Ideias para Debate

Tuesday, April 05, 2005

cresce a sapataria

O debate lançado pelos "sapatos sujos" do Mia prossegue. Desta vez com um texto de Fátima Ribeiro:

Sapatos sujos e bailes de finalistas

Foi com o maior prazer que devorei o texto de Patrício Langa reagindo ao sétimo sapato sujo apontado por Mia Couto. Achei-o frontal, arejado, profundo e até estilisticamente interessante. Ao seu autor, pela forma audaz como critica e avança pontos de reflexão sobre a questão da identidade cultural, os meus parabéns, com os votos de que o seu exemplo e as suas ideias frutifiquem em todos nós.

Penso que o fundamental do ponto de vista de Patrício Langa, com o qual estou inteiramente de acordo, está contido nesta passagem que transcrevo: “Não é procurando uma identidade propriamente moçambicana que nos vamos tornar mais moçambicanos. Nessa busca quando muito só podemos inventar novas formas, novas maneiras, de ser, estar e sentir-se moçambicano (…) Essa invenção não implica recuperar alguma autenticidade, não implica negar aquilo que a televisão nos oferece, não implica rejeitar a valsa no baile de finalistas, não implica não usar véu e grinalda nas cerimónias de casamento… Esses produtos fazem parte daquilo que a modernidade tem para nos oferecer. Integrá-las ou não nas nossas trajectórias faz parte dessa processualidade que Mia reivindica ser constitutiva das identidades e eu acrescento das nossas individualidades. Cada um escolhe desde que o faça com responsabilidade os seus role models”.

À responsabilidade necessária na escolha dos modelos de que fala Patrício Langa eu apenas acrescentaria aqui “e sentido crítico”. Só para que fique bem claro, pois sei que é condição de responsabilidade e que Patrício Langa também o realça noutras passagens. Ilustro uma certa ausência desse sentido crítico voltando ao baile de finalistas, já abordado por todos os que intervieram no debate, incluindo Maria de Lurdes Torcato, Machado da Graça e José Xitsungo.

Diz Mia Couto que se está dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas decalcado do baile do seu tempo. Ora, o tempo de Mia é exactamente o meu tempo, e eu, infelizmente, acho que o decalque fica praticamente só por aí: na valsa, no traje e na eleição do rei e da rainha. E explico porquê.

O baile dos finalistas não era um fim em si. Era apenas mais um meio de angariação de fundos para um outro objectivo maior: um passeio, dias de convívio diferente entre todos os colegas, de conhecimento de outras terras, de novas vivências para todos. O meu grupo, finalistas do liceu de Quelimane no ano lectivo de 1973/74, com o dinheiro que conseguiu reunir organizando tardes desportivas e espectáculos musicais, servindo em restaurantes, e café e bebidas num pavilhão na FAE - a Feira das Actividades Económicas da Zambézia - trabalhando em bombas de gasolina, etc., foi de avião até Angola e lá passou uma semana, conheceu e conviveu com finalistas de Luanda. Outro grupo, este da Beira, fez uma viagem de barco, no paquete Pátria, até Pemba, na altura Porto Amélia, e ali esteve com finalistas de um liceu de Lourenço Marques.

Ora, o que hoje se verifica nas escolas de que estou informada é que o baile é o objectivo final de tudo quanto os estudantes fazem para angariar fundos ao longo de dois ou três anos lectivos. Trabalham, e muito – e alguns fazem-no com todo o entusiasmo e empenho – para consumir tudo numa noite, ou melhor, em 3, 4 horas ou pouco mais. Quase todo o dinheiro que juntam é para um jantar e uma ultra-requintada decoração, muitas vezes ignorando outros aspectos como a qualidade do som ou o bom serviço que ocasiões do género deveriam exigir. Nos vários bailes de hoje a que presenciei, nem sequer houve música ao vivo, coisa que era antes fundamental.

Outra importante diferença que noto entre o passado e o presente, é que se antes os mais velhos ficavam na festa pela noite dentro, dançando, conversando ou ao menos por sua presença estando com os mais jovens, hoje estes, terminada a parte protocolar, quase pedem aos pais que voltem para casa, pois querem pôr a sua música ou partir para uma discoteca, que já nada tem de singular em suas vidas.

Embora eu, por força da idade, me insira já nos “mais velhos”, não penso que sejamos o "padrão" e os mais novos o "desvio padrão". Também nisso estou com Patrício Langa. Mas acho que é fundamental os jovens conhecerem as experiências do passado para delas rejeitarem o negativo e aproveitarem quanto possam do que houver de positivo. Esse deveria ser o substrato do contributo de modernidade que compete aos jovens. Salvo raras excepções, é assim se faz o progresso.

No caso do baile dos finalistas, se bem que a sua preparação possa estar a contribuir para momentos de verdadeira e alegre camaradagem entre os estudantes, e isso é muito positivo, o baile em si está a sofrer uma erosão acelerada de outros aspectos do que era para mim sua essência. O enfoque está a ser posto na aparência (o quinto sapato sujo referido por Mia Couto), cultivada até ao extremo, e em muitos aspectos efémeros e fúteis. Na aparência, mesmo com valsa e vestido comprido, acho que só se ganharia se se tentasse algo mais original, até para o modelo não cansar. Mas seria sobretudo na essência que eu procuraria fazer a diferença. E essência para mim é o objectivo do baile – que, a meu ver, é urgente repensar - o convívio real entre finalistas, colegas, professores, pais e amigos, a passagem do testemunho aos futuros finalistas, sem descurar, é claro, a qualidade da música e da dança (já que de um baile se trata) e a criação de condições de bem-estar para os presentes.

E se essa diferença positiva (ou, por ausência dela, o actual estado de coisas) vingar no tempo tornando-se tradição, será, naturalmente, um elemento constituinte da nossa maneira de ser e estar, independentemente do que lhe quisermos chamar. A nós compete – ponto em que todos estamos de acordo - escolher desde já o que queremos, com responsabilidade e sentido crítico. O baile dos finalistas é apenas um exemplo.

Mas a minha geração – a da entrega generosa, como julgo poder chamar-lhe – pode ficar descansada. Felizmente existem jovens como Patrício Langa.

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