Ideias para Debate

Saturday, February 19, 2005

Tribunal Administrstivo

Hoje vou deixar aqui o penúltimo texto da série que Elisio Macamo publicou sob o título comum: O Que a Campanha Não Discutiu.
Desta vez ele fala sobre a utilidade da acção do Tribunal Administrativo na moralização da administração pública:

(10) Reforçar o tribunal administrativo

Marcelo Mosse publicou poucos dias antes das eleições um artigo altamente preocupante no jornal Savana. Nele ele dá conta dos negócios de Armando Guebuza, presidente designado de Moçambique. Não há muitas razões para duvidar da veracidade do que ele relata nesse artigo. A sua preocupação quanto à integridade da luta contra a corrupção numa situação em que o chefe de Estado tem interesses económicos particulares em tantas áreas é justa e legítima. Devia deixar preocupado o próprio chefe de Estado.
Faço parte dos que no País consideram a retórica anti-corrupção bastante exagerada. Conforme defendi num artigo antigo publicado neste mesmo jornal a corrupção no nosso País não é o problema que muita gente pensa que é, mas mesmo assim devemos ficar preocupados. Nesse artigo considerei que uma das coisas que alimentava esta retórica anti-corrupção era a necessidade que a indústria do desenvolvimento tinha de justificar o seu próprio falhanço. Se depois de darem tanto dinheiro e imporem tantas condições o País teima em se manter na cauda das estatísticas internacionais de desenvolvimento, o único que podia explicar isso não poderiam ser os conselhos que nos dão de fora, mas a nossa própria integridade. Tínhamos que ser nós, ou melhor, os nossos dirigentes o problema. Na verdade, a retórica anti-corrupção recrudesceu em todos os Países que se submeteram aos remédios do consenso de Washington. Em todo o lado, África, Europa do Leste e América Latina.
Estas reservas não querem dizer que não haja corrupção. Com efeito, tendo em conta a natureza humana seria simplesmente ingénuo pensar que existam sociedades sem corrupção. Mesmo nos Países que procuram nos impôr esta cultura da integridade não passa uma semana sem que haja um escândalo envolvendo o uso indevido de fundos públicos ou, pior ainda, o aproveitamento de cargos públicos para fins pessoais. A diferença, contudo, é que na maior parte das vezes esses actos de corrupção nesses Países provocam um escândalo. Os perpretadores são expostos, têm que enfrentar a justiça e pagam caro politicamente. Isto tudo acontece sem unidades anti-corrupção de nenhuma espécie.
O que o debate no nosso País nunca abordou de forma consequente é justamente a ligação entre a corrupção e a eficiência do aparelho de Estado. Misturamos tudo. Se nada funciona ou se as coisas andam mal, dizemos que é por causa da corrupção. Pior ainda, contentamo-nos com afirmações do género “são esses corruptos aí”. Os mais activos entre nós prosseguem criando comissões de ética, unidades anti-corrupção, exigem a exposição dos bens privados de funcionários públicos, fazem distinções entre grande e pequena corrupção, seminários, etc. E como nenhuma dessas coisas vai acabar com a corrupção – porque a corrupção nunca vai acabar – temos matéria garantida para um estado de indignação permanente.
Uma parte considerável do que consideramos corrupção está directamente ligada à eficiência do aparelho de Estado. Por eficiência não entendo apenas o uso racional de recursos para o cumprimento das suas funções, mas o funcionamento de acordo com regras juridicamente estabelecidas. Qualquer instituição do Estado funciona de acordo com estatutos que estabelecem as suas funções, competências, limites e prerrogativas. Esses estatutos fornecem às instâncias de controlo os critérios de avaliação do desempenho duma instituição. No nosso País não é incomum que um órgão do estado funcione em completa transgressão dos seus próprios estatutos. Há estabelicimentos do ensino superior, por exemplo, que funcionam há anos sem os órgãos definidos nos seus próprios estatutos e ninguém, a partir do próprio dirigente, se chateia com a situação.
Durante vários anos fiz parte da direcção duma associação de académicos africanos na cidade alemã onde trabalho. Quando fizemos o registo da nossa associação tivemos que depositar os estatutos, os quais previam duas assembleias gerais por ano. Nos primeiros anos não tomamos muito a sério os nossos próprios estatutos e não realizamos as assembleias gerais de acordo com o disposto neles. Outras vezes pura e simplesmente não depositamos os relatórios das assembleias gerais no tribunal administrativo devidamente reconhecidos pelo notário. O tribunal administrativo por sua vez, e sem falta, periodicamente perguntava porque não cumpríamos com o disposto nos nossos estatutos e ameaçava-nos com sanções administrativas previstas na lei. Sem nenhuma necessidade de criação duma unidade anti-corrupção habituámo-nos à disciplina administrativa moderna.
Em Moçambique temos um tribunal administrativo, temos uma inspecção do Estado que, numa situação ideal, deviam tornar supérflua a unidade anti-corrupção. Compete a estas instituições velar pelo bom funcionamento do aparelho de Estado. O ministério X usou bem os fundos? A viagem do presidente para a província Y foi em missão do Estado ou do partido? Os fundos doados pela cooperação suíça foram empregues de acordo com o disposto no acordo de cooperação? A outorgação dum contracto obedeceu aos critérios definidos no concurso e a parte que ganhou fez de facto a melhor oferta? A expulsão dum membro dum partido obedeceu aos procedimentos dispostos nos estatutos do partido? E por aí fora. Um Estado que se pretende moderno e gostaria de fazer da corrupção um escândalo devia ter um tribunal administrativo e uma inspecção de Estado que funcionam.
É verdade que para que cheguemos a uma situação assim precisamos dum sistema judiciário íntegro, um quadro administrativo que funciona, instituições dispostas a controlar e sancionar, enfim, precisamos de alguém com vontade de pôr o guizo ao gato. Esse alguém só pode ser um chefe de Estado interessado não só no desenvolvimento do nosso País como também em manter a imagem de integridade que, apesar dos seus próprios interesses privados, o conduziu à Ponta Vermelha. Moçambique precisa urgentemente dum tribunal administrativo que funciona e que tem a vantagem adicional de expôr menos o punhado de gente que corajosamente vai perseguindo “casos de corrupção” na unidade anti-corrupção.

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