Ideias para Debate

Saturday, April 02, 2005

Cultura, identidade e História recente

A troca de ideias entre o Mia Couto e o Patricio Langa deu-me vontade de acrescentar mais alguma coisa ao debate. Não serão ideias muito profundas, que para isso não tenho formação. Serão mais resultados de uma observação ao longo dos anos.

Eu creio que a geração a que pertence o Patricio Langa foi vítima de uma violenta quebra histórica num momento fundamental da sua formação. Ao falar dele, a partir de agora, faço-o como parte dessa geração e não tanto a título individual.
Pois a verdade é que o Patricio nasceu com a independência de Moçambique, época de enorme orgulho nacional pela conquista da liberdade e de um sonho de rápido desenvolvimento para um país completamente diferente da colónia que tinha sido.
Um dos aspectos que é importante entendermos no texto do Patricio é o ele declarar-se um resultado do samorismo. E isso deve ser profundamente verdade, nos bons e em alguns maus aspectos.
Porque, entre outras coisas, Samora foi um homem da Modernidade. Foi um homem que tentou fazer o país sair da mediocridade da vida colonial, nas zonas urbanas, e da vida quase feudal, nas rurais, para um Século 20 adiantado, com os olhos no 21.
Samora não tinha grande paciência para o folclore e a cultura dita tradicional. Os olhos dele estavam essencialmente virados para o futuro, não para o passado.
Uma história que se contava era de um dia em que um novo embaixador da Suazilândia ia apresentar as suas cartas credenciais. Samora ainda o não tinha visto mas os jornalistas já. Por isso o Presidente perguntou, com ar irónico, aos jornalistas se o embaixador vinha “com aquelas penas na cabeça”. Para ele era inconcebivel aparecer com um trajo com peles e penas. Diz-se, de resto, que lhe desagradou bastante quando, a dada altura, lhe ofereceram uma pele de leopardo como símbolo do poder.
Esta postura de Samora reflectia-se nos mais diversos aspectos da sua governação:

. Adopção do Português como lingua única no ensino, sabendo perfeitamente que isso iria minar as línguas (e culturas) das diversas etnias bantus;
. Combate ao obscurantismo, reflectido essencialmente no confronto com os curandeiros e outros representantes das formas religiosas animistas. De alguma forma este combate estendeu-se mesmo às religiões ditas modernas;
. Abolição das chefias tradicionais e sua substituição por uma administração formada por jovens, com alguma formação académica e obedientes ao poder central e não às tradições locais.
. Industrialização acelerada, incluindo no campo, onde formas tradicionais de cultivar a terra (enxada, junta de bois e, muito raramente, tractor) foram substituidos pelas grandes auto-combinadas nas machambas estatais e cooperatives.
. Formação de forças armadas modernas, com aviação, tanques e equipamento pesado.

Foi neste ambiente que a geração de Patrício Langa nasceu e chegou ao início da adolescência.
Entretanto dá-se Mbuzini e essa geração, cheia de certezas, começa a ver essas certezas serem postas em causa e afastadas umas a seguir às outras. Voltaram os curandeiros, até com anúncios nos jornais; voltaram os régulos, chefes de terras e outros representantes do poder tradicuional local; fala-se cada vez mais na introdução do ensino primário em línguas bantu; as auto-combinadas apodreceram, tais como os aviões, helicópteros e tanques de guerra, e a agricultura e as forças armadas voltaram a ser feitas a pé e com meios idênticos ao periodo antes da independência.
Mas se os adultos conseguiram readaptar-se a essas formas antigas de viver, os jovens, nascidos após a independência, aceitaram muito mal esse retrocesso. Assistimos a revoltas dos filhos quando os pais resolveram vender a chave dos apartamentos nas cidades e voltar a ir viver para os subúrbios. Os jovens, nascidos já nesses apartamentos, com as suas comodidades rejeitaram voltar para um tipo de vida que já não tinham conhecido nem tinham vontade nenhuma de conhecer.
São esses jovens, a quem, no principio ou no meio da adolescência, é arrancado um projecto de vida e de país (não estou agora a examinar se era um projecto bom e viável) e é deixado um vazio. Com a vergonha do que estavam a fazer, os dirigentes nacionais foram mudando tudo, profundamente, dizendo sempre que não estavam a mudar nada e apenas a continuar o que vinha de trás.
Tudo isto deve ter sido profundamente perturbador para a geração do Patricio Langa. E não devemos admirar-nos muito se eles, educados na rejeição da cultura tradicional, foram procurar as formas de modernidade que estavam ao seu alcance. E essas, à falta de um projecto alternativo, eram as que lhes chegavam pelos relatos dos mais velhos (a “modernidade” da última fase do colonialismo) e o que a “caixinha mágica” da televisão lhes fazia entrar diariamente pela casa dentro, no caso dos jovens urbanos.
Creio, no entanto, que essa geração está a começar a encontrar o seu norte. Ou, pelo menos, já mostra sinais evidentes de que sente a necessidade disso. Casos como o do Movimento Artigo 48, de grupos como os 100 Crítica, músicas como o País da Marrabenta, mostram uma juventude que procura o seu caminho. E esse caminho não será, muito provavelmente, o da minha geração, mas não sera também, estou certo, o da alienação das americanices.
Uma amiga, a propósito deste debate, fez-me chegar uma citação. Infelizmente não dizia de onde a tinha tirado. De qualquer forma aqui vai:

“- Caminheiro, não há caminho.
- Caminhando se faz o caminho.”

E por aqui me fico.

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