência e cultura de bem servir. Então, ele é local e acima de tudo individual devendo o seu combate incidir sobre o individuo e as redes que permitem a sua multiplicação. Contudo, é preciso sublinhar que, o seu combate não deve de forma alguma implicar necessariamente o resgate das formas de gestão da coisa publica prevalescentes no período antes da implementação das politicas liberais. Seria fomentar o cultivo do centralismo e do autoritarismo. Uma das formas mais simples seria, neste caso, a identificação das pessoas acometidas pelo Espírito e o seu consequente isolamento e/ou expulsão do aparelho do Estado. O perigo está na possibilidade de se ter que expulsar grande parte do contigente do aparelho publico. E ainda, agindo assim seria ignorar as causas que facilitam a reprodução e consolidação do Espírito. Sou da opinião de que se deve combater primeiro as causas e depois avançamos gradualmente para medidas mais radicais em casos de persistência. E como seria feito isso?

  1. Recordo assistir a um juramento profissional cujo texto era o seguinte: “Juro pela minha honra, dedicar todas as minhas forças na prestação de um serviço publico de qualidade, no combate à corrupção, ao burrocratismo e ao Espírito de deixa andar”. Bom inicio para os futuros servidores publicos. Mas é preciso que este compromisso não seja um anexo ou não represente apenas uma simples formalidade de fim do curso e seja o reflexo dum conhecimento profundo das suas responsabilidade, adquirido durante todo um processo de formação. Portanto, a educação é uma das formas de combate ao Espirito nos potenciais agentes de reprodução desse mesmo Espirito.

  1. A outra forma seria o reconhecimento do trabalho dos servidores publicos. Este reconhecimento deve ser acompanhado por uma justa recompensa. Tem sido recorrente ouvir-se que “o Estado finge que me paga e eu faço que trabalho”. Trata-se de um jogo de cá se faz e lá se paga, sendo o utente dos serviços públicos quem mais prejuizos lucra deste braço de ferro. É, portato, necessário moralizar os servidores publicos atraves de pagamento dum salário condigno e sustentável para que se evite o uso e abuzo das facilidades do sector público para buscar alternativas que possam melhorar as suas condições materiais. Se o governo pagar condignamente terá reforçada a legitimidade de exigir o máximo dos seus funcionários.

  1. A outra forma seria a racionalização de mão-de-obra no sector público. Como se deve notar, há muita gente a trabalhar no sector público sem que tenha as suas tarefas claramente definidas. Ou por outra, há pessoas que não sabem o que vão fazer no serviço (que o diga o Ministro da Educação e Cultura). Por não terem as tarefas bem definidas, chegam e assinam o livro de ponto, passam o tempo a ler o jornal e a usar o telefone para tratar de assuntos particulares senão jogarem cartas no computador, para os que têm acesso a este instrumento de trabalho. A racionalização implica a colocação dum número necessário de funcionário para a realização de tarefas passiveis de serem avaliadas numa base mensal. A fórmula seria: menos funcionários públicos, mais eficiência, melhor salário e maior responsabilização.

  1. Recriminação em público. Esta parece a forma escolhida pela maioria dos dirigentes do actual governo. É valida mas julgamos que ela não deveria ser a primeira alternativa por estar a ser aplicada ignorando-se as causas do problema. Recriminar publicamente sem criar as condições para eficiência não resulta na remoção do Espírito de deixa andar, apenas atormenta-o e obriga-o a re-adaptar-se e buscar novas formas de actuação. O uso deste mecanismo em primeira instância provoca inimizades, torna o ambiente de trabalho tenso (oque pode diminuir a produtividade) e acaba assumindo um caracter de perseguição transformando-se numa questão pessoal entre o dirigente que o aplica e os visados.

  1. Expulsão. É o mecanismo que se deve aplicar em último recurso, esgotadas todas as formas anteriores e verificada a persistência do Espirito. A expulsão da pessoa que fomenta o Expirito na função publica irá prevenir que este se volte a espalhar e volte a afectar aqueles que ja se haviam livrado dele.

Só para terminar, gostaria de afirmar que medidas populistas são muito boas para se ganhar notoriedade a curto prazo. O povo (malta nós) aplaude pela percepção de se estar a fazer justiça mas, depois se cansa porque não existe nisso nada de sustentável a médio e longo prazos. É preciso tomar medidas que de per si representem fundamentos que impeçam que determinados comportamentos de deixa andar se reproduzam no futuro. Caso contrário será perca de tempo e, portanto, uma forma de Deixa Andar.

‘What About’

Misr



[1] O Elisio Macamo, pelo que já li dele, deve conhecer muito bem este exercicio e seria uma das pessoas mais indicadas para o descrever.

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