Ideias para Debate

Thursday, March 31, 2005

Carta do Mia Couto

Em resposta ao texto de Patricio Langa recebi a seguinte carta de Mia Couto:

Caro Patricio Langa

Foi um grande estímulo ter encontrado a sua resposta, os seus comentários a um texto meu. A qualidade da sua argumentação e a sua postura cordial foram um motivo de alegria, uma espécie de benção e de bálsamo. Não o conheço mas fiquei conhecendo o seu poder de argumentação e a elevada atitude sua num debate de ideias.

Sobre os comentários tecidos eu acho que pensamos de forma convergente. As suas observações são pertinentes e eu só posso dizer que tem toda a razão. Como deve entender o formato da minha intervenção com um tempo marcado não permitiu que eu pudesse desenvolver cada um dos “sapatos” da melhor maneira. Não serve isto de escusa ou defesa. As suas questões, afinal, me alertam para alguma incongruência na defesa daquilo que é tido como “de raiz” moçambicana e os pressupostos que a cultura não é comparável a uma árvore que dispõe de raízes naturais. Nisso estamos absolutamente de acordo. Na verdade, o que eu questionei não foi o vestido de gala, a valsa ou as grinaldas. Nem a absorção de modelos. Toda a cultura é produto dessas operações de import-export. O que me preocupa é uma certa incapacidade de produzirmos cruzamentos e mestiçagens por causa da hegemonia concedida a um tipo de cultura americanizada. Só isto.

Agradeço-lhe, caro Patrício, o alerta. E congratulo-o pela qualidade do seu texto. Atrevo-me mesmo a pedir-lhe que nos conceda mais. O nosso ambiente intelectual ficará certamente mais rico se o Patrício retirar da sua gaveta outros textos de intervenção que nos ajudem a pensar e a pensarmo-nos.

Um abraço

Mia Couto

Wednesday, March 30, 2005

Mais contas

Devido à chegada de uma série de textos actuais interrompi (acho que por demasiado tempo) a publicação da série de artigos do Joe Hanlon sobre o saque da nossa banca. De resto já só faltam dois. Aqui vai o penúltimo:



CONTAS EXTERNAS


Uma importante forma de fraude era tirar dinheiro das contas externas sem que isso fosse detectado nos registos em Maputo.
Todos os bancos têm ligações com os chamados 'bancos correspondentes' em outros países e estes bancos executam transacções sob instruções do banco que inicia a transacção - pagando e cobrando cheques e outras transacções. Os bancos em países pequenos guardam as reservas estrangeiras em contas no exterior, habitualmente em bancos correspondentes ou nos bancos em que são filiados. Nos anos 80 e até meados dos anos 90, antes de ser vulgarizado a informatização bancária por computador, as transacções eram feitas por telex seguido das confirmações documentais. Quem lidou com transferências do exterior sabe que existe uma taxa alta de erro e há sempre um grande número de items em contas transitórias. A reconciliação é sempre uma dor de cabeça, por muito boa vontade que haja.
Aqui a fraude básica é dar ordem de pagamento para uma conta externa - contra um telex, uma carta de crédito, um cheque, etc. - mas garantir que o pagamento não aparece nos livros em Maputo. Cresce assim a diferença entre a quantia que uma pessoa julga que tem numa conta, digamos em Nova York, e a quantia que está de facto na conta. Mas se não houver uma auditoria ou reconciliação, ninguém fica a saber da diferença. Assim era importante que não fosse feita nenhuma auditoria quando o BCM e o BPD foram comprados inicialmente.
O "ex-director do BCM" afirmava no Savana em Maio de 1995, que tinha detectado uma diferença de 12 milhões de dólares entre as contas no estrangeiro e os registos em Maputo, que a KPMG não tinha detectado porque havia uma contra-entrada na conta transitória. Outros funcionários bancários com quem falei sugerem que a diferença era ainda maior e há fortes suspeitas que na era de António Simões desapareceu mais dinheiro por este processo.
Em 1997 o BCM permitiu que as suas reservas externas se esgotassem, pagando as contas em dólares das contas externas mas não comprando mais dólares para substituir os pagamentos feitos. O BCM acabou por não ter dólares suficientes no exterior para cobrir os depósitos em dólares em Moçambique.
Poderia isto estar ainda a acontecer? De facto pode. Agora que o BCP detem o controlo total sobre o BCM e o BIM é impossível saber dos movimentos de dinheiro para dentro e para fora de Moçambique.
O mais interessante é que aparentemente isto também pode ocorrer com o BdM, o banco central, que provavelmente tem contas no exterior. O BdM é auditado pela KPMG que devia fazer as reconciliações. Mas as auditorias só são dadas ao BdM e ao Governo e não são públicas. Até agora, tanto a KPMG como o BdM recusaram falar connosco. E notamos que se fala insistentemente em lacunas da KPMG nas contas do estrangeiro do BCM. Assim é perfeitamente possível que os activos do BdM no estrangeiro também tenham ido pelo cano.

Monday, March 28, 2005

Cultura, identidade, etc

Depois do texto do Mia e da resposta de Patricio Langa recebi agora uma contribuição da Maria de Lurdes Torcato. Aqui vai ela:

“Identidade supra-identidades” ou finalmente um DEBATE!


A intervenção do Mia Couto chamada “oração de sapiência” – este nome também merecia uns comentários bem humorados – foi das produções intelectuais que mais brado deu no nosso círculo de amigos, conhecidos e concidadãos, nos últimos tempos. Está destinada a percorrer pelo menos o mundo lusófono, pela Net. Eu já a recebi de Angola no meu e-mail. A resposta assinada Patrício Langa também já circula e o Machado da Graça deve estar feliz porque o BLOG começou a animar!
P L afirma-se admirador de Mia Couto e chama-lhe “um dos nossos melhores escultores da palavra”, um elogio bem expresso que certamente deu satisfação ao elogiado, como deu a todos nós que gostamos do escritor. Diz que concorda com 90 por cento do conteúdo do texto sobre os “Sete sapatos sujos” e responde aos 10 por cento (ou ao último sapato), com que discorda. Talvez o Mia Couto não tenha tido tempo para se fazer compreender melhor, porque aparentemente deu a ideia de que estava a criticar os jovens, a “modernidade” do que se vê na TV e “desculturização”, equiparada à fuga às tradições, dos moçambicanos. Se eu li bem P L, foi isso que motivou a resposta dele e o título que deu “Os Alienados do Mia”. Eu não li o Mia Couto da mesma maneira, mas certamente porque temos todos sensibilidades diferentes e entre mim e o P L há uma geração ou mesmo duas de diferença. Mas apreciei a resposta dele que me encheu de esperança no futuro, não o meu bem entendido, mas o dos que tem idade para serem meus netos.
O P L até pode ser diferente da maioria, representar mesmo a nata dessa juventude que, hoje – como a juventude em todas as gerações – tanto irrita os mais velhos. Mas há verdades que têm de ser ditas. Vivemos mesmo à mercê de uma geração alienada. Os nossos meios de comunicação, incluindo as várias TVs - que me perdoem os que têm conhecimentos e maturidade bastantes para não serem influenciados por eles - são mesmo estupidificantes e alienantes. A que propósito é que se prestam a ser fiéis lacaios do consumismo que nos é vendido a todos sob com as mais diversas encadernações, desde o Dia dos Namorados – uma “tradição” da última meia dúzia de anos - até à “santa Páscoa”, que duvido saibam o que é? Uma criança de 6 anos com quem convivo, veio para casa na sexta-feira dizer que a professora (jovem) disse que era Páscoa e tinham de comprar um ovo de chocolate para comer na escola. A criança, por motivos culturais, em casa não ouviu falar de Páscoa nenhuma. Esta mesma criança a quem procuramos ensinar o que é uma alimentação saudável e racional, insiste em pedir “chips” iguais às que os outros meninos levam para lanche na escola e não gosta de levar banana porque lhe chamam macaco. Sabendo como é importante que a criança se sinta aceite pelos companheiros, a mãe vive um dilema e desabafa em desespero: “Só me faltava agora a ditadura do consumismo!”
Não estou contra a modernização, o apanhar o combóio do século XXI, só que no combóio vai muita carga deteriorada que temos todos de ajudar a deitar fora. O que devemos querer do moderno e do progresso, é aquilo que nos é realmente útil, que serve para nos libertar da ignorância e da pobreza, etc. etc. Não terei o mau gosto de repetir o discurso, mas concordo com ele. Quanto à imitação (também) do Ocidente, ela é inevitável. Do Ocidente (até agora) nos vem muita coisa útil, desde a cura para as doenças até aos mais avançados meios de comunicação. Não sei quem cunhou esta frase mas conheço-a como um interessante aforismo: “From the West, keep the best, leave the rest!” Infelizmente o que temos à nossa volta é o mesmo aforismo adulterado: “From the West, keep the worst, leave the rest”.
Deixem-me agora alargar-me um pouco sobre “tradição” assunto em que me sinto muito próxima do P L. Uma das coisas que me põe zangada é quando pergunto a uma colega, uma vizinha (de ascendência africana) porque fez isto, ou se sujeita aquilo, que não me parece bom para ela, me responde ( a mim que tenho ascendência europeia) com um olhar de pena pela minha ignorância ou desgosto pela falta de sensibilidade: “É a nossa tradição!” Fico calada mas de facto devia responder: “mas acha que eu não tenho tradições?” Na verdade tenho tradições, e se são inofensivas e até agradáveis como comer bacalhau no dia de Natal e dar presentes às crianças – não me importo de as seguir. Mas se entram em conflito com a minha liberdade de pensar e agir ou qualquer dos direitos que com tanto custo a humanidade conseguiu conquistar ao longo da história – aí não contem comigo.
Voltando ao que me trouxe aqui: parece-me que entre o P L e o Mia há convergência de ideias se levarem a discussão até ao fim. Escreve P L: Nessa busca (da moçambicanidade) quando muito só podemos inventar novas formas, novas maneiras, de ser, estar e sentir-se moçambicano. Estamos todos de acordo. Mas discordo que essa procura, culminando com uma invenção de “novas formas, novas maneiras, de ser, estar e sentir-se moçambicano” venha a dar na aceitação da “valsa das finalistas” ou do “véu e grinalda” no casamento. Que sentido fazem esses ingredientes hoje? A juventude criada na cultura onde isso nasceu, já não lhes liga. Porque haviam os moçambicanos, agora mais conscientes da sua identidade e orgulhosos da sua cultura (mistura de muitas culturas que por aqui andam até hoje) de as ressuscitar, em vez de fazer florescer qualquer coisa nova e tão diferente que o mundo olhe e admire? E acima de tudo, que os outros possam associar aos moçambicanos e só a eles? Essa seria a identidade supra-identidades que o Mia Couto parece antever e gostaria de acelerar.

Friday, March 25, 2005

QUESTÕES CULTURAIS

Há dias publiquei aqui o texto que o Mia Couto apresentou, como Oração de Sapiência, numa das nossas universidades.
Patricio Langa, que me parece ser um jovem estudante moçambicano na Cidade do Cabo, não concorda com as posições de Mia a respeito de uma série de questões culturais. E diz porquê:


OS ALIENADOS DO MIA

Sou da geração Samorista. É como decidi chamar aos que nasceram no desabrochar da independência. Não foi preciso ser nacionalizado, já nasci nessa condição naquele ano em que se nacionalizavam igrejas,escolas, hospitais etc. Tudo isso para reconstruirmos o orgulho de um povo martirizado por séculos de dominação colonial.Frequentei a escola primária naquela época em que ao caminhar pelas ruas era obrigatório deter a marcha quantas vezes nos deparassemos com uma instituição içando a bandeira ou cantando o "Viva Viva a Frelimo". Na escola levavamos boa tareia se o vinco das calças não fosse ao encontro da ponta aguçada da camurça. Enfim, sou dessa geração a que prefiro chamar de Samorista. Aprendi em casa e na escola a falar o Português.Changana ou qulquer outro idioma não oficial era proíbido sob pretexto de que deveriamos ser fluentes em português. A arma do colono que, apropriada, seria utilizada para a nossa emancipação. Por pouco tornava-me monolingue, se não fosse rebeldia que me levou ao Chagana da rua, e do bazar.Fico até atrapalhado quando, hoje, me perguntam qual é a minha língua materna e respondo: Português. Afinal o que é língua materna mesmo? No exterior a resposta é menos constrangedora por que a pergunta é formulada de outra maneira e quase sempre para preencher formulários.What's your first language? Em português, qual a tua primeira língua? Eu lá preenchia o que tivesse que preencher: Portuguêse. Hoje, por curiosidade, e interesse próprio como referi, que não tem nada que ver com o espírito nacionalista ou de busca de uma identidade autenticamente moçambicana, falo razoavelmente o Changana, entendo o Ronga e algumas palavras do Chope. Mas tenho irmãos, primos, vizinhos, amigos que não conhecem uma palavra das línguas não oficiais do nosso país, se não do português. Serão estes uns culturalmente alienados?Detesto a musica e a musicalidade portuguesas, com algumas poucas excepções. Gosto dum Ray Charles, Otis Redding, Clarence Cárter, ArethaFlanklin, Steve Wonder, Bob Marley para mencionar apenas alguns. A todos esses foi através da caixinha mágica da televisão que passei a conhecer.Aprecio as fantasias do Michel Jackson, apesar de repudiar, caso se confirme, o seu envolvimento pedófilo. Cá de casa, sou fã incondicional do autor de Mamana Maria, refiro-me, a Salimo Muhamed.Podia fazer todo este artigo só dos ingredientes que na minha curta trajectória de vinte e poucos anos foram se constituído em elementos decalcadores dos meus gostos e da minha identidade moçambicana.Tudo isto vem a propósito do texto do escritor Mia Couto com o título:"Os sete sapatos sujos". Mia fez, na abertura do presente ano lectivo,uma oração de sapiência sapiente numa das nossas Universidades privadas.Na verdade concordo em mais de 90% com os argumentos desenvolvidos por um dos nossos melhores escultores de palavras. Simpatizo muito, não só,com a veia artística da escrita do Mia, mas principalmente com a veia crítica do nosso processo histórico e do desiderato pelo desenvolvimento. Os sete sapatos do Mia revelam acima de tudo a finura com que o escritor e intelectual Mia escolhe as palavras certas para dizer coisas certas sobre o nosso destino comum, sobre o devir histórico da nossa moçambicanidade. Este artigo é reacção ao aperto que o sétimo sapato causa aos meus calos identitários. Na verdade o pensamento lá exposto não é novidade, para quem já lê Mia há algum tempo. Recordo-me assim ao de leve de um dos textos mais recentes do escritor com o título " a madrasta dos nossos filhos" publicado na revista Mais. Nesse texto Mia expõe as mesmas preocupações que as do sétimo sapato. O efeito da "sub-industria" televisiva sobre a nossa identidade. Como intelectual do final do séculoXX e início do XXI, a história não perdoaria Mia se não se referisse à televisão. "A ladra do tempo" como a chamou Sir. Karl Popper um dos mais destacados epistemólogos do século XX. Outros grandes pensadores e críticos da modernidade e da globalização também deixaram as suas inquietações com relação a televisão. Pierre Bourdieu, sociólogo Francês de gabarito é um deles. As críticas são diversas, desde o efeito perverso do roubo do tempo com consequências terríveis nos hábitos e rotinas quotidianas dos indivíduos aos horrores da pornografia infantil. Às vinte e trinta todo mundo esta colado à telinha. Até já lhe chamam de hora nobre. Quando de nobreza não vejo nada. As refeições são passadas na sala de estar ou melhor onde estiver a televisão, não raras vezes no quarto. Problemas de obesidade em crianças que passam horas a fio imobilizadas pelo aparelho já são reportados. Até as influências globalizantes do americanismo que como o escritor bem caracterizou nos transforma em meros consumidores e quase nunca em produtores de cultura se não de folclore para as horas mortas da TV. Muita coisa se pode dizer sobre os males que a televisão pode representar. Não me vou alongar nisso porque até concordo na generalidade com o nosso escritor.O problema no meu entender surge quando Mia transforma "os jovens" numa espécie de papagaio imitador. Isso até é o de menos, podia dizer macaco imitador dum certo americanismo Hip-Hopiano e Mac Donalizado. Para Mia essa é a marca da nossa juventude urbana. Acho que há um certo exagero nesta caracterização, assim como uma sobrevalorização dos efeitos perversos da telinha.Mia crítica os jovens que têm como modelo (Role Models) ou referência os Jacksons e companhia. Mia clama por uma produção duma identidade Moçambicana, ele não usa esta expressão talvez por ser politicamente incorrecta nos dias de hoje, autêntica no sentido Mobutiano.Há um problema no argumento do Mia sobre os processos identitários. Por um lado, e com muita perspicácia Mia defende a processualidade como sendo constitutiva das identidades, mas, por outro lado, simultaneamente reclama aquilo que considera serem valores Moçambicanos de raiz. O que define a Moçambicanidade desses valores? Eu questiono.A seguinte passagem dos sete sapatos é elucidativa neste sentido:"Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da JuliusNyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraízada na terra e na tradição moçambicanas".O que devo entender, como jovem Samorista, por cerimónia mais enraizada na terra e na tradição Moçambicanas? Devo entender um baile de finalistas na Josina Machel onde o mestre de cerimórias é o meu avô, de preferencia vestido de peles? Ou alguém vestido com aqueles trajes que só vejo nas coreografias da Companhia Nacional de Canto e Dança?Desculpe-me a indelicadeza da caricatura. Pode ser até ignorancia minha mas Mia, ajude-me a entender, o que existe de nacional ou tradicional nas danças e coreografias da companhia? Eu não vejo se não aquilo que dois históriadores britanicos, Eric Hobsbown e Terence Ranger, resolveram apelidar de "invenção da tradição". A "invenção da tradição" tem propósitos que só se podem explicar contextualizando-os no tempo e espaço em que ela ocorre. Só podemos entender a re-invenção, por exemplo, das autoridades tradicionais em Moçambique explicando a actual conjunctura socio-politica do pós-guerra e a moda da descentralização.Na sugestão do Mia pelo resgate da tradição quem seria o guia? Aquele que nos iria dizer: - sim, isto é nossa tradição, isto é correcto. Não, aquilo já é americanismo ou, por outra, já não nós identificamos com a tradição dos Nguni pois os Nguni foram também colonizadores; sim, aquilo é certo e aquilo não. Quem tem legitimidade para desempenhar o papel de guardião das verdades formulares sobre a "nossa tradição"? Os avós? Os curandeiros? Quem? Os mais "velhos"? Que categoria mais problematica e carregada de autoritarismo. Somos todos hermeneutas dos tempos modernos,velhos e novos. Nem sempre, aliás raras vezes, o baú acumulado das experiências do meu avô de 60/70 anos contém informações úteis paraorientar a minha experiência de existência presente. O mundo hoje muda a cada instante, tudo é novidade, é moderno.Mia fala-nos de processos naturais analogos a processos sociais. A passagem seguinte é ilustrativa do que digo: "Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante". A ideia da analogia em si não é má, mas perece-me problemática. O problema reside no facto de só captar o lado negativo desses processos. Esse julgamento negativo, só o é do ponto de vista de quem julga. Esses processos "geológicos", "geofísicos" ocorrem desde que a terra é terra. Eles passaram a ser considerados problema a partir da altura em que o homem quis contrariar sua tendência por meio da ciência.Os solos se auto-regeneram, as florestas idem e por aí diante e isso em si não é negativo. A culpa da erosão costeira na Costa do Sol não é das águas. É dos homens que acharam aquele lugar hospitaleiro. Os homens procuram estabelecer padrões de convivialidade com a natureza que nem sempre são compatíveis com os desejos daquela. O mesmo se pode dizer da humanidade. O problema da "erosão cultural", nem sei bem o que é isso, não reside na nova cultura ou novos modos de agir que surgem. O problema está naqueles que julgam esses padrões incompativeis com os seus próprios valores ou pelo menos com aqueles que desejariam ser os valores de uma sociedade como a nossa. O que estou a dizer é que o Hip-Hopismo,o Mac Donalismo não é problema em si. Só se torna problemático quando alguem os julga incompatíveis ou inaprórpiados para aquilo que devem seros nossos valores. Mas isso eu acho melhor deixar ao críterio de cada um. Ninguem escolhe a cultura ou povo em que nasce, mas pode escolher a cultura que quer desenvolver. É verdade que essa escolha pode e é condicionada. A questão não é ser ou não ser influenciado pela cultura americana veiculada pela televisão. A questão é quais são as alternativas de escolha de padrões culturais que se me oferecem, e dessas quais as que considero compativéis com os meus gostos e desejos.Não acho que deva existir alguem, uma autoridade, a fazer isso por nós, como se fez naquele tempo a que já me referi, do Samorismo. Acho que neste aspecto o Mia também concorda comigo.Retomando o meu questionamento ao Mia. Como é que o Mia sugere que se passem a realizar os nossos casamentos? Deixamos de ir ao Palácio de Casamentos na Julius Nyerere e chamamos os avós para legitimaram a união na famosa cerimónia do lobolo? Pergunto: Hoje em dia, o que há de tradicional na "tradição" do lobolo? Há pouco tempo assisti a uma cerimónia de lobolo.Vi tudo mais alguma coisa. Na lista entregue ao noivo constavam: Vinho do Porto, refrescos " Coca-Cola", fato para o paí, sapatos bico fino para a mãe, perfume, etc. A cerimónia era tradicional Mia?A transformação da tradição, ou melhor, a re-invenção das tradições fazem parte dessa mesma processualidade que Mia reclama na constituição das nossas identidades. Não reconhecer isso é reclamar um certo essecialismo na constituição dos processos identitários.Outrossim, a televisão não pode ser responsavel por tudo. Ocorre-me uma analogia que um crítico de Marx faz em um de seus escrítos. O referido crítico reconhece a validade de grande parte dos argumentos da teoria marxista. Mas considera que Marx usou uma espécie de lupa para ver a sociedade do seu tempo, e a imagem ampliada pela lupa só o permitiu ver homens a trabalhar. E assim Marx explicou tudo a partir das relações do trabalho. A Marx escaparam outras practicas sociais da vida quotidiana.Homens e mulheres fazendo. namorando, comendo, dormindo, etc. O mesmo poderia dizer-se do Mia com relação ao efeito da janelinha "mágica da televisão". Mia vê macacos imitadores sentados por defronte da tela, mimeticamente reproduzindo o americanismo Hip-Hopinano e MacDonalizado. Isso é problemático em minha opinião.O mesmo raciocinio que Mia utiliza quando se refere à tiragem e cobertura insignificante da nossa imprensa escrita, os jornais, e ao tipo de conclusões que podemos derivar nas nossas análises sobre os moçambicanos deveria aplicar à televisão. Quantos moçambicanos têm televisão? Mesmo considerando que se assista em casa do vizinho, temos que o número de telespectadores é menor que a população de um bairro de Maputo. É claro que Mia teve o cuidado de delimitar o seu espaço ou campo analítico. Refere-se no seu texto aos jovens no contexto urbano.Mas mesmo assim, nesse Moçambique urbano quantos têm uma televisão?Há aqui uma sobrevalorização do efeito televisão sobre a "cultura" dos jovens, principalmente porque esses jovens são tomados como marionetes miméticas. Que vão imitando, copiando como diz Mia, esse americanismoHip-Hopiano e Mac Donalizado sem nenhum sentido crítico. Já passou pelas nossas cabeças que o jovem pode estar a fazer uma opção consciente e consequente? Pode estar a calcular os custos e beneficios das suas opções? Entre escolher ser parecido ou assemelhar-se em termos de gostos a um Jackson, um Ja Rule ou a um joven lá do campo, lá da aldeia dos meus avós eu também preferiria a imagem Jacksoniana. Estarei por isso alienado? Nos finais da decada de 80 e principios de 90 eu não assistia espectáculos de músicos moçambicanos. Simplesmente porque a qualidade sonora era péssima. Preferia ouvir um bom Hip-Hop a ouvir uma marrabenta com uma qualidade sonora que ofendia os ouvidos. Essas opções Mia são racionais. No sentido de cálculo dos meios para atingir determinados fins. O fim neste caso era ouvir algo que agradava aos ouvidos. Que vantagens terei cantando um Hip-Hop aos invés de uma marrabenta? Não quero com estas palavras sugerir, de modo algum, que as preocupações deMia são ilegitimas e irrelavantes, pelo contrário, quero apenas sugerir a ideia de que essas imagens todas que se nos oferecem pela televisão são apenas mais um ingredente que poderá ou não constituir-se em elemento da nossa identidade. Cabe a cada um de nós o devido sentido crítico para saber quanto de pimenta pôr no seu prato. Não é procurando uma identidade propriamente moçambicana que nos vamos tornar mais moçambicanos. Nessa busca quando muito só podemos inventar novas formas, novas maneiras, de ser, estar e sentir-se moçambicano. Nisso eu acho que estou em acordo com o Mia. Essa invenção não implica recuperar alguma autenticidade, não implica negar aquilo que a televisão nos oferece, não implica rejeitar a valsa no baile de finalistas, não implica não usar veu e grinalda nas cerimónias de casamento. Nisso eu acho que estou em desacordo com o Mia. Esses produtos fazem parte daquilo que a modernidade tem para nos oferecer. Integrá-las ou não nas nossas trajectorias faz parte dessa processualidade que Mia reivindica ser constitutiva das identidades e eu acrescento das nossas individualidades. Cada um escolhe desde que o faça com responsabilidade os seus (role models). Enganamo-nos se achamos que os encontramos no passado. Esses do passado, como já referi, não servem para o mundo que vivemos actualmente, alías a única maneira de acedermos a eles é reiventando-os, reinterpretando-os. Nesse processo de reinvenção não há como escapar às influências externas. Cabe a cada um saber fazer as escolhas.Alias o remoto ajuda-nos a fazer isso.

Patricio Langa
Cape Town, 24/03/05

Tuesday, March 22, 2005

Governo

O Book Sambo tem um blog chamado "pensamento revolucionario". Nele publicou o texto que se segue:

CONFIANCA POLITICA VERSUS COMPETENCIA TECNICA

Olhando para o panorama sócio-político em Moçambique, quer- me parecer que o governo é formado na base da confiança política. Raramente a competência técnica é tida como o primeiro requisito para a atribuição de uma pasta como a de ministro. Só para exemplificar tenho a me referir que no governo que vigorou de 1999 à 2004, tinhamos no Ministério dos Negócios Estrangeiros, um médico ao invés de um diplomata; no Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural, um veterinário ao invés de um agrónomo; no Ministério do Interior, um piloto, ao invés de um polícia; e assim por diante. Situações como estas repetiram-se no actual governo de 2004-2009. Não quero com tudo isto dizer que a confiança política é de todo inútil. Mas que seja conciliada ao lado técnico. É dificil dirigir bem se não conhecemos as ferramentas de trabalho. É sobre este aspecto que pretendo comentar, de modo a suscitar um debate aos interessados na matéria.O argumento mais conhecido ou mais difundido (sobretudo de maneira informal ou não oficial) para esta prática alude ao facto de que um indivíduo de confiança será sempre fiel e obediente ao que o nomeou. Isto implica fazer tudo conforme às ordens que lhe forem imputadas. Se este argumento é realmente usado pelos de direito, dá para ver muitos aspectos que se contradizem com o discurso político em voga. Este discurso apregoa a luta contra a corrupção, a pobreza absoluta, o famoso espírito do deixa andar, entre outros.Ser fiel até ao nível supracitado, implica até certo ponto assumir um papel passivo face aos erros do nosso amo. Porque deixaremos de ser de confiança se apontarmos os seus erros e mostrarmos o perigo que eles constituem para a melhoria do nível de vida dos moçambicanos. Por outras palavras, preferir gente de confiança ao invés de gente competente, significa negligênciar os técnicos, temendo ser magoado com verdades. É neste sentido em que se verifica uma contradição entre o que se promete fazer durante os discursos políticos pré-eleitorais e o que é feito após a tomada do poder.Segundo Stephen Kanitz – Professor Titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, e autor da obra Brazil – The Emerging Economic Boom – o erro que a maioria dos politicos eleitos comete é desconhecer uma das leis básicas da administração: todo cargo, seja público, seja privado, é de total e irrestrita desconfiança. Infelizmente, todo colaborador, por mais amigo que seja, precisa ser tratado com certa dose de desconfiança.Cargo de confiança é simplesmente um conceito anacrônico, algo do passado pré-gerencial. Num mundo competitivo, todos os cargos, incluindo os do governo, precisam ser de total e irrestrita competência, e não de confiança.Um governo formado pela confiança política, implica pôr os sapateiros a trabalhar na padaria; os mecânicos na cozinha; e os eletrecistas na machamba. A consequência de tudo isto é óbvia.Ao invés de termos um governo executivo do seu programa, teremos muito provavelmente um governo estagiário durante o seu mandato. Neste tempo todo os sapateiros não estarão a produzir o pão. Estarão a aprender fazê-lo. Da mesma forma os mecânicos estarão a aprender a cozinhar; e só no outro mandato é que começarão a cozinhar; mas só se aprenderem a cozinhar.Situações como estas implicam uma paralização no avanço do país por mais cinco anos, o que seria evitável se se apostasse nos técnicos, ou seja nos indivíduos competentes. Por exemplo, um governo apostado em tecnocratas, poderia nomear ao fulano que criou um software para o controle de todas as chamadas telefónicas (telemoveis e telefixos), à pasta de ministro das comunicações. O empenho deste no seu trabalho é movido por um conhecimento de causa sobre o mesmo, o que seria diferente se estivessemos na presença de um caloiro na material.Alguém poderia dizer que o ministro não executa o trabalho técnico, apenas controla-o para que se alcance as metas previamente traçadas. Mas nem porisso deixariamos de precisar um ministro que entende bem da material. Sai mais em conta um grande padeiro a controlar o trabalho dos seus homens na padaria, do que o mesmo control ser feito por um carpinteiro.Apropriando-se das palavras de Kanitz poderiamos propor para a solução do problema vivido em Moçambique o seguinte: em vez de se contratar um amigo do peito, selecione-se o melhor e mais qualificado profissional possível para o cargo, independente de conhecê-lo ou não. Em seguida, cerque-se o contratado de controles gerenciais, fiscalização interna, auditoria externa, o que for necessário para manter o pessoal na linha. Se for possível associar as competências técnicas à confiança política, menos mal ainda. Na ausência destas duas pré-condições, é preferível uma competência técnica ao invés de uma simples confiança pessoal ou política.Os políticos são famosos pela sua retórica, e capacidade de persuasão das massas. Quando fracassam nos seus deveres têm sempre argumentos para-se justificarem. Na fase em que estamos, o nosso país não poderá avançar com desculpas, mas sim com resultados concretos do nosso trabalho, conforme referiu o sociológo moçambicano Elíso Macamo. Apostando na competência técnica estaremos deste modo a evitar contradições entre o que se promete fazer e o que é feito.

Sunday, March 20, 2005

Lavagens

Depois de um intervalo para meter um texto meu e outro do Mia Couto, volto à série do Joe Hanlon sobre o assalto à banca moçambicana:



LAVAGEM DE DINHEIRO


(Maputo) Lavagem de dinheiro é um importante aspecto da corrupção na banca em Moçambique, de acordo com todos os antigos funcionários bancários com quem falámos.
"Lavagem" é a conversão de dinheiro "sujo" ou ilegal - subornos e "luvas", dinheiro subtraído a contratos da ajuda internacional, rendimentos não declarados para fugir aos impostos, lucros do tráfego de droga e dinheiro roubado de bancos - em dinheiro "limpo" ou legal, depositando-o numa conta bancária, de preferência no estrangeiro, onde ele possa ser usado.
Actualmente, todo o lucro bancário em Moçambique vem de transacções em divisas, em parte geradas pelo grande fluxo contínuo da ajuda internacional. Mas há também transferências de dinheiro ilegal. A lavagem de dinheiro é um dos grandes problemas a nível internacional e os bancos devem em princípio conhecer sempre se a origem de vultuosos depósitos e transferências é legítima, antes de os aceitarem. Mas como nos disse um antigo funcionário bancário, em Maputo, "se alguém quer fazer um depósito, ninguém lhe pergunta de onde veio o dinheiro".
Algum do dinheiro é inicialmente em numerário e assim passa através das casas de câmbio que são um importante foco de corrupção bancária. Moçambique importa 10 milhões de US$ por semana em notas de banco e algumas delas são exportadas na mesma forma, literalmente levadas em malas. Diamantino dos Santos, o Procurador de Maputo actualmente fugido à justiça em parte incerta, alegou que Alberto Calú vendia "substanciais quantidades de divisas a indivíduos, violando as leis de controlo de câmbios". Calú era o responsável pelo sector de moeda estrangeira no BCM antes da privatização e da "era Simões".
Lavagem de dinheiro e transferências de dinheiro para o exterior têm sido um problema desde os meados dos anos 80. De acordo com um antigo funcionário bancário, uma das formas mais vulgares de lavagem de dinheiro é uma determinada companhia apresentar documentos de importação no valor, digamos, de 2 milhões de US$. A transferência desse dinheiro para o exterior é devidamente autorizada para pagar as facturas. Mas a troco duma comissão, o banco não carimba o documento original de importação e o "importador" pode ir com ele a outro banco pedir outra vez a mesma transferência e depois ainda pode ir a um terceiro banco. Houve um banco que questionou este tipo de transacção, pedida por uma conhecida empresa de 'import-export' considerada próxima do partido Frelimo e o gabinete da Presidência interveio para resolver o problema, conta a mesma fonte bancária.
Em artigo no Savana de 7 de Abril de 2000, um anónimo "ex-director do BCM" afirmava que no início dos anos 90, o BCM estava envolvido nisto. Outros bancários também apontam para o Banco Austral. O computador principal do banco era o computador do SBB, na Malásia. Tendo o computador principal fora do controlo das autoridades moçambicanas, facilitaria a lavagem de dinheiro.
Mas foi a violência relacionada com o primeiro novo banco privado em Moçambique, o BIM, que em 1997 chamou a atenção para a importância deste problema. O BIM, que tinha aberto em 1995, pertence em 50% ao Banco Comercial Português, BCP, 25% à International Finance Corporation do Banco Mundial, 22,5% ao Estado moçambicano (dividido por Estado 8,75%; INSS 7,5%; EMOSE, 6,25%), e os restantes 2,5% à Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade, de Graça Machel. O PCA do BIM é o antigo primeiro-ministro Mário Machungo e o seu Director Executivo era, em 1997, José Alberto de Lima Félix, vindo do BCP. Fontes do banco dizem que, embora Machungo tivesse o controlo geral, a maior parte do trabalho-chave do dia a dia estava a cargo do pessoal português, nomeado pelo BCP.
Jorge Correia Rijo era director de private banking para o BCP em Portugal, mas foi demitido em Março de 1997 e acusado de fraude em Agosto de 1997. Diz-se que desviou milhões de dólares, particularmente de angolanos, mas também de moçambicanos. Emitia o que parecia serem recibos do BCP, mas de facto ficava com o dinheiro para ele. O responsável de uma empresa moçambicana de 'import-export' diz que perdeu 5 milhões de US$.
Surpreendentemente, Jorge Rijo fugiu para Moçambique onde parecia ter protecção. Em Outubro de 1997 esteve envolvido num acidente suspeito quando o carro em que viajava capotou perto de Xinavane. A ambulância que o transportava para o hospital em Maputo, envolveu-se por sua vez noutro acidente.
O BIM começou rapidamente a atrair substanciais depósitos em moeda estrangeira, em parte porque foi o primeiro banco a permitir levantamentos em contas sem serem em meticais, sem aviso prévio. Mas o caso de Jorge Rijo levantou interrogações sobre a possibilidade de lavagem de dinheiro no BCP e no BIM. O Director nomeado pelo BCP, José de Lima Félix, começou a verificar com mais cuidado esta questão e no início de Dezembro encontrou coisas que o preocuparam. Foi alvejado e morto em frenta à casa de um amigo na Av. Armando Tivane, às 20:20 do dia 2 de Dezembro de 1997 - antes de poder contar a mais alguém o que tinha descoberto. Foram sentenciadas três pessoas pela sua morte que era atribuída a um assalto mal sucedido para roubar o carro. Amigos de Lima Félix e funcionários superiores bancários rejeitam isto completamente e dizem que o mataram porque ele tinha descoberto alguma coisa relacionada com lavagem de dinheiro.

Friday, March 18, 2005

Sapatos Sujos

O escritor Mia Couto fez a Oração de Sapiência numa das nossas universidades. É um texto notável e que se integra perfeitamente no espírito que pretendo que este blog tenha: o debate de ideias. Saboreiem:

OS SETE SAPATOS SUJOS


Começo pela confissão de um sentimento conflituoso: é um prazer e uma honra ter recebido este convite e estar aqui convosco. Mas, ao mesmo tempo, não sei lidar com este nome pomposo: “oração de sapiência”. De propósito, escolhi um tema sobre o qual tenho apenas algumas, mal contidas, ignorâncias. Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho.

Falarei aqui na minha qualidade de escritor tendo escolhido um terreno que é a nossa interioridade, um território em que somos todos amadores. Neste domínio ninguém tem licenciatura, nem pode ter a ousadia de proferir orações de “sapiência”. O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades. É isso que venho fazer, partilhar convosco algumas das minhas dúvidas, das minhas solitárias cogitações.

Começo por um fait-divers. Há agora um anúncio nas nossas estações de rádio em que alguém pergunta à vizinha: diga-me minha senhora, o que é que se passa em sua casa, o seu filho é chefe de turma, as suas filhas casaram muito bem, o seu marido foi nomeado director, diga-me, querida vizinha, qual é o segredo? E a senhora responde: é que lá em casa nós comemos arroz marca…(não digo a marca porque não me pagaram este momento publicitário).

Seria bom que assim que fosse, que a nossa vida mudasse só por consumirmos um produto alimentar. Já estou a ver o nosso Magnifico Reitor a distribuir o mágico arroz e a abrirem-se no ISCTEM as portas para o sucesso e para a felicidade. Mas ser-se feliz é, infelizmente, muito mais trabalhoso.

No dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 5 de Julho de 1966, o Presidente Kenneth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído. Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimento na criação da primeira universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Universidade. A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que imaginavam ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos deixarão de passar fome.

Quarenta anos depois, os netos dos camponeses zambianos continuam sofrendo de fome. Na realidade, os zambianos vivem hoje pior do que viviam naquela altura. Na década de 60, a Zâmbia beneficiava de um Produto Nacional Bruto comparável aos de Singapura e da Malásia. Hoje, nem de perto nem de longe, se pode comparar o nosso vizinho com aqueles dois países da Ásia.

Algumas nações africanas podem justificar a permanência da miséria porque sofreram guerras. Mas a Zâmbia nunca teve guerra. Alguns países podem argumentar que não possuem recursos. Todavia, a Zâmbia é uma nação com poderosos recursos minerais. De quem é a culpa deste frustrar de expectativas? Quem falhou? Foi a Universidade? Foi a sociedade? Foi o mundo inteiro que falhou? E porque razão Singapura e Malásia progrediram e a Zâmbia regrediu?

Falei da Zâmbia como um país africano ao acaso. Infelizmente, não faltariam outros exemplos. O nosso continente está repleto de casos idênticos, de marchas falhadas, esperanças frustradas. Generalizou-se entre nós a descrença na possibilidade de mudarmos os destinos do nosso continente. Vale a pena perguntarmo-nos: o que está acontecer? O que é preciso mudar dentro e fora de África?

Estas perguntas são sérias. Não podemos iludir as respostas, nem continuar a atirar poeira para ocultar responsabilidades. Não podemos aceitar que elas sejam apenas preocupação dos governos.

Felizmente, estamos vivendo em Moçambique uma situação particular, com diferenças bem sensíveis. Temos que reconhecer e ter orgulho que o nosso percurso foi bem distinto. Acabamos recentemente de presenciar uma dessas diferenças. Desde 1957, apenas seis entre 153 chefes de estado africanos renunciaram voluntariamente ao poder. Joaquim Chissano é o sétimo desses presidentes. Parece um detalhe mas é bem indicativo que o processo moçambicano se guiou por outras lógicas bem diversas.

Contudo, as conquistas da liberdade e da democracia que hoje usufruímos só serão definitivas quando se converterem em cultura de cada um de nós. E esse é ainda um caminho de gerações. Entretanto, pesam sobre Moçambique ameaças que são comuns a todo o continente. A fome, a miséria, as doenças, tudo isso nós partilhamos com o resto de África. Os números são aterradores: 90 milhões de africanos morrerão com SIDA nos próximos 20 anos. Para esse trágico número, Moçambique terá contribuído com cerca de 3 milhões de mortos. A maior parte destes condenados são jovens e representam exactamente a alavanca com que poderíamos remover o peso da miséria. Quer dizer, África não está só perdendo o seu próprio presente: está perdendo o chão onde nasceria um outro amanhã.

Ter futuro custa muito dinheiro. Mas é muito mais caro só ter passado. Antes da Independência, para os camponeses zambianos não havia futuro. Hoje o único tempo que para eles existe é o futuro dos outros.

Os desafios são maiores que esperança? Mas nós não podemos senão ser optimistas e fazer aquilo que os brasileiros chamam de levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. O pessimismo é um luxo para os ricos.

Meus senhores e minhas senhoras

A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores de futuro.

Falo de uma nova atitude mas a palavra deve ser pronunciada no plural, pois ela compõe um conjunto vasto de posturas, crenças, conceitos e preconceitos. Há muito que venho defendendo que o maior factor de atraso em Moçambique não se localiza na economia mas na incapacidade de gerarmos um pensamento produtivo, ousado e inovador. Um pensamento que não resulte da repetição de lugares comuns, de fórmulas e de receitas já pensadas pelos outros.

Às vezes me pergunto: de onde vem a dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem sobretudo de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora, são ajudados a sobreviver no quintal da História.

Estamos todos nós estreando um combate interno para domesticar os nossos antigos fantasmas. Não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. À porta da modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos. Haverá muitos. Mas eu tinha que escolher e sete é um número mágico.

O primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas

Nós já conhecemos este discurso. A culpa já foi da guerra, do colonialismo, do imperialismo, do apartheid, enfim, de tudo e de todos. Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade sempre morou dentro de casa.

Estamos sendo vítimas de um longo processo de desresponsabilização. Esta lavagem de mãos tem sido estimulada por algumas elites africanas que querem permanecer na impunidade. Os culpados estão à partida encontrados: são os outros, os da outra etnia, os da outra raça, os da outra geografia.


Há um tempo atrás fui sacudido por um livro intitulado Capitalist Nigger: The Road to Success de um nigeriano chamado Chika A. Onyeani. Reproduzi num jornal nosso um texto desse economista que é um apelo veemente para que os africanos renovem o olhar que mantém sobre si mesmos. Permitam-me que leia aqui um excerto dessa carta.

Caros irmãos: Estou completamente cansado de pessoas que só pensam numa coisa: queixar-se e lamentar-se num ritual em que nos fabricamos mentalmente como vítimas. Choramos e lamentamos, lamentamos e choramos. Queixamo-nos até à náusea sobre o que os outros nos fizeram e continuam a fazer. E pensamos que o mundo nos deve qualquer coisa. Lamento dizer-vos que isto não passa de uma ilusão. Ninguém nos deve nada. Ninguém está disposto a abdicar daquilo que tem, com a justificação que nós também queremos o mesmo. Se quisermos algo temos que o saber conquistar. Não podemos continuar a mendigar, meus irmãos e minhas irmãs.40 anos depois da Independência continuamos a culpar os patrões coloniais por tudo o que acontece na África dos nossos dias. Os nossos dirigentes nem sempre são suficientemente honestos para aceitar a sua responsabilidade na pobreza dos nossos povos. Acusamos os europeus de roubar e pilhar os recursos naturais de África. Mas eu pergunto-vos: digam-me, quem está a convidar os europeus para assim procederem, não somos nós? (fim da citação)
Queremos que outros nos olhem com dignidade e sem paternalismo. Mas ao mesmo tempo continuamos olhando para nós mesmos com benevolência complacente: Somos peritos na criação do discurso desculpabilizante. E dizemos:

Que alguém rouba porque, coitado, é pobre (esquecendo que há milhares de outros pobres que não roubam)
Que o funcionário ou o polícia são corruptos porque, coitados, tem um salário insuficiente (esquecendo que ninguém, neste mundo, tem salário suficiente)
Que o político abusou do poder porque, coitado, na tal África profunda, essas práticas são antropologicamente legítimas
A desresponsabilização é um dos estigmas mais graves que pesa sobre nós, africanos de Norte a Sul. Há os que dizem que se trata de uma herança da escravatura, desse tempo em que não se era dono de si mesmo. O patrão, muitas vezes longínquo e invisível, era responsável pelo nosso destino. Ou pela ausência de destino.

Hoje, nem sequer simbolicamente, matamos o antigo patrão. Uma das formas de tratamento que mais rapidamente emergiu de há uns dez anos para cá foi a palavra “patrão”. Foi como se nunca tivesse realmente morrido, como se espreitasse uma oportunidade histórica para se relançar no nosso quotidiano. Pode-se culpar alguém desse ressurgimento? Não. Mas nós estamos criando uma sociedade que produz desigualdades e que reproduz relações de poder que acreditávamos estarem já enterradas.


Segundo sapato: a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho

Ainda hoje despertei com a notícia que refere que um presidente africano vai mandar exorcizar o seu palácio de 300 quartos porque ele escuta ruídos “estranhos” durante a noite. O palácio é tão desproporcionado para a riqueza do país que demorou 20 anos a ser terminado. As insónias do presidente poderão nascer não de maus espíritos mas de uma certa má consciência.

O episódio apenas ilustra o modo como, de uma forma dominante, ainda explicamos os fenómenos positivos e negativos. O que explica a desgraça mora junto do que justifica a bem-aventurança. A equipe desportiva ganha, a obra de arte é premiada, a empresa tem lucros, o funcionário foi promovido? Tudo isso se deve a quê? A primeira resposta, meus amigos, todos a conhecemos. O sucesso deve-se à boa sorte. E a palavra “boa sorte” quer dizer duas coisas: a protecção dos antepassados mortos e protecção dos padrinhos vivos.

Nunca ou quase nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como um investimento a longo prazo. As causas do que nos sucede (de bom ou mau) são atribuídas a forças invisíveis que comandam o destino. Para alguns esta visão causal é tida como tão intrinsecamente “africana” que perderíamos “identidade” se dela abdicássemos. Os debates sobre as “autenticas” identidades são sempre escorregadios. Vale a pena debatermos, sim, se não poderemos reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude mais activa e interventiva sobre o curso da História.

Infelizmente olhamo-nos mais como consumidores do que produtores. A ideia de que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha mesmo para muitos africanos. Até aqui o continente produziu recursos naturais e força laboral. Produziu futebolistas, dançarinos, escultores. Tudo isso se aceita, tudo isso reside no domínio daquilo que se entende como natureza”. Mas já poucos aceitarão que os africanos possam ser produtores de ideias, de ética e de modernidade. Não é preciso que os outros desacreditem. Nós próprios nos encarregamos dessa descrença.

O ditado diz. “o cabrito come onde está amarrado”. Todos conhecemos o lamentável uso deste aforismo e como ele fundamenta a acção de gente que tira partido das situações e dos lugares. Já é triste que nos equiparemos a um cabrito. Mas também é sintomático que, nestes provérbios de conveniência nunca nos identificamos com os animais produtores, como é por exemplo a formiga. Imaginemos que o ditado muda e passar a ser assim: “Cabrito produz onde está amarrado.” Eu aposto que, nesse caso, ninguém mais queria ser cabrito.

Terceiro sapato- O preconceito de quem critica é um inimigo

Muitas acreditam que, com o fim do monopartidarismo, terminaria a intolerância para com os que pensavam diferente. Mas a intolerância não é apenas fruto de regimes. É fruto de culturas, é o resultado da História. Herdamos da sociedade rural uma noção de lealdade que é demasiado paroquial. Esse desencorajar do espírito crítico é ainda mais grave quando se trata da juventude. O universo rural é fundado na autoridade da idade. Aquele que é jovem, aquele que não casou nem teve filhos, esse não tem direitos, não tem voz nem visibilidade. A mesma marginalização pesa sobre a mulher.

Toda essa herança não ajuda a que se crie uma cultura de discussão frontal e aberta. Muito do debate de ideias é, assim, substituído pela agressão pessoal. Basta diabolizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demónios à disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa.

Há neste domínio um componente histórico recente que devemos considerar: Moçambique nasceu da luta de guerrilha. Essa herança deu-nos um sentido épico da história e um profundo orgulho no modo como a independência foi conquistada. Mas a luta armada de libertação nacional também cedeu, por inércia, a ideia de que o povo era uma espécie de exército e podia ser comandado por via de disciplina militar. Nos anos pós-independência, todos éramos militantes, todos tínhamos uma só causa, a nossa alma inteira vergava-se em continência na presença dos chefes. E havia tantos chefes. Essa herança não ajudou a que nascesse uma capacidade de insubordinação positiva.

Faço-vos agora uma confidência. No início da década de 80 fiz parte de um grupo de escritores e músicos a quem foi dada a incumbência de produzir um novo Hino Nacional e um novo Hino para o Partido Frelimo. A forma como recebemos a tarefa era indicadora dessa disciplina: recebemos a missão, fomos requisitados aos nossos serviços, e a mando do Presidente Samora Machel fomos fechados numa residência na Matola, tendo-nos sido dito: só saem daí quando tiverem feito os hinos. Esta relação entre o poder e os artistas só é pensável num dado quadro histórico. O que é certo é que nós aceitámos com dignidade essa incumbência, essa tarefa surgia como uma honra e um dever patriótico. E realmente lá nos comportamos mais ou menos bem. Era um momento de grandes dificuldades …e as tentações eram muitas. Nessa residência na Matola havia comida, empregados, piscina… num momento em que tudo isso faltava na cidade. Nos primeiros dias, confesso nós estávamos fascinados com tanta mordomia e ficávamos preguiçando e só corríamos para o piano quando ouvíamos as sirenes dos chefes que chegavam. Esse sentimento de desobediência adolescente era o nosso modo de exercermos uma pequena vingança contra essa disciplina de regimento.

Na letra de um dos hinos lá estava reflectida essa tendência militarizada, essa aproximação metafórica a que já fiz referência:

Somos soldados do povo
Marchando em frente

Tudo isto tem que ser olhado no seu contexto sem ressentimento. Afinal, foi assim, que nasceu a Pátria Amada, este hino que nos canta como um só povo, unido por um sonho comum.


Quarto sapato: a ideia que mudar as palavras muda a realidade

Uma vez em Nova Iorque um compatriota nosso fazia uma exposição sobre a situação da nossa economia e, a certo momento, falou de mercado negro. Foi o fim do mundo. Vozes indignadas de protesto se ergueram e o meu pobre amigo teve que interromper sem entender bem o que se estava a passar. No dia seguinte recebíamos uma espécie de pequeno dicionário dos termos politicamente incorrectos. Estavam banidos da língua termos como cego, surdo, gordo, magro, etc…

Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dizer “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé.

Há toda uma geração que está aprendendo uma língua – a língua dos workshops. É uma língua simples uma espécie de crioulo a meio caminho entre o inglês e o português. Na realidade, não é uma língua mas um vocabulário de pacotilha. Basta saber agitar umas tantas palavras da moda para falarmos como os outros isto é, para não dizermos nada. Recomendo-vos fortemente uns tantos termos como, por exemplo:

- desenvolvimento sustentável
- awarenesses ou accountability
- boa governação
- parcerias sejam elas inteligentes ou não
- comunidades locais


Estes ingredientes devem ser usados de preferência num formato “powerpoint”. Outro segredo para fazer boa figura nos workshops é fazer uso de umas tantas siglas. Porque um workshopista de categoria domina esses códigos. Cito aqui uma possível frase de um possível relatório: Os ODMS do PNUD equiparam-se ao NEPAD da UA e ao PARPA do GOM. Para bom entendedor meia sigla basta.

Sou de um tempo em que o que éramos era medido pelo que fazíamos. Hoje o que somos é medido pelo espectáculo que fazemos de nós mesmos, pelo modo como nos colocamos na montra. O CV, o cartão de visitas cheio de requintes e títulos, a bibliografia de publicações que quase ninguém leu, tudo isso parece sugerir uma coisa: a aparência passou a valer mais do que a capacidade para fazermos coisas.

Muitas das instituições que deviam produzir ideias estão hoje produzindo papéis, atafulhando prateleiras de relatórios condenados a serem arquivo morto. Em lugar de soluções encontram-se problemas. Em lugar de acções sugerem-se novos estudos.


Quinto sapato A vergonha de ser pobre e o culto das aparências

A pressa em mostrar que não se é pobre é, em si mesma, um atestado de pobreza. A nossa pobreza não pode ser motivo de ocultação. Quem deve sentir vergonha não é o pobre mas quem cria pobreza.

Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.

Recordo-me que certa vez entendi comprar uma viatura em Maputo. Quando o vendedor reparou no carro que eu tinha escolhido quase lhe deu um ataque. “Mas esse, senhor Mia, o senhor necessita de uma viatura compatível”. O termo é curioso: “compatível”.

Estamos vivendo num palco de teatro e de representações: uma viatura já é não um objecto funcional. É um passaporte para um estatuto de importância, uma fonte de vaidades. O carro converteu-se num motivo de idolatria, numa espécie de santuário, numa verdadeira obsessão promocional.

Esta doença, esta religião que se podia chamar viaturolatria atacou desde o dirigente do Estado ao menino da rua. Um miúdo que não sabe ler é capaz de conhecer a marca e os detalhes todos dos modelos de viaturas. É triste que o horizonte de ambições seja tão vazio e se reduza ao brilho de uma marca de automóvel.

É urgente que as nossas escolas exaltem a humildade e a simplicidade como valores positivos. A arrogância e o exibicionismo não são, como se pretende, emanações de alguma essência da cultura africana do poder. São emanações de quem toma a embalagem pelo conteúdo.

Sexto Sapato- A passividade perante a injustiça

Estarmos dispostos a denunciar injustiças quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiça, áreas onde o crime permanece invisível. Refiro-me em particular à:

- violência doméstica (40 por cento dos crimes resultam de agressão doméstica contra mulheres, esse é um crime invisível)
- violência contra as viúvas
- à forma aviltante como são tratados muitos dos trabalhadores
- aos maus tratos infligidos às crianças

Ainda há dias ficámos escandalizados com o recente anúncio que privilegiava candidatos de raça branca. Tomaram-se medidas imediatas e isso foi absolutamente correcto. Contudo, existem convites à discriminação que são tão ou mais graves e que aceitamos como sendo naturais e inquestionáveis.

Tomemos esse anúncio do jornal e imaginemos que ele tinha sido redigido de forma correcta e não racial. Será que tudo estava bem? Eu não sei se todos estão a par de qual é a tiragem do jornal Notícias. São 13 mil exemplares. Mesmo se aceitarmos que cada jornal é lido por 5 pessoas, temos que o número de leitores é menor que a população de um bairro de Maputo. É dentro deste universo que circulam convites e os acessos a oportunidades. Falei na tiragem mas deixei de lado o problema da circulação. Por que geografia restrita circulam as mensagens dos nossos jornais? Quanto de Moçambique é deixado de fora ?

É verdade que esta discriminação não é comparável à do anúncio racista porque não é resultado de acção explícita e consciente. Mas os efeitos de discriminação e exclusão destas práticas sociais devem ser pensados e não podem cair no saco da normalidade. Esse “bairro” das 60 000 pessoas é hoje uma nação dentro da nação, uma nação que chega primeiro, que troca entre si favores, que vive em português e dorme na almofada na escrita.

Um outro exemplo. Estamos administrando anti-retrovirais a cerca de 30 mil doentes com SIDA. Esse número poderá, nos próximos anos, chegar aos 50 mil. Isso significa que cerca de um milhão quatrocentos e cinquenta mil doentes ficam excluídos de tratamento. Trata-se de uma decisão com implicações éticas terríveis. Como e quem decide quem fica de fora? É aceitável, pergunto, que a vida de um milhão e meio de cidadãos esteja nas mãos de um pequeno grupo técnico ?


Sétimo sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros

Todos os dias recebemos estranhas visitas em nossa casa. Entram por uma caixa mágica chamada televisão. Criam uma relação de virtual familiaridade. Aos poucos passamos a ser nós quem acredita estar vivendo fora, dançando nos braços de Janet Jackson. O que os vídeos e toda a sub-indústria televisiva nos vem dizer não é apenas “comprem”. Há todo um outro convite que é este: “sejam como nós”. Este apelo à imitação cai como ouro sobre azul: a vergonha em sermos quem somos é um trampolim para vestirmos esta outra máscara.

O resultado é que a produção cultural nossa se está convertendo na reprodução macaqueada da cultura dos outros. O futuro da nossa música poderá ser uma espécie de hip-hop tropical, o destino da nossa culinária poderá ser o Mac Donald’s.

Falamos da erosão dos solos, da deflorestação, mas a erosão das nossas culturas é ainda mais preocupante. A secundarização das línguas moçambicanas (incluindo da língua portuguesa) e a ideia que só temos identidade naquilo que é folclórico são modos de nos soprarem ao ouvido a seguinte mensagem: só somos modernos se formos americanos.

O nosso corpo social tem uma história similar à de um individuo. Somos marcados por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o fim da vida.

Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes ? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se reproduzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando a valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é decalcado daquele do meu tempo. Estamos copiando as cerimónias de final do curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinaldas e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimónia mais enraízada na terra e na tradição moçambicanas.


Meus Senhores e minhas senhoras

Falei da carga de que nos devemos desembaraçar para entrarmos a corpo inteiro na modernidade. Mas a modernidade não é uma porta apenas feita pelos outros. Nós somos também carpinteiros dessa construção e só nos interessa entrar numa modernidade de que sejamos também construtores.

A minha mensagem é simples: mais do que uma geração tecnicamente capaz, nós necessitamos de uma geração capaz de questionar a técnica. Uma juventude capaz de repensar o país e o mundo. Mais do que gente preparada para dar respostas, necessitamos de capacidade para fazer perguntas. Moçambique não precisa apenas de caminhar. Necessita de descobrir o seu próprio caminho num tempo enevoado e num mundo sem rumo. A bússola dos outros não serve, o mapa dos outros não ajuda. Necessitamos de inventar os nossos próprios pontos cardeais. Interessa-nos um passado que não esteja carregado de preconceitos, interessa-nos um futuro que não nos venha desenhado como um receita financeira.

A Universidade deve ser um centro de debate, uma fábrica de cidadania activa, uma forja de inquietações solidárias e de rebeldia construtiva. Não podemos treinar jovens profissionais de sucesso num oceano de miséria. A Universidade não pode aceitar ser reprodutor da injustiça e da desigualdade. Estamos lidando com jovens e com aquilo que deve ser um pensamento jovem, fértil e produtivo. Esse pensamento não se encomenda, não nasce sózinho. Nasce do debate, da pesquisa inovadora, da informação aberta e atenta ao que de melhor está surgindo em África e no mundo.

A questão é esta: fala-se muito dos jovens. Fala-se pouco com os jovens. Ou melhor, fala-se com eles quando se convertem num problema. A juventude vive essa condição ambígua, dançando entre a visão romantizada (ela é a seiva da Nação) e uma condição maligna, um ninho de riscos e preocupações (a SIDA, a droga, o desemprego).

Senhores e senhoras

Não foi apenas a Zâmbia a ver na educação aquilo que o náufrago vê num barco salva-vidas. Nós também depositamos os nossos sonhos nessa conta.

Numa sessão pública decorrida no ano passado em Maputo um já idoso nacionalista disse, com verdade e com coragem, o que já muitos sabíamos. Ele confessou que ele mesmo e muitos dos que, nos anos 60, fugiam para a FRELIMO não eram apenas motivados por dedicação a uma causa independentista. Eles arriscaram-se e saltaram a fronteira do medo para terem possibilidade de estudar. O fascínio pela educação como um passaporte para uma vida melhor estava presente num universo em que quase ninguém podia estudar. Essa restrição era comum a toda a África. Até 1940 o número de africanos que frequentavam escolas secundárias não chegava a 11 mil. Hoje, a situação melhorou e esse número foi multiplicado milhares e milhares de vezes. O continente investiu na criação de novas capacidades. E esse investimento produziu, sem dúvida, resultados importantes.

Aos poucos se torna claro, porém, que mais quadros técnicos não resolvem, só por si, a miséria de uma nação. Se um país não possuir estratégias viradas para a produção de soluções profundas então todo esse investimento não produzirá a desejada diferença. Se as capacidades de uma nação estiverem viradas para o enriquecimento rápido de uma pequena elite então de pouco valerá termos mais quadros técnicos.

A escola é um meio para querermos o que não temos. A vida, depois, nos ensina a termos aquilo que não queremos. Entre a escola e a vida resta-nos ser verdadeiros e confessar aos mais jovens que nós também não sabemos e que, nós, professores e pais, também estamos à procura de respostas.

Com o novo governo ressurgiu o combate pela auto-estima. Isso é correcto e é oportuno. Temos que gostar de nós mesmos, temos que acreditar nas nossas capacidades. Mas esse apelo ao amor-próprio não pode ser fundado numa vaidade vazia, numa espécie de narcisismo fútil e sem fundamento. Alguns acreditam que vamos resgatar esse orgulho na visitação do passado. É verdade que é preciso sentir que temos raízes e que essas raízes nos honram. Mas a auto-estima não pode ser construída apenas de materiais do passado.

Na realidade, só existe um modo de nos valorizar: é pelo trabalho, pela obra que formos capazes de fazer. É preciso que saibamos aceitar esta condição sem complexos e sem vergonha: somos pobres. Ou melhor, fomos empobrecidos pela História. Mas nós fizemos parte dessa História, fomos também empobrecidos por nós próprios. A razão dos nossos actuais e futuros fracassos mora também dentro de nós.

Mas a força de superarmos a nossa condição histórica também reside dentro de nós. Saberemos como já soubemos antes conquistar certezas que somos produtores do nosso destino. Teremos mais e mais orgulho em sermos quem somos: moçambicanos construtores de um tempo e de um lugar onde nascemos todos os dias. É por isso que vale a pena aceitarmos descalçar não só os setes mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade é uma: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros.

Thursday, March 17, 2005

Expectativas

Fui convidado a ir ao Seminário St. Agostinho, na Matola, falar sobre as expectativas existentes em relação ao novo governo.
Li lá o seguinte texto:

Pediram-me para vir aqui hoje falar-vos sobre o novo governo e sobre as perspectivas, anseios e expectativas que ele gera.
Tarefa dificil de realizar, principalmente quando se fala para pessoas que não conhecemos, em termos da posição que assumem na vida e na política.
Mas, ao não saber qual é o vosso, fica sempre a saída de olhar para a questão do meu próprio ponto de vista. É isso que vou tentar fazer.

Para explicar o que esperamos do novo governo, é preciso começar por dizer o que se pensa do anterior, pois ele é o nosso primeiro termo de comparação.
E eu devo começar por dizer que, de uma forma geral, não gostava do governo de Joaquim Chissano.
Digo “de uma forma geral” porque, apesar de tudo, havia coisas nele que me agradavam: A liberdade de imprensa, a paz, algum desenvolvimento económico são exemplos de coisas que me agradavam. E são coisas muito importantes.
Mas a maioria das coisas não me agradavam de maneira nenhuma. E a sensação que eu tinha era de que, com o passar do tempo, as coisas que me desagradavam iam aumentando em quantidade e qualidade.
Joaquim Chissano permitiu, através da política que hoje é conhecida como o “deixa-andar” que aspectos extremamente graves da nossa sociedade crescessem e se multiplicassem até atingirem dimensões de cancros sociais: estou a falar da corrupção desenfreada, do crime organizado, do tráfico de drogas e do assalto aos bens do Estado que caracterizaram os últimos anos da vida no nosso país.
Tendo nós partido de um Estado em que a corrupção era praticamente desconhecida, no tempo de Samora Machel, o aparecimento e crescimento acelerado desse mal foi uma surpresa e um choque grande para aqueles que tinham vivido num Moçambique completamente diferente.
Choque ainda maior por descobrir que aqueles que, à volta de Samora, mais apregoavam a honestidade e as mãos limpas eram agora os que enriqueciam mais rapidamente sem olharem a meios para o conseguirem.
Na luta pelas fortunas pessoais valia tudo, desde as percentagens em negócios escuros, até ao roubo puro e simples, ao assassinato e ao nogento negócio das drogas, que dá cabo da vida de tantas famílias.
E descobrimos que o Aparelho de Estado, numa primeira fase, parecia não ser capaz de combater estes males. Com o andar do tempo verificámos que, muitas vezes, o Estado fingia que não via os crimes cometidos e, por vezes, era mesmo cumplice no abafar de casos de grande gravidade. A Procuradoria Geral da república não foi capaz de acusar e levar a tribunal um único caso. A polícia nunca prendeu ninguém, a não ser os pilha-galinhas e, na questão da droga, os polícias sempre olharam para o outro lado para não verem aquilo que se passa nas barbas de toda a gente. Mesmo no famoso caso dos dois camiões com 40 toneladas de haxixe, que foram apanhados com os respectivos tripulantes, nunca se conseguiu saber quem eram os verdadeiros donos. Nunca se soube de onde vinham os camiões nem para onde iam, o que é espantoso.
Mas as coisas atingem o ponto de maior gravidade quando começam os assassinatos para tentar esconder a roubalheira que já era enorme. São os casos do bancário Lima Felix, do jornalista Carlos Cardoso e do economista Siba Siba Macuácua, que vão levar a outros mais tarde, como o de Armando Ussufo, ex-director da Cadeia Central da Machava, de onde tiraram por duas vezes o famoso Anibalzinho.
É neste ponto que estamos quando houve que realizar as últimas eleições gerais.
E creio que foi toda esta situação, em que o nome de Nyimpine Chissano aparecia frequentemente misturado, que levou Joaquim Chissano a não se recandidatar à presidência e a Frelimo a lançar a palavra de ordem “A Força da Mudança”. Mesmo dentro do partido no poder se terá chegado à conclusão que aquilo não podia continuar e que a direcção máxima do partido estava de tal forma associada, na opinião pública, a todo aquele clima de corrupção e criminalidade, que era necessário mudar muita coisa, incluindo essa chefia máxima.
Daí a candidatura de Armando Guebuza e a campanha realizada contra a corrupção, o crime organizado, o deixa-andar e a pobreza absoluta.
Tudo isto, no entanto, tem que ser feito sem pôr em causa a unidade interna do Partido Frelimo, necessária para ganhar as eleições e manter o controle do país. Estou em crer que muito teve que ser negociado nos bastidores até se conseguir esta transição pacífica. E desconheço até que ponto não terá sido uma das coisas negociadas a impunidade dos criminosos que actuaram no tempo de Chissano. Uma coisa do género : “Eu saio sim mas vocês depois não tocam na minha gente”.
A recente cedência do lugar Presidente da Frelimo, protagonizada por Joaquim Chissano a Armando Guebuza terá sido o último acto de toda esta transição. E terá sido resultado de mais negociações de bastidores, porque nada dava a entender, pouco antes da reunião do Comite Central, que Chissano iria abdicar da posição que mantinha.

E chegamos ao momento actual. Guebuza é Presidente da República e do Partido e formou o seu governo. As palavras de ordem que lança, constantemente, são de luta contra a corrupção e a criminalidade, o burocratismo e a pobreza absoluta.
O governo que formou é constituido, em grande parte, por antigos governadores provinciais. A ideia parece-me boa, na medida em que os novos ministros não sairam dos corredores de Maputo mas sim do terreno real dos distritos de todo o país, de norte a sul. Penso que nenhum governo, desde a independência, teve, no seu conjunto, um conhecimento tão completro da realidade nac ional como este que está agora em funções. O que pode ser muito bom sinal.
Trata-se, igualmente, de um governo relativamente jovem, com gente ainda não muito acomodada. Portanto ainda com vontade de mudar as coisas, esperemos que para melhor.
E estes primeiros tempos parecem mostrar que existe vontade de os novos dirigentes varrerem as respectivas casas e começarem a arrumá-las melhor. Os casos mais divulgados do Dr. Ivo Garrido, no Ministério da saúde e de Aires Ali, na Educação, parecem ser bons sintomas de que os serviços respwectivos vão começar a tratar melhor doentes, professores e estudantes. Mesmo sem necessidade de melhorias nos meios ao dispor. Mudando apenas a forma de trabalhar com os meios disponíveis. Se depois for possivel melhorar também os meios, todos ganharemos ainda mais com isso.
O actual governo goza ainda de duas importantes vantagens em relação ao anterior:
Por um lado a sua tomada de posse realizou-se sem grandes sobressaltos e está a ser pacífica, ao contrário das convulsões de 1999, que culminaram nas manifestações da Renamo e no massacre dos presos de Montepuez.
Por outro, a Frelimo aumentou bastante a sua maioria na Assembleia da República, o que lhe dá um poder indiscutível para realizar o seu projecto de governação sem ser incomodada por uma oposição tornada quase impotente.
Esta última força é, paradoxalmente, uma possivel fraqueza.
Neste momento a Frelimo tem um poder praticamente absoluto: Tem uma maioria absoluta no Parlamento,o Presidente da República dirige o Governo, é o comandante em chefe das forças de defesa e segurança, é quem nomeia juizes para o Tribunal Supremo e o procurador Geral da República. É uma concentração de poder como normalmente só encontramos em estados de partido único.
E, nessas circunstâncias, resta-nos esperar que quem governa tenha boas intenções em relação à forma como governa. Porque, se não tiver, nada podemos fazer para evitar os seus desmandos.
Até ao momento tudo me parece estar a andar bem e o discurso do novo Presidente da República coincide com aquilo que também eu penso que são as prioridades no nosso país.
Mas a idade tem-me tornado cada vez mais desconfiado e há muito que não ponho as mãos no fogo por ninguém. Por isso aconselho que mantenhamos os olhos e ouvidos bem abertos para o que for acontecendo para podermos, em termos de sociedade civil, intervir com a nossa voz para apoiar o que acharmos correcto mas também criticar o que nos pareça estar a fugir do bom caminho.
É isso que entendo por cidadania consciente e gostaria de vos trazer como recomendação a vós, na maioria jovens no começo da vida.
E muito obrigado pela vossa paciência em me estarem aqui a ouvir.

Maputo, 17 de Março de 2005

Wednesday, March 16, 2005

Contas

Fio a fio Joe Hanlon continua a desemaranhar os caminho0s que levaram ao esvaziar dos cofres dos nossos bancos e ao encher dos bolsos da nossa elite:


CONTAS TRANSITÓRIAS

Nos capítulos anteriores fizémos notar que o dinheiro não desaparecia apenas através de crédito indevidamente concedido, mas também através de fraudes contabilísticas. Em Moçambique, as contas transitórias, contas internas e contas de regularização, que cobrem as transacções entre balcões, entre os balcões e a sede e entre Moçambique e os bancos estrangeiros, constituíam os pontos fracos e estavam na origem da maior parte das fraudes.
Num banco, tudo tem de estar contabilizado em qualquer lado. Quando a transacção ainda não está terminada, o seu registo vai para uma conta transitória. Cheques não liquidados, por exemplo, são registados numa conta transitória até que chegue a confirmação da transferência, altura em que o dinheiro é creditado na conta do cliente.
Nos termos duma prática bancária normal, incluindo as regras do BCM, nenhum registo devia permanecer numa conta transitória por mais de 45 dias - o tempo mais que suficiente para ser remetido dos balcões mais afastados. E as auditorias anuais devem verificar se não há registos antigos pendentes em contas suspensas. A prática normal é fazer uma reconciliação em que várias contas e livros são comparados para garantir que estão todos em conformidade. Em Moçambique isto não era feito.
Um artigo no Savana de 7 de Abril de 2000, subscrito por "um ex-director do BCM", diz que o BCM tinha biliões de Meticais, tanto em moeda nacional como em divisas, que ficavam em contas suspensas durante anos e que isto era uma estratégia dos funcionários do BCM e do BdM, assim como dos auditores, para fazer de conta que havia dinheiro quando não havia. Vários funcionários bancários com quem falámos confirmaram-nos que não eram feitas reconciliações.
Dissemos em artigos anteriores que, no caso do Banco Austral, a KPMG sugeriu a anulação de 1,3 milhões de US$ nas contas internas referentes a transacções entre os balcões e a sede e de 1,7 milhões de US$ nas contas transitórias, e aparentemente acontecia o mesmo com o BPD e o Banco Austral.
Contas transitórias e contas internas podem ser usadas para fraude desde que, intencionalmente, não se complete a transacção. Para a famosa fraude dos 144 mil milhões de Mt, cheques passados em Nampula e outros balcões, eram depositados em contas no balcão do Sommerschield em Maputo. O gerente, Vicente Ramaya, alegadamente teria autorizado o pagamento dos cheques, indo uma contra-entrada para a conta transitória e sendo em seguida destruído o cheque, em vez de ser enviado de volta ao balcão emissor (que nessa altura daria o cheque como não tendo cobertura). Asim, a entrada ficava simplesmente na conta transitória.
Houve outras fraudes semelhantes. Em 1993 houve um desfalque envolvendo 4 mil milhões de Mt, nessa altura valendo mais de 1 milhão de US$. Foi permitido a Pedro Pinto e a Júlio Tandane descontar cheques sem ter fundos para os cobrir. O BPD tomou conta das propriedades do Grupo Pinto e Umberto Fusaroli Casadei foi nomeado para as administrar. Mas a seguir Casadei foi baleado duas vezes, a 22 de Abril e a 12 de Maio de 1993. Casadei acusou o Grupo Pinto de tentativas de assassinato e a seguir abandonou Moçambique.
Outra fraude semelhante aconteceu no norte do país, em finais de 2000, envolvendo 68 mil milhões de Mt (4 milhões de US$). Cheques passados sobre uma conta do Banco Austral numa cidade foram depositados em contas no BSTM e BIM noutra cidade e remetidos para o balcão do Banco Austral na mesma cidade, onde o gerente disse que não tinham cobertura. Mas não devolveu os cheques para o banco que os tinha emitido para serem recolhidos. Não foi feita nenhuma reconciliação destas contas pelo Banco Austral, violando assim os procedimentos normais.
Outra sistema de fraude é a emissão de letras de crédito sem a adequada cobertura e quando estas são apresentadas é simplesmente tirado dinheiro da conta transitória - que passa assim a ser um saco que nunca esvazia. O "ex-Director do BCM" afirmou que entre 1993 e 1996, foram roubados 40 milhões de US$ por este processo, "sob ordens vindas de cima".
A maior parte das gerências de bancos tenta criar sistemas para prevenir desfalques. Em Moçambique, a computerização e os controlos apertados foram bloqueados a alto nível e adiados até muito depois da privatização. Mesmo assim, mesmo com um sistema mau, é difícil esconder milhões de dólares - a não ser que as pessoas façam vista grossa. O "ex-Director do BCM" argumentou que era completamente impossível um desfalque envolvendo contas transitórias e contas internas sem o conhecimento de um director ou administrador.
Em relação à famosa fraude de 144 mil milhões de Mt no BCM, ocorrida no primeiro semestre de 1996, o BCM insistiu repetidas vezes em que ninguém hierarquicamente acima de Vicente Ramaya sabia o que estava a contecer. Mas outros, muitas vezes por causa de interesses próprios não declarados, vieram publicamente afirmar que tinham de estar envolvidos funcionários mais altos. O "ex-Director do BCM" escreveu que um director ou administrador, em particular o director responsável pela contabilidade, tinha "de ter permitido a realização da fraude".
Na altura, o director responsável pela contabilidade era Teotónio Comiche, irmão mais novo de Eneias. Diamantino dos Santos, o Procurador da Cidade de Maputo, que impediu que o caso fosse investigado, deu uma série de entrevistas nas quais disse que Eneias Comiche estava a tentar proteger o irmão que estava "fortemente implicado". Diamantino dos Santos disse também que o director comercial do BCM, Alberto Calú, estava envolvido. Asslam Abdul Satar, em geral visto como o organizador da fraude dos 144 milhões de Mt, escreveu uma carta do Dubai, dirigida à Procuradoria, em 20 de Julho de 1999, admitindo o crime, mas afirmando que Calú e o PCA Augusto Candida também estavam envolvidos.
A maior parte dos funcionários bancários com quem falámos afirmam que funcionários seniores deviam ter descoberto a fraude dos 144 mil milhões de Mt e outras, mesmo com um fraco sistema de controlo. Não sendo assim, tinham de admitir incompetência ou corrupção. Argumentam que não era possível aparecerem subitamente 6,6 milhões de US$ em cheques num conjunto de contas de um balcão pequeno sem ninguém da sede reparar nisso.
Um elemento importante em todas estas fraudes foi a falha dos novos proprietários em não terem feito uma auditoria due dilligence quando o BPD e o BCM foram privatizados - e a falha dos representantes moçambicanos nos conselhos de administração em requererem essas auditorias. Isto é um procedimento muito invulgar, precisamente porque os novos donos deviam querer conhecer, e excluir, todos os maus devedores e pontos duvidosos nas contas. Ao declinarem a auditoria, os novos compradores e os membros moçambicanos do conselho de administração estavam a dizer explicitamente que não pretendiam demarcar-se dos antigos maus comportamentos e queriam continuá-los.

Tuesday, March 15, 2005

Banco Austral

Joe Hanlon continua a contar-nos a história trágica do saque da nossa banca:



QUEM IA FICAR COM O BANCO AUSTRAL?

Na sequência da contestada decisão de não fechar o Banco Austral, o banco central, BdM, interveio e tomou conta da operação, nomeando um novo Conselho de Administração. O novo presidente era António Siba-Siba Macuácua, director de supervisão bancária no BdM. Arlette Georgette Jonasse Patel, que vinha do anterior CA por parte do governo, manteve-se na posição.
Siba-Siba era um economista muito respeitado. Mas pode-se argumentar que estas pessoas eram precisamente as que deviam ter exercido maior vigilância para garantir que a crise não acontecesse e que deviam ter actuado mais cedo.
Adriano Maleiane disse numa conferência de imprensa a 3 de Abril de 2001, que o Banco Austral precisava de uma recapitalização de 2 800 mil milhões de Mt, correspondendo então a 150 milhões de US$. O PCA interino, António Siba-Siba, moveu-se rapidamente. A 19 de Junho o Banco Austral publicou no jornal Notícias uma lista de mais de 1000 indivíduos e companhias com empréstimos vencidos. Uma lista deste tipo nunca tinha sido publicada para o BCM. Mas a lista do Banco Austral não continha os nomes de qualquer figura importante, mesmo aqueles que constavam da lista da KPMG.
O BdM fez saber que procurava um banco estrangeiro que ficasse com 80% do Banco Austral - portanto todo o banco excepto os 20% reservados aos trabalhadores - o que não deixava nada para o Estado ou os investidores moçambicanos. Os concorrentes foram o Amalgamated Banks of South Africa, ABSA, e o Banco Comercial e de Investimentos, BCI, presidido pelo antigo ministro das Finanças, Abdul Magid Osman, e com a maioria do capital pertencendo à Caixa Geral de Depósitos de Portugal. A CGD já tinha concorrido ao BCM.
O Conselho de Ministros dividiu-se a este respeito, mas acabou por dar preferência ao ABSA, evitando assim que todo o sector financeiro em Moçambique fosse controlado pela banca portuguesa. O ABSA tem a experiência do Commercial Bank of Zimbabwe, CBZ, que tinha uma história semelhante à do Banco Austral, incluindo a necessidade de duplicar as provisões para crédito mal parado. Em 1998 o ABSA tornou-se accionista com 26% do capital e passou a dar apoio técnico. O governo do Zimbabwe detem 20% do banco e a International Finance Corporation 15%.
O ABSA revolucionou o banco e a revista Euromoney por duas vezes elegeu o CBZ como o melhor banco do Zimbabwe. Mas o CBZ mantém relações muito estreitas com o Presidente Robert Mugabe. O administrador executivo do CBZ é Gideon Gono, que em Agosto disse que "o nosso papel como CBZ baseia-se em profundas raízes patrióticas". Gono é descrito pela Financial Gazette como a pessoa que resolve as situações difíceis ao governo. É reitor da Universidade do Zimbabwe, foi recentemente nomeado para o "Zimbabwe Broadcasting Corporation", está também no conselho de administração do "Zimbabwe Children's Rehabilitation Trust", fundado pela primeira-dama, Grace Mugabe.
Nem o ABSA, nem o BCI se propuseram, de facto, a tomar conta de todo o banco no estado em que está. Nenhum deles queria o fardo de andar atrás dos devedores e ladrões do passado. O que propunham era apenas tomar conta dos depósitos, propriedade e pessoal, mas não de todo o portfolio de crédito. A questão é o que fazer com o restante. Os que roubaram o banco através de fraudes e empréstimos que nunca pagaram, obviamente que esperavam que o banco fosse fechado ou fosse feito o mesmo tipo de acordo que tinha sido feito para o BCM e que foi uma pedra sobre o passado, tapar o buraco e começar de novo. Mas Siba-Siba estava atrás dos devedores mais conhecidos que não figuravam na lista do Notícias.
No sábado dia 11 de Agosto, António Siba-Siba Macuácua foi atirado pelo vão das escadas na sede do Banco Austral. Apesar disso o ABSA começou a fazer a sua auditoria due dilligence, na data prevista, na segunda-feira dia 13 de Agosto de 2001.
Siba-Siba e o ABSA encontraram provas de corrupção a altos níveis no banco e havia rumores de possíveis queixas-crime em tribunal. Aparentemente as tentativas de Siba-Siba para limpar o banco tinham sido demasiado rigorosas e alguém ficou com medo de que ele afinal não estivesse disposto a pôr uma pedra no passado. Mas o que fazer com as novas provas recolhidas pelo ABSA?
Parece ter havido corrupção de ambos os lados. Os registos mais importantes estavam guardados nos computadores do SBB na Malásia. Até ao princípio do ano 2001 o BdM ainda não tinha tido acesso a eles. Assim é impossivel fazer uma reconciliação de contas completa e havia boatos de que interesses malaios teriam escoado dinheiro para fora do banco. Do lado moçambicano, um antigo alto funcionário bancário disse-nos: "O Banco Austral era gerido politicamente. Havia crédito mal parado, letras de crédito sem cobertura, transferências de dinheiro para ministros e muitos favores pessoais. As decisões eram tomadas pelos funcionários fora do seu mandato, violando regras e procedimentos e possivelmente a lei".
Além disto, "tanto no Banco Austral como no BCM, é impossível a administração não ter sabido das fraudes que havia. Trata-se de dinheiros públicos e existe responsabilidade criminal".

Sunday, March 13, 2005

O Colapso

Publico hoje o texto seguinte da série de Joe Hanlon sobre os bancos:

COLAPSO DOS DOIS BANCOS


Tanto o Banco Comercial de Moçambique, BCM, como o Banco Austral sofreram crises em 2000 e precisaram de uma reestruturação profunda.
Em Janeiro de 2000, Jardim Gonçalves, patrão do Banco Comercial Português, BCP, ficou com o Grupo José de Mello o que lhe trouxe o controlo do BCM. Finalmente o BCM teve auditores a fazer as contas a sério.
A 4 de Outubro de 2000 o BCM anunciou que um estudo dos seus auditores tinha mostrado a necessidade de uma provisão adicional de 114 milhões de US$ para dívidas não pagas. Os accionistas teriam de meter 106 milhões de capital extra. A cota do governo era de 52 milhões em forma de títulos.
Numa declaração a 22 de Março de 2001, o BCM anunciou um prejuízo de 27 milhões de US$ para 2000. Dizia que 33% do total do portfolio de crédito era agora considerado vencido e que se precisava de mais uma provisão de 48 milhões para cobrir dívidas não pagas além de "diversos" - elevando para 162 milhões de US$ o total das provisões para crédito mal parado.
O BCP já controlava o Banco Internacional de Moçambique, BIM. Havia a preocupação de que Gonçalves dominasse o sector financeiro e ele veio quatro vezes a Maputo para encontros com ministros e funcionários da banca. Finalmente, a 24 de Outubro de 2000, numa conferência de imprensa, disse que o governo tinha aceite que o BCP controlasse o BIM e o BCM. Em contrapartida o BCP metia os 54 milhões necessários para recapitalizar o BCM.
Disse depois que sabia onde é que os prejuízos tinham ocorrido mas não ia dizê-lo à imprensa porque as perdas tinham ocorrido em 1999 e mesmo antes, antes do BCP controlar o banco e não era portanto da sua responsabilidade. Gonçalves e o governo tinham chegado a um acordo - seria colocada uma pedra sobre o passado. Nada seria dito ou feito acerca dos prejuízos e fraudes acontecidas antes de 2000 e as duas partes simplesmente fechariam o buraco. Em troca Gonçalves podia dominar o sistema bancário.
Entretanto, em Outubro de 2000, o conselho de administração do Banco Austral concordou com o BdM em aumentar o capital e começou a limpar o banco a 31 de Março de 2001. Mas o banco malaio, SBB, já tinha perdido o interesse. O governo da Malásia estava a reestruturar o seu sistema financeiro muito abalado e a 18 de Fevereiro de 2000 anunciou que os seus 58 bancos e sociedades financeiras iam ser integrados em 10 "bancos-âncora". O SBB era um deles e não estava interessado em permanecer num banco difícil em África.
Mas só na reunião do conselho de administração de 3 de Abril de 2001 é que a Investil anunciou que não estava preparada para meter mais capital e entregava as suas acções ao governo. O pessoal malaio do banco distribuiu um documento anónimo pelos jornais intitulado "Razões para a saída do SBB de Moçambique". Nele se dizia que os moçambicanos não tinham "uma cultura de pagamento das dívidas", particularmente a elite. "Se lhes negas um empréstimo, estás mal. Se lhes concedes empréstimo estás mal porque eles não pagam".
O documento incluia uma lista de alegadas dívidas não honradas de nomes associados com a elite política. Os três donos da Invester tinham empréstimos superiores a 2 milhões de US$ do Banco Austral, de acordo com essa lista. O relatório da KPMG e a lista de maus pagadores publicada pela nova administração sugeriam que mais ou menos metade do total desses empréstimos estavam a ser reembolsados e outra metade estavam vencidos.
A maior parte das figuras séniores ligadas ao governo queriam o Banco Austral liquidado, num processo semelhante ao do BCM, pondo uma pedra no assunto dos créditos corruptos.
Surpreendentemente o Banco Mundial e a maior parte dos doadores estava de acordo, talvez porque estavam contra que se injectasse ainda mais dinheiro no banco. Mas o FMI e figuras-chave no Ministério do Plano e Finanças opunham-se à liquidação na base de que isso ia custar ainda mais caro além de destruir a confiança no sistema bancário.

Thursday, March 10, 2005

Ainda a banca

Mais um texto do Joe Hanlon sobre a banca. Um trabalho excelente de jornalismo investigativo:


BPD - MAIS AMIGOS DE FAMÍLIA


Em 1997, o Banco Popular de Desenvolvimento, BPD, tinha 120 milhões de US$ em depósitos domésticos e 17 milhões depositados no exterior, em 17 bancos diferentes. Mas a Deloitte & Touche avisou que o total de crédito mal parado era muito elevado e o BPD precisava de fazer provisões de 23 milhões de US$, o que significava 52% do total dos seus empréstimos. O Banco Português de Investimento, que estava a gerir a privatização, fez notar no seu memorando de venda que o controlo do crédito era muito frágil. O FMI insistia na privatização do BPD mas nenhum banco estrangeiro estava interessado.
Em 1996 um grupo moçambicano organizou-se para criar o Invester. Era chefiado por Octávio Muthemba, antigo ministro da indústria e PCA do SPI, uma holding da Frelimo. Jamú Hassan disse que as cotas da Invester eram, em partes iguais, de Muthemba, Hassan e Álvaro Massingue. O Invester tentou, sem sucesso, encontrar um parceiro sul-africano para o BPD.
O Presidente Joaquim Chissano fez uma visita de Estado à Malásia de 19 a 21 de Março de 1997 com Muthemba e Hassan como parte da delegação. Chissano solicitou ao primeiro-Ministro da Malásia, Mahatir Mohamed, que lhe arranjasse um parceiro para o Invester -- o Southern Bank Berhad (SBB). Isto foi antes da crise financeira da Ásia, quando a Malásia procurava envolver-se na África Austral e tentava difundir o conceito da "parceria inteligente".
SBB tem ligações com o ex-ministro da Malásia, Daim Zainuddin. Em 1997 o banco tinha 1% do mercado da Malásia, mas acabava de ter um significativo aumento do seu capital social e procurava expandir-se. A crise asiática, que atingiu a Malásia em Julho de 1997, desencadeara uma crise bancária no país.
A privatização do BPD consumou-se a 3 de Setembro de 1997, ficando o estado com 40%, e uma holding chamada Investil com os restantes 60%. A Investil era constituida em 51% pelo SBB e pela Invester em 49%. Os dois novos investidores deviam pagar 21 milhões de US$, mas destes mais de 2,5 milhões nunca foram pagos. O SBB devia participar com tecnologia e capital fresco; o banco passou a chamar-se Banco Austral. O SBB exigiu controlar o banco e inicialmente nomeou o seu próprio Director Executivo, Dato' Tan Teong Hean, como Director Executivo do Banco Austral. Mas nos finais de 1997 o Banco Austral passou a ter um Director Executivo exclusivo, K. Muganthan, que substituiu Dato' Tan Teong Hean. Octávio Muthemba passou a PCA.
O Presidente Joaquim Chissano recusou sempre publicar a lista dos seus bens e a imprensa sempre assumiu, sem prova, que a família Chissano tinha ligações estreitas com o Banco Austral. Na altura da assinatura do acordo foi publicada uma fotografia de Nympine Chissano com os compradores malaios. Em Outubro de 1998 foi criada a empresa Locomotivas Económicas com os filhos dos dirigentes da Frelimo. O segundo nome depois de Muthemba é Nympine Chissano. Os filhos de Mondlane, Machel e Katchamila também fazem parte. Entretanto Levy Muthemba, irmão de Octávio, criou a MM Trading que passou para Nympine Chissano e os irmãos Nyeleti e Eduardo Mondlane. (Várias grafias do nome Nympine aparecem nos BR's). Nympine Chissano criou outra companhia, Afrasia, com homens de negócios malaios; esta companhia tentou estabelecer uma lotaria e em 2001 construir um prédio em frente ao Ministério da Defesa.
Tal como com o BCM, não foi feita nenhuma auditoria due diligence ao BPD quando foi privatizado, e assim não é possível saber o que foi feito pela nova administração e o que foi feito pela anterior. Este era o primeiro investimento estrangeiro feito pelo SBB que, na Malásia, estava em posição vacilante por causa da crise financeira. Por isso nunca pôs no banco dinheiro ou apoio técnico. Havia entretanto batalhas políticas. Os malaios alegavam que Muthemba não estava autorizado a conceder créditos, mas fazia-o. Num artigo no Savana de 6 de Abril de 2001, uma fonte anónima do Banco Austral disse que os empréstimos eram dados a pessoas sem garantias, por vezes a troco de comissões de 10%. O MediaFax de 18 de Abril de 2001 alegava que o pessoal malaio também concedeu empréstimos sem garantias e falava da "generosidade" de K. Muganthan. No espaço de 18 meses o banco estava em crise e apareciam rumores na imprensa de falta de liquidez.
Em 2000 o BdM interveio para restringir novos empréstimos e obrigar a uma auditoria. Esta foi levada a cabo pela KPMG e submetida a 15 de Janeiro de 2001. A auditoria mostrava que as provisões para crédito mal parado e outros problemas tinha sido subestimada em 50 milhões de US$. A KPMG registou que 31% dos empréstimos deviam ser considerados dívidas não pagas, em vez dos 11% assumidos pela administração do banco. O crédito mal parado anterior à privatização em Setembro de 1997 excedia os 200 mil milhões de Meticais - 13 milhões de US$ na altura da auditoria, mas que eram 18 milhões na data da privatização. Mas a provisão para crédito vencido para os empréstimos após a privatização devia ser de 310 mil milhões de Mt - o que quer dizer que em apenas três anos o Banco Austral tinha feito empréstimos de 20 milhões de US$ que não seriam reembolsados.
A KPMG encontrou "diferenças irreconciliáveis entre o balancete e os detalhes de suporte" que exigiam riscar dívidas no valor astronómico de 69 mil milhões de Mt (4,3 milhões de US$). Também 7,7 mil milhões de Mt (500 mil US$) em empréstimos a funcionários do banco não puderam ser recuperados. E no contexto da reconciliação de fraudes a ser discutido noutro artigo, a KPMG encontrou um buraco de 20,8 mil milhões de Mt (1,7 milhões de US$) nas contas de transacções entre a sede e os balcões, e um buraco de 27,7 mil milhões de Mt (1,7 milhões de US$) nas contas transitórias. Destes mais de 8 milhões de US$, só 1,6 vinham de antes da privatização, de acordo com a KPMG.
A KPMG também recomendou que fossem riscados 66 mil milhões de Mt (4,1 milhões US$) da dívida contraída pela Southern Investments (Moçambique) Lda, resultante da aquisição de participações financeiras ao banco em 1998. A KPMG diz: "provisionámos este montante na totalidade por não haver indicação de que o banco irá recuperar esta dívida". A Southern Investments Moçambique só foi registada em Dezembro de 1999 e é propriedade de Koonjambu Muganthan, director do Banco Austral, e Jamú Suleman Hassan, um dos proprietários moçambicanos.
Assim, o relatório da KPMG sugere que, do crédito mal parado, da má contabilidade, do roubo e da fraude, 15 milhões de US$ vinham de antes da privatização e 30 milhões de US$ incorreram em apenas 3 anos de gestão privada.